domingo, 26 de dezembro de 2010

O sol

Os olhos que não se abrem para o brilho. Ele está, sobre as pálpebras, está. Não cura, ameniza.
Sobre as flores, paira a sabedoria dos poetas e acima do céu, que entre dias é cinza, entre outros, azul, mora o mistério que abre os caminhos ante a escuridão. Não digo mora, mas fica, nasceu e vive reinando por ali.
Mortal e vívido, entre frestas de madeira, no caminho, nada dorme e acorda homens. Chama-os ao cansado fardo de encarar a terra. Os pássaros e o canto dos pássaros acompanham a cor da vida, anunciam o fim da noite, que pode ter sido boa, mas foi negra. A vida plena é amarela. A cor da alegria é amarelo, amarela. O, a.
O dia mais feliz tem sol, e não o sol, mas a obra dele. O homem é venerado por suas obras e com o sol não é diferente. Não que seja um homem, não tem brilho para tal. O sol que se vê daqui é aquele que outro amado vê, ao longe.
O sol que ilumina a frente da casa é o mesmo que ilumina os fundos. Os raios que aquecem são os mesmos que queimam. E todo dia o mestre está lá, do canto, vendo, mirando. Cumprindo sua obra.
Enquanto há estrada, a chuva molha e o sol remonta. O sol é a única proeza da natureza que pode enganar e encantar. Uma clara verdade que não se vê. Um ciclo.
O mesmo dia de agrado, de raios que iluminam os quartos, as ruas e as nuvens, é o mesmo dia que a mãe chora pelo filho, que se perdeu. Neste dia, também há a obra do sol.
Ilumina as lágrimas, traz uma dor de luto e assiste uma criança brincar perante o mar. Aquece o orvalho. É o mesmo, sempre. Elo de amor, luz de tristeza que paira sobre o paraíso. Ilumina as almas, os animais e os bichos de pele preta.
Canta-se ao redor do mundo, em línguas distintas. Vozes de gente sem vida, de corpos magros arrebatados de fé numa mazela física de melancolia. Irmão perdoa irmão, gente mata gente, neve evapora e se torna ar. O sol passa os raios, sua obra, seu caminho de quentura. Escaldante, livre, ameno e sem fim.
O mesmo calor que ajuda na colheita num canto dum mundo, abre horizontes para um homem que procura um grande sentido num dos seus dias, doutro. A obra, amarela de alegria, caminha. Ninguém vê, nem se lembra. Está no canto da memória.
Dias que merecem lembrança e aqueles que não se apagam. Não memoriza se no dia de maior tristeza havia sol, não se lembra se na escolha da alegria havia a obra do sol. Mesmo dia, ou noite, de olhos fechados, ou sem nomes para um, ou, para um que seja outro.
Caminhando solitário, tendo um amor de datas, perdendo ou ganhando, há um sol amarelo.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Crônica de Natal

Lembro-me bem quando após um dia cansativo vi pendurado em frente às duas janelas de casa um desses “pisca-pisca” natalinos. Minha expressão de cansaço mudou quando vi a cena: todo torto, mal colocado e com algumas luzes queimadas. Percebi que fora meu irmão mais novo o autor. Sorri sorrateiramente.
Lembro-me bem quando andava com ele na rua e calados observávamos as casas com resquícios de Natal. Algumas iluminadas no sótão, outras na varanda, outras no quintal. Traziam o imaginário de um bairro notoriamente feliz, pela luz que se expandia. O pequeno ao meu lado vislumbrava-se com as luminárias pensas colocadas par em par no meio das flores de canteiros altos.
- Eu acho bonito as casas com luzinhas! E olhou para mim
Olhei para ele e percebi que esperava uma confirmação.
- Sim, são muito bonitas! Respondi
Tornou a olhar para as casas e suas telhas e andar silencioso ao meu lado.
Lembro-me bem quando meus pais, a ponto de se separarem, mudaram-se para o interior e me deixaram cuidando, daquele casarão descuidado repleto de memórias vivas. Tão vivas que tomavam espaço em meu quarto. Dos dias inteiros com luzes apagadas e quintal repleto de folhagem seca. O pequeno foi junto.
O natal chegara mais cedo este ano e minha família voltou com ele. Não suportaram as infindáveis tardes ensolaradas daquela cidade interiorana. Trouxeram doce de abóbora, coco e brigas na mala. Lembrei-me também das noitadas que meu pai passava na rua e ao voltar embriagado da lua, gritava no portão para que o deixassem entrar, embora estivesse com as chaves no bolso. Das discussões ouvidas do banheiro e das ofensas lançadas aos ventos.
Lembro-me bem do irmão do meio atrasar o relógio do despertador para perder aula e não ter condições de passar de ano. Tudo para chamar a atenção de alguém, talvez do pai. Preocupava a mãe com suas respostas imediatas e seu desempenho na escola. O que menos a preocupava, era o mais velho, esse que vos escreve, a não ser por sua ausência amorosa e complicada, segundo as leis da sociedade. Talvez fosse o que mais a preocupava.
Lembro-me bem, também, de não ouvir o som de vozes ou de qualquer outro ruído qualquer dentro da casa, embora não estivesse silenciosa.
Parado no portão, eu enxergava somente o brilho por trás daquele pisca torto e sem-vergonha. O brilho de uma família que volta a iluminar alguma vida nessa rua tão apagada e suja. De onde veio esse brilho, senão do mais inocente e necessariamente o mais passivo de toda essa relação difícil chamada família. Talvez a mais complicada das permanências, porém a mais gratificante das experiências.
Lembro-me bem quando uma lágrima caiu, ao vê-lo torto, pendurado e inferior ao das outras telhas, mas que ainda fazia algo que merecia atenção: brilhava.

domingo, 7 de novembro de 2010

Coletivo

Viu que faltavam dois para entrar. Não correu e ainda esperou um deles subir. Cansado, depois de um dia inteiro de trabalho, passou a catraca automaticamente, sem perceber e percebeu que não havia lugares para sentar. Apesar de não estar cheio, o coletivo estava com os assentos todos preenchidos e sua cabeça repousou no braço, que antes se pendurou no ferro.
Seus olhos fecharam, seu pensamento não foi muito longe e tudo o que queria era tomar um banho e dormir. Estava com fome, mas o ritmo do dia diminuía conforme o coletivo avançava sobre a cidade.
O carro, este que o deixou na mão, deveria ficar pronto só na semana seguinte e o ônibus grande seria seu meio casa-trabalho durante mais alguns dias. O celular vibrou e ao atender, a ligação caiu. Era a mãe, que deveria perguntar o que queria comer no jantar.
“Qualquer coisa” pensou sem balbuciar e tentou ligar novamente para casa. Desistiu.
Um homem, de baixa estatura, esbarrou em seu sapato. Sapato preto, social, chato. O homem desculpou-se sem encará-lo e ele sem querer percebeu que as unhas do baixinho eram adoentadas, uma bactéria, ou um vírus as tinham deixado pretas. Por um minuto, tentou lembrar a diferença entre bactéria e vírus, mas logo esqueceu a charada e deixou que o homem fosse para perto do cobrador. Era meio velho, tinha entrado pela porta de trás, mas não passava dos cinqüenta e poucos.
Não notou que perto do cobrador, um banco estava vazio e algumas pessoas entravam e logo alguém ocuparia aquele lugar. Quando viu, o coletivo avançou e ele deitou novamente a cabeça no braço.
De longe, semáforos, casas e gente nos bares. Agora, as pessoas já apertavam seu corpo sobre o banco a sua frente. Estava cheio e o calor aumentava.
Novamente o celular. Agora, um amigo. Também desistiu e mandou uma mensagem confirmando um churrasco no domingo. Um resto de alegria o fez sorrir pelo canto da boca. Resolveu ligar para o camarada e ao procurar o nome na lista de telefones, passou pelo nome da sua última namorada. Aline.
Por um minuto, já em outros números, lembrou que, da última vez que seu carro estava com as rodas travadas, voltara nesta mesma linha de coletivo com Aline.
Eram quase sete, horário de verão, ainda tinha sol. Um resto de.
Levantou a cabeça do braço vermelho e arrumou a gola da camisa. O banco perto do homem da unha estava agora ocupado. Uma moça, de traços similares ao de Aline, parecia dormir. Sua cabeça estava muito reclinada a ponto de bater o queixo no peito.
Seu pensamento agora voou e lembrou com doçura de sua ex-namorada. Lembrou de sua boca, de suas mãos quentes e que há um tempo, há pouco tempo, aliás, estavam juntos.
Olhou novamente para a moça sentada, mas apenas viu o cabelo cobrir seu rosto. Pensou novamente ser Aline, mas não. Agora, ela estava somente na agenda de seu celular.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Coletivo

Sentou. Conseguiu sentar e regozijou-se por apertar o passo e dar uns empurrãozinhos enquanto entrava naquele coletivo. Empurrões pequenos, que podia subtender-se que outros a tivessem empurrado antes. Suspirou e soltou pesadamente o ar. Arrumou o cabelo -, mania de mulher, ajeitou a bolsa no colo e jogou os pés entrelaçados para baixo do banco.
Seu olhar descuidado mirou a mão de um homem, que tinha a unha do dedão deveras enferrujada, emputrecida, feia. Voltou o olhar para o chão e novamente apertou a bolsa. Sentiu a garrafa de água, vazia, fazer volume dentro da bolsa. Ficou assim durante alguns minutos e o pensamento voou ao trabalho, que precisa de novas rotinas, um pouso no curso que pensa em fazer, no Dom Casmurro que precisa terminar de ler. Ouvia os murmúrios de conversas desinteressadas, o balançar do ônibus e o reflexo dos ferros repletos de mãos cansadas. As mãos dizem muito de alguém.
Novamente, seu olhar sem cuidados, saiu do vão enternecido de efêmeras memórias e viu, sem querer, um semblante conhecido entre as tantas feições daquela tarde pós trabalho. Era seu amor, ou seu amor do passado, ou que deveria estar e ser do passado, ou que nada de amor, ou... Baixou a cabeça repentinamente enquanto sentiu um frio descer da nuca para a espinha.
O homem da unha enferrujada, emputrecida, feia, mirou seu susto. Ela viu, segurando num desses ferros de reflexos, um dos poucos que amou durante sua vida. O coração acelerou, ficou desajeitada no banco, enquanto sua mente trazia como numa roleta russa, ele beijando-a no parque, ela apenas de calcinha sobre o corpo dele, a cesta de doces, os chinelos nos pés arredondados dele, o curso que fazia na faculdade e que já tinha terminado. Sua boa memória a irritou um pouco.
Estava bonito, apesar do cansaço e da barba, estava bonito. Pelo pouco que conseguiu olhar sem que ele a percebesse ali. Sua nuca inclinou-se tanto a ponto do queixo encostar no peito. Percebeu isso quando o ônibus pulou e a cabeça deu um tranco para cima e depois para baixo. Sentiu dor, mas não sentiu.
A mente agora aterrissou e pousou num campo seco, num deserto onde não havia mais parque nem chinelos. Era como se, um mar de terra a engolisse e ela não pudesse saber onde está. Ao mesmo tempo, neste deserto, tinha flores e flores coloridas, mas com um cheiro insuportável. Os olhos eram agradados pela beleza e o olfato invadido pela sensação de envenenamento.
Estranhou. Ele nunca pegava ônibus, mas imaginou que mais uma vez estava sem carro, visto pela última vez, quando as rodas travaram e isso serviu de pretexto para que os dois viessem abraçados no banco de trás do coletivo. Coletivo este, que agora leva ambos, ele e ela e que assiste o destino sorrir ao ver os dois corações dentro de um mesmo espaço, com outras pessoas sem poderem se amar.
Deixou o cabelo cair sobre o ombro e cobrir parte de seu rosto, para que, este, fosse uma incógnita para aquele que um dia ela amou e sorriu para revelar toda sua beleza.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Imagem é tudo. O cinegrafista, nada.

Para responder rápido (e refletir):

1. "Diretor de Titanic"?
2. "Câmera (cinegrafista) que fez a imagem de Rose e Jack furunfando no calhambeque?"
3. "Apresentador do Altas Horas"?
4. "Câmera que foca o entrevistado quando ele entra pela direita do palco"?


Putz, assim como a palavra 'cinegrafista', até as perguntas são complexas.


Por essa sua cara azeda ao pensar no nome dos fulanos das perguntas 2 e 4 que escrevi este texto.


Imagem é tudo. O cinegrafista, nada. Já parou para pensar que por trás de tudo que vemos na TV tem uma pessoa? Parece idiota, mas há certo sentido imaginar o autor da imagem gravada por trás da tela da televisão. Quase sempre esquecemos que aquelas imagens que entram pelas fechaduras, ultrapassam janelas, saem da boca de leões, foram câmeras que registraram. Tipo: você assiste a uma novela ou a um filme e não imagina que os movimentos, a imagem gravada ali foi feita por um camarada, segurando firme a máquina de gravar, no caso a câmera. E se caso você lembre, não dá muita importância para isso.
Algumas experiências pessoais me confirmam tal fato. Ter uma rotina de gravações com vários temas, vários lugares inclui também gravar várias pessoas e aí se encontra o problema. Para quem não sabe, trabalho com produção audiovisual para dois portais, de grandes veículos de comunicação no Brasil: um deles, o jornal O Estado de S. Paulo (http://tv.estadao.com.br) e o outro, o Portal MSN (http://video.br.msn.com/browse/tvestadao)
Não somos uma emissora de TV e por isso o forte desses veículos são matérias impressas, conteúdo on-line e imagens estáticas. No caso do MSN, há destaque para o serviço de mensagens instantâneas. Embora o vídeo seja um grande e revolucionário passo na construção midiática desses veículos, ainda estamos engatinhando no audiovisual online (mas, não considere que estamos atrasados), porém, quando um vídeo se destaca, grande parte dessa mídia se volta para tal e momentaneamente o audiovisual se torna importante, mas nada supera o impresso, claro, considerando o veículo jornal. Porém, não escrevi esse texto para discutir a importância do vídeo, mas do cinegrafista, no caso: eu. Eu e tantos outros milhares espalhados pelo mundo.
Há créditos para o nome do veículo, para o entrevistado, conteúdo da matéria, diretor, mas para o cinegrafista, o cara que gravou e que conseguiu imagens, entrou na boca do bicho, passou a bala de raspão, para esse não existe.
Breves relatos confirmam isso: Fui gravar o presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles, na sala de seu gabinete na Av. Paulista. Neste dia, eu e mais um companheiro de labuta montamos, iluminamos e preparamos todo o circo. As assessoras (sempre loiras) ofereceram chá, café, água, leite desnatado para os repórteres. Para nós, só depois que acabou, para não falar que esqueceram.
Outro dia, na cobertura das eleições, ao gravar o comentário de Eduardo Suplicy, percebi que ele ficou tão encantado com a repórter que nem sequer notou minha presença, gravando-o em sua frente. Não digo que o motivo foi a repórter, mas o fato de, ele nem sequer notar a câmera preta, luz, microfone e eu. “Essa matéria vai para onde, rádio!?” perguntou. Sim! 'A câmera na verdade é um super gravador que faz com que o ouvinte veja sua imagem através do rádio.' Será que não reconhecem uma câmera?
Outro fato interessante é quando perguntam: “Tá gravando?”
Os méritos pós-publicação vão para o repórter, ou para o apresentador. Atribuem tudo a ele com um único referencial: o “vídeo”. “Parabéns pelo vídeo, fulano!” E esquecem-se do cinegrafista, do editor e de todo trabalho que foi para finalizar o processo e finalmente assistir a produção.
Engraçado também que, quando a pauta é arriscada, como entrar numa jaula com emas ferozes, (para não usar de novo o exemplo dos leões) o medo sempre fica com o repórter. O cinegrafista fica quietinho, não chama a atenção nem das emas.
Essas emas estão por toda a parte. Não percebem o trabalho complexo para fazer um vídeo de qualidade. O que mais irrita são os ‘amadores’ que querem ser profissionais. Não sabem fazer, não sabem gravar e gravam de qualquer jeito, sem enquadramento, luz e eixo. E no final, dizem: “Tá um pouco tremido, mas dá para ver!”
Um cinegrafista jamais assina uma matéria, palpita na pauta ou sugere uma pergunta, mas um jornalista se arrisca nas imagens. Ósseos do ofício que nada, respeitem o moribundo gravador!
Mas, nem tudo são emas: lembro-me quando gravava o candidato à presidência da república, José Serra, aqui no prédio do jornal e ele ao me notar gravando-o dentro do elevador, soltou: “Pode desligar? Não me sinto à vontade...”

domingo, 26 de setembro de 2010

Fachadas

Quem dirá o que acontece na trinta e sete da esquina dois? Atrás da parede amarelada, pintada de azul e depois de verde, mora tanta gente que fica difícil distinguir quem é homem, mulher e criança. Na rua, são juntas, amontoadas, sobradinhos. Casas de pedra, tijolo e forro. Telhado de vime, vidro, madeira do teto ao chão.
São fachadas, onde moram mulheres, meninos e policiais. Onde existem pessoas de bem, de mal e gente de sal. Bem dá para ver a laje da casa dois e mal se nota a janela do banheiro da casa sete, que mais parece um depósito de ferro e guarnição desnecessária.
Há apenas uma casa com três andares, dois ocupados e um que ninguém mora nem limpa. Daria para viver duas pessoas que moram ali perto da viela, onde mal se alojam no cubículo sem número.
Tem um banco, banco simpático de praça no quintal do portão laranja. A mulher mora com o marido, o filho e a lembrança da filha no exterior. O cão late de longe e sabe quem passa na rua. Cão não gosta do homem da casa do lado que mora sozinho e trabalha de madrugada.
Na primeira casa da rua, ninguém tá, ninguém mora, nem mesmo o vento. Só folhas, fantasmas e folhetos. Na casa do lado, mora um sozinho, que sempre tem companhia. Em frente, mora uma velha mulher, rodeada de gente família, sozinha, sedenta em lascívia e enrugada pelo tempo.
São fachadas. São casas.
Pessoas que moram e que ninguém sabe o que acontece dentro de cada morada. Falam de um, falam de outros, imaginam, envergonham e pouco se sabe o que se passa do começo da rua para o fim dela, de cima da calçada para dentro da sala.
Quem dirá o que acontece na parte de dentro das fachadas? Num bairro pequeno, de gente modesta, que pinta a frente de casa para alegrar o dia-a-dia que passa e passa.

domingo, 5 de setembro de 2010

Varanda

Sempre de pisos frescos, de cores claras, pintadinhos no máximo com uma violeta rosada emaranhada com um galho verde musgo. Assim são a maioria das varandas, erguidas dos anos oitenta para cá. As mais sofisticadas perderam a graça, vêm embutida com o quintal e ninguém pisa ali a não ser a moça que lava as roupas. Varanda boa é aquela escondida, atrás da casa, onde os moleques corriam entre as roupas penduradas, com ralinhos no meio do espaço, quase sempre destampado com aquele cheiro de rio, que ao mesmo tempo que fede, agrada.
Sem roupas penduradas não se é uma varanda, assim como também sem varal. O varal desempenha um papel importante, pois por ele se distingue varanda do quintal, porém uma varanda que se preze, sempre tem roupa no varal, secando, esturricando. Enquanto a água da calça pinga rápido, pinga também o sutiã e o tomara-que-caia, uma água limpa e pesada, em espaços mais densos de tempo.
O varal é içado de ponta a ponta, com ganchos de ferro polido e feito com pequenos fios de plástico, em cores verde, azul e amarelo, que sujam as roupas mais claras enquanto o vento seco leva o prendedor de madeira. O prendedor, deve, ser de madeira, daqueles que deixam marca e não sujam, diferente do varal, que borra. Prendedores de plástico, com firulas desnecessárias não servem para nada.
Das pontes que ligam a cidade de São Paulo, dos bairros escondidos por onde passei parte da minha infância, sempre me encantei com elas, as varandas. Quando se entra na varanda, considere-se da família, pois lá está contida a intimidade de quem ali vive, assim como o banheiro, outro espaço que tenho certo labor.
Observava sem entender, como as pessoas mudam enquanto as roupas trocam de lugar no varal. De casa, na infância, avistava uma varanda vizinha, alta, ao lado de um terreno descampado. O varal levantado por tubos maciços de madeira que quando chovia, dava para ver as roupas quase caírem na rua. Sempre torcia para tal.
De onde eu estava, não dava para ver o chão da varanda, mas era legítima. Estava no alto da casa, embaixo era só garagem e eu sempre quis subir e ver o chão, piso ou o rústico daquele espaço de roupas. Queria conferir se o ralo era no canto ou no centro. Assim, dava para escoar a água que caía das calças, moletons, bermudas de pai e claro, da chuva.
Em casa a varanda não era tão interessante, pois sempre aos finais de semana revezavam com os ganchos do varal as pregas da rede de balanço, que mesmo me rendendo boas balangadas me tirava o imaginário de uma varanda com roupas e ralo e cheiro de piso.
As roupas da legitima vizinha eram quase sempre dispostas no mesmo lugar. Do canto, perto do terreno, eram colocados os jeans, sempre duas calças largas com o traseiro mais esbranquiçado que os joelhos, sempre com as costas da calça viradas para minha casa. Logo depois, vinha um moletom grosso, que pingava incessantemente, como se ninguém o tivesse torcido antes de pendurar. Um dia ouvi dizer que é preciso torcer bem antes de ir secar no varal. Depois do moletom quase sempre vinha uma toalha rosada com detalhes bordados perto das pontas. Depois, uma blusa amarela de mulher, e outra peça, também feminina, que até hoje eu não me lembro para poder distinguir. Eu via essas peças, pois elas eram sempre dispostas juntas no varal que era o mais visto da varanda de casa. Os demais ficavam atrás deste e eu pouco pude ver para disseminar o que estava lá pendurado, mas no balançar das roupas, via que tinha coisas dispostas atrás.
A dona da casa quase sempre, sorridente, cumprimentava a vizinhança e antes de anunciar uma trovoada, ela limpava o varal. Algumas peças, antes de irem para o armário de roupas, iam para uma espécie de mini varanda coberta, projetada antes da cozinha. Talvez fosse ali que ela lavasse todas aquelas peças, algumas desbotadas na bunda. Para mim, a única varanda sempre foi aquela que a chuva conseguia molhar.
Certa ocasião, ao voltar ensopado da escola, enquanto ainda chovia muito, vi jorrar água do cano dessa casa. Água que vinha pela calha com força, de lá de cima. Minha curiosidade aumentou em saber onde o ralo era disposto para poder escoar toda aquela água.
As vizinhas comentavam entre si, das roupas na varanda. Percebiam silenciosamente como a dona da casa era cuidadosa ao dispor daquela maneira todas as roupas. Comentavam até quando as calças eram trocadas e colocadas no lugar das que apresentavam algum cansaço. Ouvi pelos cotovelos de outra, que as calças eram as que o marido usava no trabalho e em certo momento até taxavam a dona da casa como relaxada por permitir que o marido fosse ao trabalho com calças quase que rasgadas. Eu não tinha a mesma opinião, pois as minhas eram piores, mas as calças não passavam mais de dois meses no varal e logo depois outras novas e mais resistentes tomavam os mesmos lugares, apesar de terem as mesmas cores e tamanhos.
A varanda dessas vizinhas era pobre, sem interesse, pois nada tinham a não ser uma camisa ou calcinhas dispostas de maneira esculachada. Nunca me interessou. Talvez nem à elas mesmo.
Bem cedo, antes de saírem ao trabalho, as roupas estavam lá, dispostas nos mesmos lugares, com cores e balanços até decorados pelos vizinhos mais próximos. Comentavam das calças, mesmo estando impecavelmente limpas, das toalhas e da peça feminina que eu não sei distinguir. Outras dúvidas imperavam nas mentes mais futriqueiras, como por exemplo, a que horas a mulher lavava as roupas para logo cedo estarem exatamente dispostas no varal e conseguinte na varanda, ou também se eram roupas pouco usadas, pois sempre eram as mesmas, nos mesmos espaços do varal e nos mesmos dias da semana.
Quando chovia fora de hora, as roupas encharcavam e eram deixadas ali por mais tempo. Conheciam pouco o marido, que era do tipo grandalhão com uma barriga enorme, saía cedo e voltava no começo da noite. Sempre com calças jeans, desbotadas na bunda e de barra feita. Pude reparar na barras só no corpo do homem, pois na casa, no varal, na varanda, a barra ficava perto do chão, que eu também queria descobrir.
Um dia, ouvi comentários mais acalorados e não entendi o motivo da euforia. Os olhares das vizinhas de varanda nua lançavam-se para aquela varanda alta e decifravam, como quem decifra cruzadinhas, as novas roupas colocadas no varal.
Não tinham mais calças e nem sequer a toalha rosadinha. No lugar, duas peças femininas mais coloridas e com decotes bem consideráveis. Invés da toalha comprida, um vestido longo com as costas a mostra.
Demorei para perceber que o marido dessa vizinha, há um bom tempo não aparecia na rua e só constatei isso quando no lugar das calças, havia corpetes, saias e calcinhas de renda. Diferentemente de antes, essas roupas jamais ficavam tempo o suficiente para a água da chuva encharcar. Não havia mais roupas de homem e a cada dia as roupas ficavam mais ousadas e coloridas. Balançavam levemente com a brisa e batiam umas nas outras.
Aos poucos, a vizinhança parou de notar a varanda e começou a notar a mulher. Estava mais sorridente, com fisionomia renovada e até deveras com um corpo mais atraente.
Eu, continuava a observar a varanda de longe e também a água que jorrava do cano em dias de chuva. Água que caía no piso, vinha pelo cano e morria na rua, na calçada da rua. Água que vinha de lá de cima, da varanda.

domingo, 22 de agosto de 2010

O frio de mim

"O que me levou a escrever este texto foram alguns choramingos que tive em meus ombros. Amigos, que choraram a perda de um amor ou outros que foram vítimas de um término repentino de relacionamento. Por serem meus amigos, também fiquei triste por vê-los lamentar enquanto sofriam a ausência de seus seres amados e sempre estive pronto para ouví-los e até chorar junto. A dor de um amor que não corresponde é única e nenhuma é igual a outra"

Seus olhos estavam fechados. Embora ainda vissem suas vísceras brancas e a coloração apática do seu olhar, eles estavam crus, como sua alma estava cru e sua pele e o seu caminhar. Ele não via nada. O inverno em seu fim, o sol já anunciava a renascença, ainda faltando alguns dias para a primavera. Ora ou outra, refletia sobre as coisas que já havia conquistado com seu pequeno planejamento, mas se esquecia de tudo quando a lembrança do motivo daquela tristeza retornava à sua mente.
Sim, o sol voltou para mostrar que o frio não era mais ali, mas ele não o via. Não sentia o sol, não via as pessoas e se infiltrava cada vez mais no íntimo frio que sem perceber cultivou durante tanto tempo, confundindo com uma esperança de felicidade alheia. Havia depositado em um outro alguém, grande parte de suas horas e de dentes amarelos. O cheiro do corpo ainda, o risco da face era nítido e tudo parou assim. Seu tempo estagnou-se e nem sabia explicar por que mesmo com tanta ausência, não conseguia chorar.
Não tinha família, nem mãe, nem pai nem raio algum, tinha o oposto e não queria tê-lo somente. Já o teve tempo suficiente para querer outro alguém. Queria ter consigo quem já não mais queria tê-lo com os mesmos afetos de anos passados. Desejou voltar, desejou morrer e ao mesmo tempo desejou viver para provar que ainda é possível.
Viu a dor passar em outros parâmetros, em outras formas e em outras pessoas, mas essa dor, exclusivamente essa dor era dele e intimamente ela doía e doía mais do que todas as outras, do que em todos os outros. Era sua, de uma forma gradativa. Havia quem imaginasse sua dor ao não possuir mais a pele branca e as camisetas verdes perto de si. Ouve também quem o via e sabia qual a intensidade desse sofrimento.
A casa nunca esteve tão grande, os amigos distantes e ninguém o entendia, mesmo explicando e chorando em minutos exatamente iguais. Os sorrisos alheios o irritavam e mesmo ao lembrar de momentos felizes pessoais, irritava-se com facilidade por não enxergar atrás das flores que um dia também sorriu e acreditou.
Haviam flores, mas ele também não as via. E entre as flores havia pássaros que mesmo sem notá-los era possível ouvir o seu canto e saber que eles estavam ali, cantando. Havia o canto, mas não ouvia, o canto de nenhum outro. Era uma imagem parada em sua vista, que nem mesmo ele sabia como fugir. Virava o nariz, o tronco e parte do seu corpo e o frio continuava congelando sua antecedente primavera.
Olhos alheios assistiam essa dor construída inocentemente e lembravam dos vários sentimentos que também, um dia, o desnortearam durante grandes primaveras e sabia que pouco podia fazer, pois os olhos brancos não enxergavam os alheios. Nem quem pudesse dar objetos para serem quebrados, nem quem pudesse tentar convencer o dono da imagem estática a se fixar nele novamente, nem quem pudesse pedir aos céus para que isso tudo tivesse um fim instantâneo, nem ninguém podia ausentar esse silêncio íngreme.
Era das músicas, das epígrafes e dos sonhos que o acordavam durante a noite e não era mais de si, estava entregue, solto e manipulado por um desconhecido rumo que perseguia e levava seu ser ao impetuoso e gélido inverno da alma. As feridas mais intensas eram abertas com pequenas palavras.

domingo, 8 de agosto de 2010

O menino e a rua

O menino corria pela rua. Seus olhos integravam-se ao azul do céu que cobria sua cuca quente. Seus pés mais pareciam cascos no áspero chão que pisava.
Passou pela banca de jornais, pelo poste de luz e pelo beco esburacado. O homem da banca seguiu-o com os olhos até cruzar a esquina. Um pouco antes, frente à loja de discos, o asfalto mudava seu ladrilho. O chão tinha duas cores e o piso amenizava a estranheza daquela rua cinzenta.
Ao cruzar a rua, a luz do sol lhe penetrou os olhos. O menino baixou a cabeça e novamente a levantou. A bermuda rasgada pelos bolsos e as costelas a mostra acima do umbigo raso. A sujeira era visível entre as cores bordadas no trapo da cintura. Levava em uma das mãos uma pequena gaiola de ferro que batia ora nas batatas magras ora no joelho.
Seus passos eram firmes e o olhar não desviava o horizonte. As pessoas viam aquele pequeno pássaro correndo descalço em busca de algo precioso. Sua imagem aparecia entre as pessoas que andavam pela avenida.
Passou pela rua principal, pelos carros parados e pelo senhor que conserta guarda-chuvas. Sua imagem logo ao aparecer, sumiu entre as grades da escola onde outros meninos brincavam no pátio. O farol fechou e os pés pisaram as faixas. Não teve tempo de parar. Não esbarrou em nenhum homem, em nenhuma mulher.
Na praça, desviou dos bancos e pulou um cercadinho. Seu olhar desviou-se rapidamente para as flores e logo voltou ao seu destino. Tinha sonhos e não sentia o frio, embora houvesse raios de sol entre as árvores, fazia frio entre os galhos e a blusa mais quente estava no cabide que não era seu.
Ouvia o canto dos pássaros que compartilhavam uma melodia triste de fim de tarde.
Passou em frente a varanda da velha que ainda não terminara seu chá. O cão apenas levantou a cabeça ao ouvir os passos do menino se aproximando, mas não ousou latir pois sabia que o menino não corria de ninguém, apenas seguia seu caminho.
A gaiola tilintava em um som baixo entre o ferro e os ossos do menino.
Ao longe, o jardineiro que trabalhava na grande casa pelos fins das quadras, viu a mazela imagem acompanhada por sua sombra. A sombra o seguia onde quer que fosse, mesmo que o menino não a visse, mesmo que não a percebesse, mesmo que não houvesse luz.
Naquele fim de tarde, ouvia-se o vento brando cantar ao pé do ouvido e o sol já avermelhado no céu que cobria seus passos. Passou pelas sacas de arroz e levantou uma singela poeira na calçada da venda. O dono levantou a pestana e apenas olhou para fora. Não viu o menino passar, apenas ouviu seus passos sumindo. Voltou a ler o jornal.
As casas com telhados quentes sentiam aos seus pés a correria. Houve quem esperasse a noite cair e as luzes acenderem-se. O som da música no rádio de pilha.
Os passos iam se cansando e o menino ia diminuindo, embora não estivesse determinado a parar. Chegou perto do beco estreito com o chão asfaltado por pedras desenhadas. No fim do beco estava uma pequena macieira velha e encurvada. Não havia bancos nem rosas no fim do beco, apenas a árvore.
Houve quem quisesse cortá-la dali e plantar outra. A macieira.
O menino entrou no beco e seus passos ficaram lentos e silenciosos. O céu coberto por um tom alaranjado forte e algumas sombras do beco confundiam-se com a rua. Os muros não eram altos e foi ali que o menino parou.
Sentou-se embaixo da árvore e colocou a gaiola ao seu lado.
Houve também quem não viu o menino passar. O menino parou para descansar. Encostou a cuca no tronco e esticou os cambitos. O joelho estalou.
Viu-se sozinho no fim do beco. Não ouvia barulho nas casas ao redor embora fossem poucas e insignificantes. Apenas olhava para frente com os olhos pensos. Em nada pensava, apenas sentia o vento em seu pescoço passar para as orelhas.
Olhou para a gaiola vazia e a aproximou dele. Passou o braço por ela como se fosse capaz de sentir algo por aquele objeto morto. Fechou os olhos e sentiu seu coração bater.
A noite já havia caído e o menino não tinha sono. Olhou para o céu e viu a lua. Sim, ela havia chegado.
Pegou na aba da gaiola e levantou-se. A árvore entristeceu-se.
O menino tomou novamente seu rumo. Algumas estrelas brilhavam no alto, o vento havia cessado e apenas passara pelas folhas da velha macieira. E o menino corria pela rua.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Privacidade

Essa crônica nasceu no terceiro ano de faculdade,em 2008, quando uma conhecida pediu que eu fizese um roteiro para um curta metragem. Eu o fiz. O tema era "Privacidade"
Aproveitando esse embalo do post passado (278, 4º andar) publico esse novo texto.


O lugar continuava quieto. Na calçada as folhas não haviam sido varridas. A rua vazia e o sol já indo embora. A vizinhança não conhecia o homem que morava no mil e dezessete, afinal acabou de mudar para o lugar.
Seu jeito era estranho, comentava consigo dona Cícera, mulher que morava há mais de quarenta anos no bairro, número noventa e dois. Achava que, por ser a mais velha, era dona do lugar e tinha regalias a mais. Só achava.
Ao mesmo tempo que reclamava, debruçada sobre a estátua do menino Jesus na faixada de sua morada, observava a jovem vizinha que aproximava-se. Moça nova morava com uma irmã e a mãe. O pai ainda não estava com elas, mas não iria demorar visto por suas noitadas regadas a álcool e libertinagens. Longas noitadas desde quando elas chegaram.
Ao ver a moça, Cícera deu um sorriso e acenou com a mão. Nenhuma palavra saiu de sua boca. Estava ansiosa para a chegada da vizinha Luíza, com quem trocou horas de vida alheia.
O homem surgiu. Cícera observava pronta para ser educada. Passava sobre os monumentos que estavam ali e voltou de onde havia saído.
Cícera levantou o pescoço e tentou enxergar o interior do lugar. O homem era estranho, nem olhou pros lados, só andou e entrou.
Ali poderia estar a explicação para o motivo de sua psicologia negativa. Aquele lugar há anos ficou vazio. Após o suicídio de Bira, um outro homem que não resistiu sua paranóica depressão, suicidou-se perto da entrada do lugar, com uma corda de amarrar talhas de madeira. Desde então, tudo era deserto.
Ali era um bairro. Onde morava.
Sua morada era grande, vistosa e toda feita pelos filhos em sua homenagem. Sentia-se orgulhosa com isso. Só estranhou a ala inferior a sua estar sendo habitada, sendo que ficou deserta durante quase dez anos. Ninguém aceitou morar ali, visto por histórias mal contadas.
A chuva estava por vir. O tempo fechou e o céu ficou nublado. O sol deu lugar às nuvens que se juntavam em formas diferentes.
Foi até o quintal para ver a rua. A moça nova apareceu andando. Não entendia onde estava, mas tinha no rosto uma certa serenidade.
Cícera olhava e estranhava aquela atitude, tal serenidade.
O quintal do homem era sujo e cheio de folhas secas.
Como era a mais velha, conhecia as histórias do lugar. Também sabia da índole daquela moça que não era das melhores. Imaginou que já estava de trambique com o homem. Ou de safadeza.
Na rua passavam, fora dos muros de seu bairro, algumas pessoas. Cícera cumprimentava e ninguém respondia. Já estava acostumada com tal reciprocidade.
Virou-se e viu alguns de seus conhecidos encostados em suas novas moradas. Alguns viviam ali durante anos, outros chegaram há pouco tempo. Ela era a mais velha e destacava bem isso. Viu muita gente chegando de várias maneiras, até que foram esquecendo aquele lugar que era chamado de bairro.
Contava-se no dedo quem ainda ficara ali.
Cícera não sabia ao certo para onde as pessoas iam quando dali sumiam. Sabia que um dia iria também, embora não fizesse planos para tal.
Viu novamente o homem passar ao longe. Não sabia onde estava, nem ao menos quem era. Haviam algumas meras lembranças em sua mente de quem foi quando ainda não estava ali. Agora já havia se esquecido.
Ela quis ajudar. Aproximou-se dele e olhava em seus olhos.
Ele não a via.
Continuava andando. Seus olhos e sua expressão eram de angústia. De sua boca não saia um ruído.
Ele não conhecia ninguém ali e não aceitava aquela situação. Cícera acostumada, sabia ali, quem ficaria por algum tempo e quem nem ao menos entraria no bairro.
Caminhou satisfeita por estar bem onde estava. A moça, tranqüila em sua expressão não estava mais no bairro. Embora havia acabado de chegar, partiu por aceitar sua condição e ter feito obras que lhe deixaram satisfeitas.
Cícera entendia a privacidade do homem e sabia que naquele ponto não podia mais ajudar. Ele teria que encontrar seu caminho, sozinho.
Sua morada era vazia e fria. A do homem também.
Após a morte, é cada um por si.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

278, 4º andar

“Sentado em uma cadeira azul de roldanas móveis, questionou se eu queria mesmo escutar. Eu disse que sim. Então, ele começou a contar”

Parte I

Disse que o apartamento onde morava com o pai, há uns oito ou nove anos, estava no quarto andar de um prédio próximo à linha verde do metrô. Era um apartamento relativamente grande para duas pessoas, ainda mais para dois homens, que costumam ter poucas coisas.
Ele ainda não tinha entrado na faculdade, mas já havia terminado o médio. Namorava uma garota da mesma idade que ora ou outra visitava seus cômodos. O pai trabalhava como entregador e durante a manhã, tarde e início da noite estava na rua, ou melhor, nas ruas, andando, encaixotando e dando destino às pacotas de madeira oca. Tinham uma empregada, nordestina de fé, que tinha no rosto um semblante cansado, visto por alguns detalhes de rotina pesada em banheiros de outras famílias. Apresentados os personagens, embora ainda haja outros por vir, digamos que não são somente estes que fazem parte deste enredo.
Ele, o autor da história e vivente dos fatos, dizia que do seu quarto ouvia-se alguns estalos vindos da cozinha. Desconsiderando que as lâmpadas queimavam com freqüência, as casas em geral estalam, seja nos móveis, na parede ou até mesmo nas janelas que foram mal fechadas. Engraçado o fato de algo inanimado, ora ou outra, estalar, mas assim o são, mesmo os apartamentos. Talvez tenha sido isso que ele tenha ouvido da cozinha.
A situação começou a ficar desagradável quando algumas louças batiam umas nas outras durante a madrugada. Antes de dormir, pegava na cozinha um chá ou suco e, depois, o vidro, a panela e as vasilhas de plástico pareciam ser vasculhadas vagarosamente, em alternâncias de ruídos. Somente ratos poderiam fazer essa baderninha, mas não.
Contou também que quando saía de casa, ou voltava, tinha a impressão de ver um semblante humano, raquítico passar pelas ventas. Ora saía de traz da porta, ora estava no quarto na beira da porta. Esse suspense todo o fazia acordar no meio da madrugada, com medo e com a sensação de que alguém estava observando-o, bem de perto e mesmo quando acendia a fronte do celular ou até a luz do quarto, não via nada, mas algo estava com o que quer que seja mirando-o enquanto dormia. Já chegou a ter a impressão de ser despertado, com uma figura sólida encostando em suas costelas. No cansaço dormia novamente, mas no outro dia, analisando os fatos, estranhava esses despertares.
Eram católicos, ambos. Pode-se dizer que não praticavam a fé dos domingos ou dos jejuns, mas tinham na raiz um tanto de alicerce apostólico. Vez em quando, rezava, mais pela situação de medo do que prestação de contas com o divino.
Num sábado, depois de um feriado, o pai resolveu gracejar nas paredes e pendurar umas molduras pintadas a óleo. Eram dois ou três quadrinhos que foram dispostos entre a parede da sala e o lavabo. A empregada, vinha pelo elevador de serviço e todos os dias passava pelo vidro que antecedia a porta principal, que dava acesso à sala. Costumava engomar as roupas na cozinha, enquanto assistia numa tela CCE de 15 polegadas, suas novelas de tarde.
Ele já sabia que ao abrir os olhos de madrugada, ouviria o balancear das louças. Ela não.
Um dia, ele trouxe a namorada para dormir em casa. O pai chegaria tarde e já estava cansado de trocar telefonemas demorados para conseguir pegar no sono. Ela estava com ele esta noite e pela primeira vez, chegou a querer ouvir os barulhos para compartilhar do medo com a garota. A madrugada foi silenciosa.
No dia seguinte, a empregada, bateu sutilmente na porta e disse que o café estava pronto. Ofereceu para a namorada, pois sabia que ele não gostava de café. À tarde, saiu pela cidade e voltou à noitinha, quando as luzes alaranjadas do poste invadiam levemente a sala.
Era comum acender todas as luzes, mesmo para atravessar de um cômodo a outro ou para ir ao banheiro no meio da noite, o que evitava. Do medo do escuro, talvez fosse explicado pelos medos que sentia quando criança, ou por um medo universal do que não se vê.
Um dia, ao acordar, ouviu gritos de um homem vindos da sala. Pensou ser nas proximidades ou na rua, mas eram nítidos, até altos. Não entendia o que o homem pronunciava, mas estava irritado com alguém.
Saiu descalço do quarto e o pai o impediu de chegar na sala. Questionou se havia alguém dentro da casa e o pai não queria dar respostas imediatas.

Parte II


Depois de uns quarenta minutos de gritos e bravios pronunciamentos do homem, sentaram-se os três enquanto o homem explicava os fenômenos que vinham acontecendo. O que demorou para dizer e saiu com certo desconforto, foi a afirmação que eles não estavam sozinhos na casa. O motivo do soco nas costas do pai durante o banho foi o que trouxe aquele estranho em casa. Ele estranhou seu pai não ter contado, mas como todo descrente, só aceitou o fato quando caiu no banheiro jurando que alguém o bateu por trás.
Um parêntese: Isso me soou óbvio demais, lembrei de Psicose de Hitchcock, mas ele não parecia mentir. E não estava.
O homem perguntou se alguma reforma havia sido feita na casa e o pai alegou que apenas os quadros foram recentemente colocados.
- Um morador antigo, ainda permanece no apartamento.
O pai não acreditou e pediu detalhes.
- Uma senhora, morreu aqui, e não quer que sejam feitas mudanças em ‘seu’ apartamento.
O pai, descrente chamou o porteiro, para perguntar sobre os antecedentes do lugar. Preferiu o homem dos portões, por sua simplicidade nas palavras e por não saber burlar algumas situações, mesmo tentando.
- Uma velha morava aqui, disse o negro. Morreu aí dentro, não lembro do quê. Os filhos venderam depois para um casal antes do senhor, mas eles mudaram para outro estado.
Atônitos, passaram a acreditar na história do homem que a pouco gritava na sala, e que sugeriu uma série de orações e rezas oriundas do espiritismo, para afastar quem, ou o quê estivesse ali de intruso, ou intrusa, no caso da velha.
Contou-me que o fato de ser uma senhora podia amenizar o peso de, se caso, algum dia chegasse a ver algo. Afirmou que não agüentaria e entraria em estado de choque. A figura de uma anciã andando pela casa, remexendo as louças ou mesmo de perfil ao lado da porta fazia com que sua cabeça projetasse imagens que não existiam. E sabia que não existiam. Diferente dos barulhos que rondavam seu quarto e não passavam das paredes da cozinha para fora do apartamento.
O pai pediu sigilo, referindo-se à empregada. Visto pelo salário que pagava e pela confiança conquistada em algum tempo de louças lavadas, sem ruídos.
Depois, em seu quarto ouvindo o velho rock’n’roll, em volume baixo e solos trabalhados, começou a remoer as frases que o homem jogou ao ar enquanto explicava quem está na casa, como primeira pessoa. Ele interpretou e raciocinou apenas a parte ‘... há mais alguém aqui’ e nada depois disso teve sentido ou foi entendido, pelo menos por ele. O fato extraordinário em imaginar que um ser, ou um espírito que seja, luta mesmo depois da morte por um espaço terreno soa até engraçado, mas esse gracejo mórbido acaba quando a luz do seu quarto se apaga e a porta lentamente vai se fechando, numa velocidade incrivelmente demorada. Imediatamente levantou-se e tocou o interruptor. A luz não acendeu. Correu para a sala e conseguiu iluminar o cômodo. Olhou para o quarto que ainda tocava música. Quis sair do apartamento, olhou pela janela e viu a rua. Estava vazia, a não ser por um homem sentado na porta de um bar de esquina.
Retornou ao apartamento onde estava todo seu corpo. Irritou-se e gritou com tom de mandamento, ordenando que a coisa o deixasse em paz. O espírito tinha que entender que eles que pagavam o aluguel e se a briga fosse pelo lugar, mesmo no além haveria de ter acordos, financeiros ou de qualquer outra ordem.
Voltou ao quarto, ainda falando alto, não querendo ser importunado. Aumentou um pouco a música que serviria de alívio para aquele momento de repúdio com uma senhora intrometida e invisível.
Quando percebeu acordou no meio da madrugada. Não soube como adormeceu, mas acordou e com um barulho. Alguém andava dentro do quarto. Sentiu um arrepio nos pés que repentinamente passou para as costas, o que o obrigou a se comprimir na cama e perceber que o som estava ainda ligado. Embora o disco tivesse acabado de tocar, no visor marcavam exatamente duas da manhã. Não era som de passos que estava dentro do quarto, mas rangidos que vinham da porta e da parede atrás dele. Embora pudesse ser milhões de outras hipóteses, o maldito espírito era o que rondava sua cabeça. Dormiu novamente, mas só se deu conta disso quando acordou no outro dia com a empregada passando roupa na sala, com sua filha de sete anos, ao lado.
A empregada não conseguindo disfarçar sua ansiedade, deixou o ferro quente e andou dois passos segurando a mão da menina, para falar com ele. Assim que o viu sair do quarto, a mulher com os olhos lacrimejantes perguntou quantas pessoas estavam com ele na manhã passada, quando estranhou uma festa acontecer às sete da manhã de uma quinta-feira quando chegava no apartamento para mais um dia de trabalho.

Parte III - Final


Chorando. Era assim que a empregada estava, segundo ele, mas num choro tão miúdo que se confundia com um bocejar mais volumoso, pois ambos fazem os olhos ficarem molhados. Sua angústia, ao mesmo tempo que transmitia um sentimento de dó, dava medo pela aparência da mulher.
Contou que, ao sair do elevador, ouviu vozes de pessoas conversando, murmúrios de sílabas misturadas e passos para todos os lados no cômodo interno. Visto que estava ainda no corredor que dava acesso à sala principal, entrou por outra porta, direto para a lavanderia e não quis incomodar as sucessivas conversas de dentro da sala. Não conseguiu identificar nenhuma voz, como a do patrão ou do filho dele, mas seus tímpanos logo reconheceram timbres masculinos e agudos femininos, mais agudos que o convencional. “Uma festa” pensou “... mas essa hora?” pensou logo depois.
Deu início às tarefas do dia, entre panelas e a mesa que ainda estava com louças do jantar. Em pouco tempo ocupou-se com a cozinha e não se deu conta que as vozes haviam sumido. Não ouviu nem porta da sala, nem o apito do elevador ao abrir suas portas magnéticas. Estranhou. Chegou perto do box de vidro da sala, tocou a ventana que a ajudou a abrir e viu o vazio, a sala como havia deixado no dia anterior. Era quinta-feira. Manhã de quinta, com sol e sem ninguém no apartamento, além dela.
Teve medo do sofá, do rack, da televisão e de toda a sala, ausente das pessoas que falavam freneticamente há uns dois minutos, ou menos. Tentou lembrar como pôde não ouvir as vozes sumirem e se realmente aquele murmúrio viera daquele lugar quando chegou. Não conseguiu pensar, estava parada, sem entrar nem recuar. Surpreendentemente, a sala estava quente, abafada e pôde jurar que pessoas acabaram de sair dali. Pensou em Santa Fátima, Nossa Senhora Aparecida e por fim, disse baixo o nome de Jesus, santo e misericordioso. Pediu um perdão baixo por algum pecado que podia ter cometido e invocado aquelas vozes para lá. Não, a sala estava vazia e agora, o autor dessa história ouvia sua empregada, contar e soluçar sobre o ocorrido daquela manhã de quinta.
A pequena menina, que agora já tinha sua mão apertada pela mãe, olhava para o rosto molhado e triste dela e quase chorou junto, mas teve vergonha do filho do empregado que fixamente prendia seus olhos no chão ao ouvir a mulher e ver a menina ao lado.
- Rezei o terço, na verdade o rosário e agora só vou trabalhar aqui se minha filha puder vir comigo. Sozinha aqui, eu não fico mais.
Ele disse, contando-me, que ficou sem palavras, sem reação e entenderia se a mulher quisesse ir embora dali, pedir demissão ou mesmo abandonar o emprego. Aquilo pareceu afetá-la mais psicologicamente do que fisicamente, com um medo de algo que não podia explicar. Sua raiva estava aumentando e naquele momento permitiu (ou até pediu) que ela fosse embora, queria ficar a sós, sozinho de verdade.
Assim que a empregada saiu, foi até a geladeira, pegou um pedaço de mortadela e jogou num pão de forma sobre a mesa. Comendo, andou pela casa e olhava com um certo poder de superioridade todos os cômodos. Desde a sala e especialmente a cozinha de onde vinham os rangidos e o bater das louças na prateleira.
Ouviu a porta da sala se abrir. E fechar.
- Pai? Gritou desejando que fosse o pai. Não era ninguém, nem nada.
Começou a brigar, esbravejar, jogar palavras às paredes do apartamento enquanto pedaços de pão e mortadela recém mastigadas surtiam de sua boca. Xingou o espírito, amaldiçoou a vida que aquela velha teve, insultou na cozinha, no quarto e prometeu que iria afastá-la dali. Era sua casa, seu apartamento e estava ficando difícil essa convivência quase real com algo inexistente. Chorou, quis rezar e acabou chutando a mesa de centro da sala. O vidro quebrou. Sua fúria aumentou e foi à cozinha derrubar toda louça que estava na prateleira. Gritava, chorava junto, machucou a mão, não percebeu.
Quando parou, o apito do elevador soou longe. Ouviu passos e logo o barulho do trinco. O sangue escorria em sua mão e assim percebeu o quanto o apartamento estava escuro, mesmo com o sol lá fora.
Sua vista ficou turva, os olhos encheram de lágrimas e uma fúria invadiu sua mente, mas não se levantou. Viu uma sombra cruzar a sala e entrar na cozinha.
- Vamos nos mudar, disse o pai.
No mesmo dia, mais a tarde, nenhuma palavra foi proferida sobre as panelas no chão que sequer foram arrumadas no armário, ou sobre o sangue em sua mão que já havia coagulado. O pai parecia triste, demasiado amedrontado e não proferiu nenhuma palavra a não ser para questionar sobre determinada peça de roupa ou dar uma ordem boba ao filho. Já ele, o filho, não questionou o que o levou a tomar aquela decisão tão repentina de mudarem de apartamento, mas se fosse para se arrepender, preferia o fazer quando estivesse longe dali e não contrariou o pai.
- Aluguei dois cômodos na Consolação. Ficamos lá até conseguir alugar esse aqui ou mesmo vender.
Não desejava que ninguém morasse ali, visto pelos tormentos que vivenciaram durante meses entre aquelas paredes.
Um barulho vindo da sala, como um líquido derramando, chamou a atenção de ambos, mas o pai em um tom sereno e cansado incentivou a não averiguar.
- Nenhum móvel da sala será levado. Deixe tudo ali.
Saíram do apartamento levando apenas as roupas e alguns pertences. O caminhão viria mais tarde para levar os móveis do quarto e cozinha. Pormenores, como panelas, vasilhas e os quadrinhos da parede seriam todos queimados, pelo zelador. Isso foi o que o pai disse enquanto desciam as escadas.
No outro dia, a empregada tocou a campainha às sete e quinze da manhã. Em demoradas pausas, tocou cinco vezes e toda vez, ouvia a campainha ecoar dentro do apartamento vazio. Entre um toque e outro, se negou a olhar pelo olho mágico. A filha a acompanhava.
A maçaneta da porta girou levemente e o pai abriu com um sorriso largo e com o sol invadindo toda a sala.
- Entre, disse.
Ela entrou e logo o filho, longe do apartamento, lembrou-se que a porta abriu duas vezes. E fechou duas vezes.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Festival Latino Americano de Cinema em SP

Entre os demais que foram conferir o evento, eu estava trabalhando, mas sondando os cineastas que andavam por lá e que traziam consigo las películas prontas. Penso o quanto já fizeram para gravar e montar suas produções. Com fotografias belíssimas e recortes interessantes nos enredos, o cinema argentino, boliviano e também o brasileiro, erguem o chamado 'estímulo' para um novo cenário nas produções latinas.
Vídeo gravado no dia 12 de julho de 2010, no Memorial da América Latina, na abertura do Festival Latino Americano de Cinema em São Paulo. Fomos conferir o evento e o filme "Água fria do mar" da Diretora Paz Fábrega, super jovem e nos cedeu uma entrevista. Imagens e edição desse que vos escreve e anseia também por una película particular futura.


quarta-feira, 7 de julho de 2010

Liberdade, liberdade


Embora eu (ainda) não use Black-tie, já me sinto muito próximo de compromissos inadiáveis onde tenho em mãos o livre arbítrio de desistir ou não de tais afazeres. Levei-me a refletir sobre a tal liberdade enquanto, sentado no sétimo andar do prédio onde todos os dias ganho o pão que o diabo amassa comigo, estava a degustar de comida pronta em montes, em um dia ligeiramente ensolarado. Da vidraça fechada em minha frente, via ao longe duas das chamadas montanhas-russas a fazer pessoas gritarem e eu, a vê-las girar e voltar em trilhos de ferro bem estruturados, invejava em pensamentos aquele momento de êxtase momentâneo alheio. Mesmo em pouco tempo do passado, eu também já ter corrido naqueles trilhos, me questionei quem estaria sentado nos carrinhos coloridos em plena terça-feira, gritando, soltando gemidos de felicidade, enquanto eu, terminaria o bife e voltaria aos afazeres maçudos. Não só na montanha, mas também no kamikaze, na queda livre ou no algodão rosa de cor doce.
Eram adolescentes, em sua maioria, de pais-alicerces ou pai-dinheiro, que ainda, ou quem diga nunca, chegariam a preocupar-se com o pão e azeite para as crias.
Voltando ao conceito libertário, ou aos pensamentos que o rodeiam, questionei-me (ou a Deus, ou à vida, ou a quem queira responder) o que é ter liberdade, ou ser livre para divertir-se às terças, ao meio dia e pouco e ainda sorrir? Se ter um trabalho, sendo ele digno, não poderia pensar em cargos mais políticos ou que envolvam propina ou diplomacias mais rígidas. Nestes cargos, têm se muito dinheiro lavado, de outros e quase sempre os filhos é que gozam dessa vantagem. O pai, muito faz, paga mulheres da vida que executem bem o sexo enquanto fecham o vidro do carro para assim poderem gozar, agora literalmente.
Liberdade, pode vir também em forma de um bom emprego, um trabalho que seja ingrato no salário, mas te dá estabilidade ou instabilidade, depende do quanto você busca em termos financeiros para alternância dos significados. Porém, há controvérsias nisso tudo e nesse papo de voar sem limites. Em um mundo capitalista e mediocrático, ou trabalha-se para garantir a polenta e não sobra restos de tempo para as montanhas russas, ou se tem um maior que banque essas futilidades com sol no meio da semana. Ao mesmo tempo que abocanho a escarola, lembro que aos finais de semana, me sinto perdido, vagabundo até ou mesmo sem o chamado ‘ânimo’ para ir ao parque e apenas não fazer nada. O gosto teria mais tempero se naquele momento, naquele do almoço, eu deixasse o sétimo andar e fosse correr aos braços da liberdade que me garantiu aquele parque, que até então estava pequeno pela altura que eu estava.
Outro conceito, claro pensado e analisado por este que vos escreve, é ter férias, muitas vezes mal remuneradas, mal aproveitadas por ter prestações a pagar. A idade aproxima a aposentadoria e quando isso acontece, virão as rugas e o cheiro de tecido velho, que a labirintite não vai deixar cair de uma altura de sessenta metros içado a um cabo de aço.
E assim, fica no ar o que é ser livre, ter liberdade, viver as liberdades da vida. Ter emprego e não dinheiro? Dinheiro, quem pague e nada de prestígio profissional? Dinheiro, prestígio, beleza, quem pague e dias livres? Nestas arestas tenho medo da monotonia, isso com ou sem trabalho. Aguardar a próxima estação e nela descer ou pegar o primeiro trem e nele embarcar? E nisso juntam-se tantas outras pendências, como a ginástica, a balada, o sexo, um amor (que é o mais complicado deles) e instintivamente o emprego que nos tira, nos dá e nos questiona sobre essa liberdade auto-assistida.

Nota: “Depois, neste mesmo dia, já noitinha dentro do carro, ao filosofar com minha mãe sobre o texto acima, ela, me escutando e ouvindo o cri-cri do grilo, soltou: ‘Tudo é tão simples como o som do grilo’ Calei-me.”

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sobre lindos e feios

A beleza abre o apetite. Há quem diga que ela se esvai com o tempo e quem acredita no eterno brilho. Controvérsias.
Ser ou estar bonito, é questão de dia, hora, aura, momento. O ser humano busca incessantemente a beleza do corpo, da alma, do olhar e esquece que a mente processa a beleza que o corpo proporciona.
Há quem prefira ser lindo e há quem queira ter um lindo. Para outros a beleza está no interior, supostos ingênuos que deveriam saber que admirador de beleza interior nada mais é do que decorador. É o primeiro sentido que se vê, a primeira das questões no vestibular da aproximação e também o primeiro prato a se colocar na mesa, bem ao lado da conversa sobremesa. Ter papo é tudo, unido logicamente de um hálito hortelã. Bom papo de enxofre não agrada nem o diabo que se acostuma com tais fatos.
Futilidade e belas curvas funcionam bem uma ao lado da outra. Há milagres que andam e se escondem por aí. Difíceis, ás vezes fáceis, mas sempre com uma aliança no dedo. Pessoas bonitas e inteligentes têm compromissos, senão não teriam essas duas virtudes em um só corpo.
O que tem bom papo, hortelã e camisa engomada não agrada no rosto. É inteligente, sucedido e bem informado de assuntos sexuais, mas na teoria. Vive solteiro a procura de uma saia rodada ou um dinheiro mal empregado.
Há quem diga também que ter um feio é melhor do que ter um lindo. Não há cobiça, não há perigo e há carinho, não exatamente nessa ordem e nem numa veracidade completa. Tudo em suas exceções.
O lindo nasceu assim e sempre será assim, o feio também. O máximo que o feio alcança é o bonito, o lindo não. O lindo não enfeia mesmo que engorde. Há exceções, claro.
À dois, quando se mostra a beleza em excesso de um lado, há questionamentos por parte dos invejosos sobre a tal aproximação. Ou o feio tem muito dinheiro ou tem o lindo como cria. Funciona também com as promoções de emprego.
Beleza tem suas dores, suas conseqüências, mas todas facilmente superáveis. Como se quem é muito bonito não venha a ter problemas financeiros ou amorosos - esses principalmente - por ter uma pele ou um cabelo de dar inveja. Inveja naqueles que não tem ou que criticam a posição do lindo. Os feios alcançam os melhores empregos, as melhores mulheres e os melhores carros (Sempre considere os fatos e não a ordem) Os lindos alcançam quando conhecem um feio que levanta seus caminhos, seja pela simpatia que sentiu pelo lindo, nunca ao contrário.
Interesses há em ambas as partes. O feio quer a beleza que não tem e o lindo o status que de uma maneira ou outra é conquistado.
Buscar a perfeição em um feio é algo complicado, pois por mais que haja emprego, sucesso e popularidade, o lindo vence somente por sua beleza.
Há quem tenha no espelho de Narciso a vergonha da imagem. O estado da alma revela a beleza do corpo. A felicidade acompanha o banho que lava o rosto.
Quem namora um lindo, anda preocupado, ligando e coçando a cabeça. A confiança é mínima e a convivência limita-se a uma redoma de cristais que não reflete a alma. Vê-se somente a carapaça.
Quem aposta na alma que não se vê, paga um preço justo. Tem as datas lembradas, comida boa e é amado, isso quando as exceções falham, pois há feios esquecidos que não se dão conta dos atos.
O perfume ameniza a falta de beleza e as roupas quase sempre são vistas em primeira mão, isso no feio. Fazem a diferença e não acrescentam nada. Diferente nos lindos que com uma camisa laranja velha continuam lindos.
Para os lindos, produtos de beleza dados como presente são complementos e realçam alguma coisa. Para os feios, são ofensa e necessidade.
Há quem prefira sofrer as escórias de se ter um belo monumento ao lado no banco do ônibus. Paga-se um preço por isso e ele é alto. Mais alto do que ficar só: concorrência, auto-dominação e oferecimentos sempre renovados, a não ser que haja humildade na parceria linda, coisa rara também no mercado.
Em outras palavras, a beleza excessiva vale por si só e completa os mais ambiciosos que querem provar, quase sempre para si, que conseguem manter um relacionamento com um semi-deus seja ele grego ou de classe baixa, ou os dois. Sem esquecer que a maioria deles se encontra nos lugares mais inesperados, onde raramente estamos e quase sempre de chinelos e meias.
Os que amam um feio quase sempre são feios também, porém é difícil haver dois lindos juntos. Não dá para explicar. Ou os lindos preferem ficar só, ou são rejeitados pelos menos bonitos por exatamente serem exuberantes. Lindos e feios combinam bem e são as maiores parcelas casadas no mundo.
Em outras palavras, há quem diga também que a beleza é primordial para entreter, ou para ser alguma coisa. Fato negado visto pelos maiores exemplos de sucesso serem tão feios e chamarem atenção por isso.
Beleza e feiúra destacam-se e ganham seus lugares na vida de todos. Discordo de quem diga que os lindos são mais felizes ou vice-versa. Lindo ou feio, nada mais são do que um padrão de escolha e um método para separar um do outro, porém de uma coisa não podemos discordar: todos querem ou ser ou ter um lindo, seja por um padrão que ninguém sabe quem inventou ou por mera vaidade.
Há também quem diga que o feio simpático é feio e o lindo arrogante, é lindo.

terça-feira, 8 de junho de 2010

A menina e o canteiro

O trem não estava tão lotado quanto aos dias de rotina. Apesar de ser uma quarta-feira, haviam poucas pessoas naquele horário dentro do trem. Eu voltava de viagem e caminhava com as malas grudadas ao corpo. Foi quando ela entrou.
Sorrateira e tímida levava sobre a cabeça um canteiro com flores murchas e alguns ramos de folhas verdes. O cabelo crespo sumido entre mechas loiras era suporte da pequena caixa de madeira.
Entrou, com uma mão sustentando a caixa por seu equilíbrio e a outra na boca, molhando os dedos com a água da inocência. Roupa surrada, olhos atentos e covardia assumida. Era menina, menina do mundo.
Uma mulher perto da porta observava seus gestos rápidos. Um pequeno sorriso aparecia em seus lábios. Via e entendia a vida daquela menina e o canteiro.
Normalmente, enfiou-se entre os vãos dos bancos duros e colocou o canteiro sobre as pernas, tirou do bolso um doce e comia com paciência. A mulher observava.
A menina viu que era observada e retribuiu o olhar com um sorriso. Menina.
A mulher tirou do bolso um biscoito e ofereceu de longe à pirralha. Ela, por sua vez, não hesitou e em um pulo saiu dos vãos e foi até a bolacha, o canteiro veio junto. Olhar de confiança, olhar de suspeita.
Os demais olhavam a cena, assim como eu, admirando não o gesto, mas a vida e as maneiras da menina. Ela comia e ofereceu da mesma bolacha para quem a cedeu. A mulher recusou, agora era dela a comida.
Entendi, ou julguei entender, que o desejo daquela mulher estava calado com a impossibilidade de nada poder fazer para melhorar os dias daquela criança. Tinha vontade, mas sabia que ali a única coisa que poderia fazer era oferecer uma parte de um lanche que foi seu. Agora não é mais.
O pequeno sorriso mostrava uma pena daquela criança que podia estar brincando sobre o asfalto e plantando sonhos que talvez com o tempo houvessem de serem esquecidos.
A menina pendurou-se no ferro maior, mais alto e balançou por um instante. Seus pisantes, sujos pelo asfalto que não brincava, ficaram no chão.
O trem parou. A menina parou o balanço e voltou a ser grande. Notei em seu corpo os sinais de uma mulher, escondidos por uma lã vermelha e suja. Pegou o canteiro, colocou na cabeça e antes de andar olhou à mulher e sorriu. Eu sorri também, mas para eu mesmo. A mulher a seguiu com os olhos até a porta. Outros olhos a seguiam também, não só a menina.
A porta se abriu e a menina saiu sem ao menos olhar para trás. Poderia estar plantando sonhos de criança, mas plantava flores em seu canteiro.

domingo, 30 de maio de 2010

Estadão: Trinta dias de Impressões

Exatamente quando postei este texto, completei um mês em um emprego que me deixou muito feliz e me fez bater a cara em diferentes pedras em pouco tempo. Desde o dia três de maio, estou prestando serviços ao Estadão, um dos jornais mais conceituados do país. Tem lá seus concorrentes, mas é muito bem visto pelos brasileiros. Neste tempo, em uma empresa de grande porte, tive algumas experiências que me fizeram refletir sobre a vida, dias e sobre o próprio trabalho em si. Há uns dias, postei um texto sobre a semelhança entre o Amor e o Trabalho (vide abaixo post de 03/05/2010 ‘Amor X Trabalho’) e notei que o trabalho engloba muito mais do que apenas o amor. Ele é a tua vida!
Na primeira semana, tudo novo: pessoas, lugares, chefe, serviços. Sou daqueles que precisa ter um lugar para trabalhar que seja meu, como um computador com um papel de parede super artístico, uma mesa grande onde caibam além do teclado/mouse, canetas, dvd’s e uma foto da mãe ao lado do micro. Aqui não foi possível. Os jornalistas têm suas mesas separadas por pequenas colunas, trabalham um em frente ao outro. Eu e o outro funcionário que entrou comigo, trabalhamos em um mini corredor, frente para o estúdio, seguido daquela redação imensa de jornalistas, inclusive do meu chefe.
O trabalho foi corrido, no primeiro dia, saí uma hora depois do horário, depois de ouvir o estagiário reclamar dos equipamentos e o outro funcionário destrinchar uma lista de quem é ou não é, ali dentro.
No segundo dia, confesso que tive vontade de chorar, de ir embora, me roçar embaixo da saia da mãe e não voltar mais para perto daqueles ‘bobos’! Muita gente, idéias diferentes, o refeitório mais parecia uma cadeia, com bandejas e muito bife. Fiquei triste pelo fato de saber que minha vaga ainda não é efetiva e sim um colaborador, como free-lance. Meu crachá com a foto que eu já tinha tirado, não chegava, nem e-mail interno eu tinha. Estava ali e não me sentia ali. Sem contar o fato de ser super longe de casa, lá na casa do Limão (para não dizer outra coisa) Liguei para uns quatro amigos na hora do almoço para me sentir mais perto deles e, claro, encerrei a maratona de ligações com minha amada mãe.
Lá para o fim da semana, resolvi os aperreis do crachá, e-mail e integração, me conformei com o fato de não fazê-la. Msn nessas horas ajuda muito – ou não – para conversar com amigos que continuam nos mesmos empregos.
Sobre as pessoas que trabalham comigo, um deles estava há pouco mais de quatro meses, outro era estagiário e outro começou comigo. O meio social é um dos mais complexos para eu me adaptar. O estagiário julgava saber e dar a última palavra. Tinha umas manias e um jeito que não me agradavam, porém novatos ainda não falam. Até que, ao começar a segunda semana, ele – o estagiário - teve uma leve discussão com o outro novo funcionário. Isso foi parar na mesa do chefe e resumindo, tivemos uma reunião de cúpula e o estagiário foi desligado depois de faltar quatro dias consecutivos.
O outro novo funcionário é o que chamamos de ‘gente fina’, apesar de eu e ele nos desentendermos em duas ou três palavras, até agora nossa convivência é sadia e bem sadia eu diria, pelo fato de darmos altas risadas em piadas em comum. Mesma idade quase.
O ritmo de trabalho aumentava e ficava intenso, porém gratificante. Gravações ao vivo, respostas do público quase que imediatas, vídeos diferentes postados no site, visitas, saídas para a rua. Esse feedback do público que acompanha soa como uma agradável resposta ao meu trabalho.
No final da segunda semana, fomos até a Livraria Cultura gravar um evento promovido pelo Estadão. Eram debates sobre internet e comunicação on-line que teria a cobertura da TV. Enfim, motoristas levavam, a gente montava o circo (encontrei um amigo da faculdade trabalhando lá) gravava e... o almoço voava. Tenho um certo trauma de ficar sem comer, tudo culpa da faculdade e seus infindáveis estágios. E durante o evento, a tortura de ficar sem comer, dor de cabeça e espera do motorista para buscar, era o que me irritava mais. Tudo isso vale para ficar trabalhando com free-lance? Lembrava quase que imediatamente do salário, que de momento, valia a pena. Outra dorzinha na cabeça, foi a passagem desses vídeos para o site. O trampo era dobrado, pois tinha que editar, colocar legendas, renderizar (quem edita, sabe) Tanto foi, que numa sexta feira pirracenta, fiquei até as quatro e meia da madrugada jogando tudo na internet. Não queria vir no fim de semana. O bom disso foi descobrir que os motoristas do Estadão te levavam até em casa quando seu horário passasse das onze da noite. Santos motoristas!
Depois dessa descoberta, me senti importante e bem. O fato de não pegar trem, metrô e um jegue para chegar em casa, já me fazia trabalhar com mais afinco.
Meu chefe é sossegado. Pergunta o que estamos achando do emprego, não pressiona além da conta e sabe da importância de trabalhar e descansar. Não que eu esperasse um carrancudo, mas posso dizer que até agora sempre tive sorte com chefes, ou líderes. Assim que comecei, ele perguntou meu gosto musical. Não iria suscitar tudo, mas disse do meu gosto por jazz. Ao lembrar disso, alguns dias depois, ele disse que teria um festival bom para o fim do mês e me mandou a programação por e-mail. Sabia que tinha que ir, e fui. Assim como ele, as pessoas mais influentes são simpáticas também. Fiquei com medo daquela história dos super arrogantes. Até agora conheci poucos assim.
Na terceira semana, entrou a última funcionária da saga TV Estadão. Fora as impressões de primeiros contatos, ela demonstrou-se interessada e preocupada até demais em determinadas ocasiões, mas tudo começou a entrar nos eixos quando um precisou contar com o outro e o serviço saiu.
Nessa última semana, meu horário mudou e fiquei sabendo que farei plantão aos domingos por causa do futebol (logo, o futebol!) mas, como curativo, terei de folga as sextas e parte das quartas-feiras. Trabalhar de domingo parece repugnante, mas irei somente gravar um vídeo rápido, colocá-lo na internet e voltar para casa de carro, adesivado com o logo do Estadão, Rádio Eldorado e outros laiás.
Enfim, estou completando um mês de Estadão. Trinta dias cumpridos e compridos. Nesse tempo, vi o que é trabalhar em equipe, embora ainda estejamos nos afinando. Fiz minhas percepções de trabalho, pessoas e dias corridos dentro de uma super redação que move a comunicação impressa do país. A Globo gravou em nosso estúdio, a Cultura e me senti mais perto de tudo aquilo que apenas via na teoria. O fato que me chamou mais a atenção e que não deixa de ser um tabu, é as super faculdades onde estudaram meus companheiros de trabalho hoje. Tem gente da USP, PUC, Cásper, Anhembi e gente que nem fez faculdade, mas estamos todos ali, num barco navegante. Não que eu queira erguer a bandeira da minha faculdade, mas percebi que faculdade é apenas uma etapa. Comprovante de sua capacidade é o seu próprio esforço.
Antes que esse texto pareça mais auto-ajuda, completo que todos os dias, exercito os caminhos as serem tomados para alcançar outros objetivos. Trabalhar em uma grande empresa não demonstra somente obter outros grandes compromissos, mas enxergar outros e novos desafios. Confesso que estou muito feliz com esse novo emprego e como me disse um amigo de faculdade: “É para isso que estudei essa porra!”

sábado, 15 de maio de 2010

A Sala

Não estavam todos na sala. Faltava a avó, a tia mais nova e a adotada. Os pratos sujos e lambidos, agora não eram pratos, apenas louça, estorvo. Os mais novos corriam na varanda e irritavam a cadela. A alegria tomava conta do lugar. A família assistia um vídeo de aniversário, embora fora gravado há quase vinte anos.

Estavam juntos após grandes momentos perdidos no trabalho e na escola. Sequer notaram a alegria sendo compartilhada novamente, resguardada durante algum tempo.
Os tios planejavam para o outro dia, uma pescaria e peixes do tamanho de bois. Exagero.

- Sai da frente moleque! Gritava a mãe do menor. Irmã mais velha, que no vídeo era novata na experiência de peito. O mais novo corria sobre o piso desenhado, junto com a prima de mesma idade e o de nove.
A cada cena daquele aniversário, maneiras esquecidas eram despertadas nos parentes da sala. Naquele tempo, a tia segunda cantava letras de músicas infantis, coisa que não ousaria nos dias de hoje, talvez pela falta de tempo ou pela monotonia do casamento.
O tio terceiro apontava o vídeo e dizia os nomes de amigos dos quais não recebia noticias há anos. Seus olhos brilhavam e o sorriso quase não aparecia, escondido pela euforia dos fatos narrados na tela colorida.
As roupas, cabelo, a moda era outra. O que hoje é ridículo era exaltado no aniversário.

Enquanto assistiam, o jovem dotado de sonhos e capacidade de lutar desejou que muitas famílias pudessem reviver momentos de união como o que estavam vivendo naquele momento. Era sonhador.
A massa no prato esfriou e perdeu o gosto. O vídeo ganhara mais sabor.
Era quase madrugada e o frio já não incomodava. A porta de madeira, escancarada, deixava entrar a fumaça do cigarro do tio.
- Olha lá o pai, Sônia! Falou a mais velha em tom sereno.

Todos atentaram ao vídeo. O silêncio tomou conta do lugar. Os sorrisos pararam como gelo. Sem tirar os olhos da imagem, a cunhada ajeitou o vestido e sentou-se melhor no sofá. Os netos, que não conheceram o avô, pararam no minuto que antecedia a emoção da família. Era o avô.
O velho falecido despertou a saudade e fez o filho lembrar da adotada que havia engravidado antes dos dezesseis, pelas bandas interioranas. Para o irmão mais velho, inaceitável. Se o pai estivesse vivo não teria deixado. As lágrimas encheram-no os olhos e o gelo das feições, aqueceu o perdão ressuscitado com o falecido.
O avô era um tipo herói e mesmo não estando entre a família, apareceu com sua parte de vida cumprida.

Na época, ainda não havia a faculdade para a falta de tempo. Tinham metade, senão menos, da renda atual, mas eram realmente felizes.
Começaram a falar dos antepassados e o vídeo foi desfalecendo-se. A louça foi recolhida e a pescaria adiantada. As crianças comiam bolachas e a cadela deitou-se na caixa forrada. Melhor assim.
A fita embolorada foi retirada do aparelho. Entre um momento e outro, mesmo participando da alegria concreta, o jovem, único a permanecer, estudava em silêncio quanto tempo haviam perdido com brigas fúteis. A família ocupou-se com a madrugada.
Sobrara apenas o sonhador na sala. Olhou-a, estava pouco iluminada e vazia. Novamente vazia.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Amor X Trabalho

Uma interligação interessante aproxima o trabalho cotidiano com as fabulosas artimanhas de relacionamentos amorosos. O emprego tem uma linha em nó com casos que permeiam os corações entre o afeto do amor que assemelha-se com o ato útil e rotineiro que chamamos de trabalho. Pode parecer um tanto frio ou até mesmo grotesco comparar interesses afetivos do coração com o ato necessário que dignifica o homem, mas há sim, uma verossimilhança curiosa entre amor e trabalho, analisadas em partes sensíveis e remuneradas.
O emprego exige um perfil, dom, diploma. Há dotes que se aprendem na escola e teorias que se fortificam com a prática. Para o pedreiro, a amizade com o cimento; Para o médico o cheiro do sangue; Como para a prostituta, o corpo sem beijos. No amor as exigências são únicas e distintas para cada pessoa. Um gosta das curvas, outra dos olhos e seus mistérios, outro dos seios, outra da inteligência, outros de outros. O perfil, conta tanto no trabalho como no amor. O currículo? Cartas. As músicas, a trilha do rádio ligado ao lado da mesa no escritório.
As melhores e passageiras aproximações do amor ocorrem entre música alta, ou na varanda da noite ou no banheiro da rodoviária. São como os trabalhos free lance, onde se ganha mais, trabalha-se rápido e a ousadia assina o resultado. As transas perigosas e sem sentimento são as mais ardentes e merecidas do gozo contínuo. Nem se lembram nomes e sim da foda. Nem da empresa, mas do produto.
Os empregos fixos são como os namoros ensaio-casamento. Nove, dez, doze anos ensaiando para um dia ser demitido e vagar em busca de um corpo free-lance. Quem casa com a empresa corre o risco de ficar hipertenso, ranzinza e com varizes, mas tem um casamento duradouro, broxante e ao mesmo tempo, invejável por aqueles que apenas trabalham com freelas, sem filhos ou netos correndo pelo quintal.
As indicações também servem no amor, pois a amiga fala mal do ex porque ainda ama e quem ouve sabe que o dito faz bem e pode trabalhar nele daqui para frente. A concorrência esconde a intolerância. As melhores vagas são silenciosas, fora de painéis iluminados. Ninguém ama um sujeito jogado num caderno de emprego, como é raro conhecer alguém que trabalhe numa multinacional depois de ficar anos solteiro, ou melhor, desempregado. Tem aqueles que pagam pouco, não registram em carteira e ainda não fazem sexo oral. Ninguém, estando neste século, trabalha em um emprego sem o tal do sexo oral. É preciso falar, sem tabus.
O divórcio é como o sócio que alimenta amizades com fornecedores e clientes principais da empresa que ainda presta contas, para mais cedo ou mais tarde montar seu próprio negócio, levar as ações e depois ver o parceiro chorar no tribunal, pois os filhos tinham direito ao dinheiro lavado da conta de ambos. Sendo assim, os clientes são os amantes e a empresa o antigo home sweet home.
Tem gente que esquece o crachá da empresa no pescoço quando vai encontrar o amor na estação e se pudesse, teria no sobrenome o nome da multinacional.
Há também as paqueras de trabalho. A velha história do mandar cartas de amor a outras empresas enquanto se trabalha nela. Empregos anteriores servem de referência para um amor atual. Uma coisa que não pode acontecer - no caso do amor - é ligar para pedir referências passadas. Empresas batem de frente na concorrência, no amor é igual.
A sogra, maldita por memória, são os chefes que vêm de brinde num emprego bom. A história do amor ao trabalho e o ódio ao chefe, mas há quem goste dele e troca bolachinhas, mesmo que em alguns casos a sogra seja homem.
A nova casa tem computador, mesa redonda e máquina de café. Lá se dorme, cochila e trabalha. Para as segundas e quartas, stress e às vezes sexo escondido depois do expediente, com a secretária ou com o estagiário. No escritório, os filhos, a TV, o fogão para as mais moderninhas. Os ambientes se misturam em degradê, com a cor da parede. O quarto principal é a sala do encarregado e do subordinado, o Box apertado perto da janela.
O salário vem em duas partes, com descontos em folha do INSS, poupança e do empréstimo para o casamento.
O trabalho e o amor estão separados em lados: um do lado profissional e o outro do lado pessoal, ou seria no lado sentimental? Há de se concordar que um dignifica e o outro destrói. Não há sorte nos dois ao mesmo tempo da vida, ou há? Afinal, são tantos lados que não se sabe se é necessário amar o trabalho ou trabalhar melhor o amor.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Era quarta

Era quarta-feira. Dia fatídico cheio de trabalho, chefa, luzes de poste. Chato por si. Saiu do trabalho, entrou no Citroen e seguiu rumo ao litoral. Não avisou a família e sabia que ia ter problemas pelo sumiço instantâneo e não teria como explicar o motivo de descer à baixada no meio de março, depois de um meio de semana repleto de números.
Ouvia as músicas que levava em seu mp3 plugado no som do carro. Ficou feliz por ter adquirido o aparelho há dois anos.
Mantinha uma velocidade branda, avistava as luzes das casas de beira estrada que compunham a via que já havia passado em outros carnavais, natal ou réveillon, mas em março, ainda não. E sozinho, tampouco.
Eram poucos os automóveis que iam no mesmo rumo que o seu, mas havia. O celular acendeu no banco do carro e viu que a operadora havia mandado uma mensagem. Ignorou. Passava pouco das onze e ainda ninguém de casa entrou em contato, pois costumava chegar após os doze minutos das zero.
O túnel abafava o som da noite. Norah cantava baixo num timbre doce. Não negava o motivo de precisar ver o mar, mesmo que de dentro do carro. Seu olhar estava longe, distante do mar para onde ele se aproximava. Exultou-se pela liberdade, emprego, amigos e por ter a mãe por perto, mas era desarmado nas questões que envolvem o amor e suas peripécias.
Os amigos viram um amor antigo num barzinho de samba. Naquele domingo, ficara em casa por ter apenas vinte reais na carteira, mas não se lembra do motivo por realmente não ter ido. Mas foi bom ter ficado no quarto, ou não.
Já tinha ido lá quinze, vinte ou cem vezes, em domingos seguidos até, e nunca havia encontrado nada que fizesse seu coração tremer. Até tinha um certo asco daquele lugar por ter gente feia demais. Tudo mudou quando soube que uma pele morena conhecida e nada de ex-amada andava sobre os muros laranjas daquele espaço.
Sabia que nada mais o importava sobre tudo o que passou, mas por milhares de motivos ainda guardava um sentimento que não era nem amor, nem paixão, nem ódio, nem sabia.
Olhou para o lado e viu a cidade iluminada de Santos abaixo de si. A estrada um pouco molhada e a casa que um dia repartiu de banhos estava lá, no meio daquelas luzes.
Deus o livre de um dia alguém descobrir que desviava seu caminho de quarta para afogar a lembrança de um estranho sentimento. Tinha parentes de amigos na praia, de casas com jardim e piscina de lona. Queria só ver o mar.
Não soou sequer uma palavra dentro do carro e quando calava-se estando sozinho, a situação poderia ser considerada séria. Falava constantemente sozinho, dando broncas em si mesmo e despistando algumas dores com piadinhas sem-graça que duravam segundos.
O farol iluminou um homem que caminhava na beira da estrada. Quis descer, contar, pedir uma opinião, pois talvez o magricela poderia dizer uma palavra que o ajudaria naquele momento. Que pensamento besta! Poderia ser assaltado e seu corpo encontrado depois de alguns dias. O que sua mãe diria? Tinha apenas 26 anos. Sorriu pela primeira vez desde que cruzou o primeiro pedágio, quando riu do... do que mesmo? Esqueceu.
Entrando na cidade, viu uma grande estátua de Nossa Senhora Aparecida, depois um bordel mal iluminado e uma casa pintada com um peixe azul na porta. Sentia o cheiro de estofado, que tinha mandado lavar anteontem, segunda, quando soube que o amor estava por perto, mas ele estava em casa ocupando-se do domingo.
Sentiu uma brisa fria no rosto e piscou com a luz de um ônibus que cruzou com ele na rotatória. Viu uma rua pequena, com casas e alojamentos amontoados, que mais parecia um grande corredor no meio da cidade. Tinha areia na valeta, no canteiro central e alguns bares ainda estavam abertos. Viu que a cidade de praia também é cidade.
Sempre acostumado a vir para se divertir, acostumado com o MASP, a Augusta ou os faróis de longe da avenida Angélica, tinha um olhar menos preocupado nesse tipo de lugar, afinal tinha se tornado tão caipira dentro de uma metrópole que o bairro vizinho era novidade para ele.
Viu uma placa verde, velha, com as palavras: “Turistas, sejam bem vindos.” Não era turista. Era quarta-feira.
Entre alguns minutos esqueceu por que estava ali. Quis apressar-se para voltar e teve segundos de medo. Lembrou-se da mãe, quis chorar, mas não pela lembrança, ou não por essa. Ela – a mãe – simbolizava o mais tenro dos sentimentos, a perda irreparável, a verdade do coração, ao menos do seu e talvez isso fosse o que falta à sua vida bem sucedida de planos encaixotados em maços de papelão.
Virou a rua e fez uma entrada proibida, mas logo contornou para a rua que daria acesso à praia, porém não queria a praia e sim o mar.
Ouviu fora do carro os pneus arrastarem na areia. Viu uma grande montanha em frente ao carro e as casas ainda o impossibilitavam de ver as águas. Chegou mais perto, diminuiu a velocidade e o som das ondas que se quebravam longe, o remetiam às pedras que um dia sentou com o amor do samba de domingo. O oceano era um só.
Algo reluzia em um ponto da montanha e lembrou que não era montanha, mas monte. Este que o olhava, observando-o pequeno e só, em frente ao mar.
As faixas de estacionamento estavam apagadas no chão, em partes pela areia em partes pelo tempo que estavam pintadas ali. Amarelas.
Uma placa de aço, na altura dele, tinha o desenho de um coco com canudo, sorrindo para o nada. Aquele coco estava dormindo, era quase uma da madrugada.
Desligou o som e o motor do carro. Tudo ficou mudo e ele olhou para o mar.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O Teto

Hipóteses de pés que pisam no assoalho de vidro e refletem sua própria imagem no solo. Outrora, ouça o ruído que o teto pisado faz e quem é que está sobre as nossas cabeças. Há possibilidades de tocar o teto e ouvir se algum gato vagabundo anda acima e ainda é cedo para julgar se nosso destino é um dia pisar sobre a cabeça dos outros O teto que está sobre nós, revela que mesmo com as ilusões de não haver nada sobre nossas mentes, ainda há um teto, um lugar mais alto. Refleti sobre essa hipótese quando em pé sobre um tablado de cimento, fiquei mais perto do teto que outrora era distante e me causava alegria quando conseguia tocá-lo com meus dedos finos. Seja por algum que me levantou ou por subir em um móvel imóvel e firme. Me fez tocar o teto. Com as andanças da vida, passei a me aproximar do dito postulado e nem sequer me dei conta de que ele se aproximava de mim. Busquei – e ainda busco – sua proximidade íntima e ele se afasta quando mais eu o busco. Assim como a vida, o teto é um fato interessante, concreto de natureza e abstrato em suas conformidades. Podemos ouvir quem nele pisa, mas não saber quem nele está. Mesmo que para o ouvidor, o teto seja o auge, para quem pisa ele é o mínimo e para este também há um teto. Hoje pisamos no teto que serve de sonho para outro homem, abaixo de nós nem que seja só de passagem, amanhã nosso teto pode ser um chão. Quem o vê, nele quer estar, nele quer ser, encostar. O teto como fato inerente demonstrado por pinturas de cores ocres, borra-se com a bota de quem pisa. O teto é um segredo. Conciso em ser sustento e sonho ao mesmo tempo, separados em questões hipotéticas e um mesmo que o relata em ser apenas teto. Ouça enquanto um barulho provido do teto preocupa e um, do chão, incomoda. É mais trágico um teto cair sobre nossas cabeças do que um chão ruir abaixo de nossos pés. Paredes de cima preocupam mais do que as de baixo. Quem ousaria entrar numa casa onde o teto está caindo? Prefiro pisar no solo que se dilata do que bancar o besta em colocar minha cabeça abaixo de um concreto molambo. Infeliz de quem não se dá conta de que pisa num teto, naquilo que um dia foi o seu teto. O chão nada mais é do que teto de alguém e o teto, chão de outro. Batem as vassouras dos edifícios pedindo silêncio, trocam as lâmpadas do andar de baixo e olha-se pelo vão na obra mal acabada. Ainda quero estar no teto que observo com olhares fixos e sugiro que quem for pisar no meu teto, tenha consciência de que eu o deixei bem limpo e varrido. Digno de ser polido e capaz de abrigar um corpo cansado. O chão que um dia foi chão e hoje é teto para alguém, enquanto eu piso no teto que é meu por merecimento.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Dois Ois

Um texto com um pouco de melancolia e ao mesmo tempo simples, de pensamentos sem vozes, entre duas palavras.

- Oi? Disse deste lado da linha.
Havia ensaiado durante meses essa ligação. O número discado foi decorado e percebeu que não havia esquecido, pois não tinha sequer um papel ao lado com algo anotado. O coração aflito o fez lembrar naquele desgastado teclado numérico, quantas vezes tinha discado o mesmo número em anos anteriores e em outros demasiados aparelhos, quando ainda os sentimentos se encontravam em um mesmo almejo. Ligava de um orelhão público, com adesivos prostitutos colados ao pé do ouvido. O aparelho azul não tinha lábios vermelhos, mas dele surtiria a voz do ex companheiro que iria responder seus anseios, mesmo com palavras ocres, o timbre o bastava. Bem próximo do azul que o aproximava da voz longe em outras circunstâncias.
Aquilo que chamavam de relacionamento, de aliança no dedo e oculto dos parentes próximos, terminou logo depois de uma traição boba, que partiu de um dos lados. Estava cansado da falta de tempo e se emaranhou em outros braços, antes mesmo de encerrar o gosto do outro. Braços que eram mais frios do que a causa do término. Lembrou-se rapidamente das canções que embalaram o relacionamento, dos momentos de água salgada e do sexo que faziam enquanto os pais viajavam. Eram adolescentes de coração bobo, mas haviam amado verdadeiramente um ao outro, embora isso tenha acontecido em momentos distintos enquanto estavam juntos. Brigavam, calavam-se e beijavam-se no final. Lembrou também da viagem e do sexo que fizeram ao entrar na casa do destino antes mesmo de desfazer toda a bagagem.
Questionou-se como tudo aquilo podia ter acabado na intensidade do gosto que tinham um pelo outro. Ficou imaginando o que o outro pensava enquanto segurava o telefone ao ouvir seu singelo cumprimento feito de duas vogais. Não se deu conta que o fato de ter novamente ligado, fôra um processo de determinação e uma batalha contra o próprio orgulho. Discou em uma tacada só e entregou aos ventos aquele momento. Tantas outras ligações já tinha feito naquele orelhão para outros amores e para este também, mas não no momento que vivia agora. Viajou também pelo cheiro de saliva seca na pele, de outros sexos que esbarrou pelo caminho, todos para se convencer que era capaz de amar um outro alguém e caso um dia pudesse, contaria todas as aventuras que teve como prova de esquecimento, mas não. O outro estava na linha e havia sentido quem estava novamente o procurando.
Este outro poderia ter ido embora como prometera certa vez ou estar aquecido em outro coração ou se esquecido de tais momentos que o fizeram novamente procurar o passado atrás de uma seqüência numérica. O outro poderia também tê-lo esquecido e jogado todas as lembranças fora, menos uma foto que guardava apenas para se juntar aos demais casos que tivera durante seus dias devaneios. Ou não, podia ter tudo muito bem guardado na esperança de um dia retornar a amar a voz que estava do outro lado da linha. Teve raiva de si mesmo por
dois ou três segundos, pois não deveria ter tirado um tempo de sua vida tão corrida para aparecer em outra que dele correu tão cedo.
Imaginou o motivo daquela ligação, que não hesitou para atender, pois imaginou ser sua mãe perguntando do rodo que esqueceu atrás da porta da cozinha. Mas não, era um amor passado que novamente entrou em sua vida por um momento pequeno. Franziu os pêlos da sobrancelha, tentou transmitir calma e se fazer de desentendido, mas um sorrateiro sorriso surtiu de sua boca e imediatamente ficou feliz por não poder ser visto pelo telefone. Poderia passar pelo tom da voz o sentimento que julgasse necessário. Por ter recebido essa ligação embora também tivesse vontade de saber como o outro estava, tinha o poder sobre aquele momento. Ou não. Talvez por ter sido ele que encerrou a união há dois anos, tinha mais dúvidas sobre si do que aquele que deixou chorando na estação.
Ambos não sabiam o que falar e nem como agir, mesmo que não precisassem se mover. Alguns pensamentos se encontraram ali, as músicas, a chuva e quase instantaneamente puderam ler naquele segundo em silêncio que ainda tinham muito que ser um ao outro. Os dias o afastaram, o trabalho havia mudado e talvez agora pudessem dedicar um pedaço de tempo. Talvez estivessem mais maduros, mais determinados a amarem-se e tudo ficou tão perto. Moravam ainda em suas cidades de início, pois o número discado foi o mesmo. Um deles julgou lembrar-se das brigas para suscitar maturidade e não deixar que aquele minuto se tornasse doce demais e pudesse agir com a razão, como não fizera várias vezes em tempos remotos o que resultou em lágrimas que poderiam muito bem ter sido evitadas. Nem sequer tinham caído em si pelo nervosismo de um ouvir a voz do outro. Voltaram ao aparelho azul e o passado foi ligeiramente esquecido para que pudessem dar continuidade a uma conversa banal e ao mesmo tempo, interessante. Estavam presos ao momento e próximos em suas vozes, em coração, mas não juntos. Podia ser uma ligação qualquer, uma proximidade boba ou um rumo que se retornaria, quem sabe... Ou apenas mais uma das tantas conversas que fizeram durante seus vinte e alguns anos.
- Oi, respondeu o outro.

terça-feira, 30 de março de 2010

Ontem andando na rua...

...a chuva começava a despistar minha paciência enquanto andava sobre uma calçada coberta de árvores de parque que faziam sombra branda sobre mim. Apertei o andar, segui minha sombra e vi ao meu lado um cão, andando, imitando meus passos ao dobro em quatro patas molhadas.
Vi pelos seus olhos que me seguiam, que queria levantar o olhar mas tinha a matreira de um cão de rua. Como um bom companheiro momentâneo.
Na hora com pingos de chuva, peguei o celular e quis gravá-lo ao meu lado. Maldito, não gravou nada, mesmo com a rua iluminada.
Eu estava sem meu morcegão, molhado dos ombros para metade das costas, entendiado e culpando meus dois empregos. Naquele momento quis registrar meu amigo de lado, mas a câmera não permitiu.
Passou uma mulher com seu guarda-chuva, me lembrei quando recebi uma carona a pé de uma companheira de ponto de ônibus e de mesmas águas, há tempos atrás. Sem nunca tê-la visto, partilhei de dois ou dez minutos de barulho de chuva. Mesmo momento com o cão, de ontem.
Ao virar a esquina, me afastei enquanto a chuva apertava e o cão despistou-se ocupando-se com a rua e voltando à sua vida de noite e de dias.
Me comparei com o cão e vi que muito de mim também sabe que é sozinho, que anda, vê, reparte águas e morcegos, vive sozinho com vidas que param e andam para outras esquinas.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O que uma segunda-feira cinzenta, quente e cheia de trânsito pode ter de poética?


O que uma segunda-feira cinzenta, quente e cheia de trânsito pode ter de poética? Hoje acordei com vontade de escrever, de falar bobeiras e de ver a chuva cair, sem me preocupar com o tempo e fazer com que ele se preocupasse comigo. Descobri uma música e ela disse muito sobre mim. Uma das vozes era conhecida, a outra novata. Andei lembrando das pedras. Dos olhares colocados sobre o mar e dos pés morenos que hoje estão longe.
Quanta melancolia para o começo de uma semana que é cinza e de chuva no retrovisor. Quem nunca se sentiu entre versos cansados, daqueles que muita gente já ouviu mas é único e seu naquele momento.
Quanta sabedoria em enxergar num dia ruim uma saudade saudável, uma fossa medida e em determinado momento, uma lágrima de orgulho próprio, do sentimento em saber que hoje já não se chora mais por um amor que andou mais do que as minhas vistas.
Olhei de longe as amizades de perto que ainda amam e sofrem pelo tempo sozinho que não podem, mesmo querendo, compartilhar os arredores de si.
Do carro de onde estava, registrei o momento com um celular ralado e que antigamente ligou para outras vozes.
Mesmo gordo, de cabelo desgranhado e com os olhos apertados pela fumaça da rua, encontrei nesta segunda uma lembrança que ainda é lembrança. Aqui a solidão não é tão doída, mas ela não está trabalhando agora. Novamente me pergunto, o que uma segunda cinzenta, quente e cheia de trânsito pode ter de poética?

terça-feira, 16 de março de 2010

Serviço de Macho!

Fiz este texto enquanto morava só. Ele foi publicado no blog Vida Sozinho (da amiga/jornalista/queridíssima Audrey Bertho) e também foi postado no meu blog passado. Como Audrey mesma anunciou: "uma crônica do radialista Daniel Pires, dos tempos em que teve que aprender a se virar..." Que ainda continua fazendo barulho nos meus mais novos dias.

Serviço de Macho!

Considero tudo aprendizado. Desde quando esfolava os joelhos na bicicleta, até quando vi que o tempo é o melhor remédio. Aprendi que não se deve ter opiniões precipitadas e que talento não é mostrado com palavras.
Aprendi também que amigos não te conhecem, acham que conhecem. Somente isso.
De uma nova experiência eu estou provando agora: Morar sozinho. Não somente pelas tarefas de casa, mas também pela solidão que virou companhia. Antes, não conseguia ficar sozinho e já me sentia triste. Hoje, vejo que a tristeza não é pela solidão e sim pela preguiça.
Mamãe fazia tudo. Papai nada. Irmãos, nada também. Eu, menos ainda. Andava, voltava ao computador, corria pro quintal e voltava ao quarto.
A louça era lavada, o quintal e tudo mais. Até o dia que foram embora.
Senti uma liberdade suprema, um sentimento de posse, do meu próprio nariz. Não que ele seja bonito, mas vale muito. Esse sentimento passou quando eu tive que lavar, cozinhar e ainda tomar banho! Não foi fácil, não mesmo.
Senti um acréscimo de mim mesmo, de um alguém que eu nem sequer sabia que existia.
Muitos amigos questionam de primeira como eu consigo sobreviver. Muitos deles, digamos a maioria, tendo mamães como “Amélias”.
Pensando bem, acredito que poucos lavam e cozinham para si. Alguns não sabem nem fritar um ovo, lavar banheiro então nem se fale.
Maricas, dona de casa, “do lar” eu fui tachado. Meus vizinhos agora me vêem lavando quintal e limpando cocô de cachorro. Quem dera, eles pensam.
Muitos não me conheceram antigamente, com meus quatorze, quinze anos. Quando meus pais trabalhavam fora e praticamente o dia todo eu ficava em casa, sozinho, comigo mesmo. Lavava louça, varria e aprendi a fazer arroz. Papa mas fazia.
O grande mal do ser - humano é querer fazer tudo de sopetão, rasteiro, sem treino. Lembro-me também quando comecei a dirigir, ano retrasado. Nunca tinha pegado um carro, aprendi na auto – escola, diferente de alguns que pegavam carro do pai e saíam por aí, ou de outros que dirigiam desde a adolescência. Eles dirigiam e eu limpava a casa. Creio que saí ganhando, pois hoje dirijo embora não tenha carro e ainda limpo a casa. Estranho.
Muitos deles zombavam quando meu carro morria. Para eles eu tinha que aprender na hora. Sentou, saiu e foi. Engano desse povo.
Muito me estranha também quando dizem que não cozinham feijão nem temperam carne. Coisa mais fácil. Poderia eu zombar deles agora. Mas não, zombaria é para os tolos. Desculpem o termo, amigos!
Ao cair da noite, no acender das lâmpadas, sinto saudades da minha família. Não sei o que a noite traz, mas ela traz. Porém, não me martirizo com isso. Tempo é tempo, fase é fase. Sinto uma preciosidade grande sendo gerada quando chego cansado e não tem comida porque ‘eu’ não a fiz, ou quando vou tomar café e, não tem café porque ‘eu’ não o preparei. Coisas do cotidiano, que se eu não as fizer ninguém mais faz!
Reflito isso com a vida: se eu não a viver, nenhum outro a viverá. Por isso que a sensação de liberdade se transforma em responsabilidade e também em “carão”. Preciso ser responsável para que minha vida seja produtiva e, também, ter motivos para fazer o que bem entendo. Tem alguém pagando minhas contas? Eu!
Não posso também deixar que essa liberdade seja exacerbada. Cuidado com a libertinagem!
Enfim, estou passando por uma fase difícil. Nem amigos, nem família e nem parentes me completam agora. (Isso que você pensou também não!), porém prazerosa. Descobrindo um alguém que aprendeu a dirigir e ainda consegue limpar a própria bunda, sozinho