quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Privacidade

Essa crônica nasceu no terceiro ano de faculdade,em 2008, quando uma conhecida pediu que eu fizese um roteiro para um curta metragem. Eu o fiz. O tema era "Privacidade"
Aproveitando esse embalo do post passado (278, 4º andar) publico esse novo texto.


O lugar continuava quieto. Na calçada as folhas não haviam sido varridas. A rua vazia e o sol já indo embora. A vizinhança não conhecia o homem que morava no mil e dezessete, afinal acabou de mudar para o lugar.
Seu jeito era estranho, comentava consigo dona Cícera, mulher que morava há mais de quarenta anos no bairro, número noventa e dois. Achava que, por ser a mais velha, era dona do lugar e tinha regalias a mais. Só achava.
Ao mesmo tempo que reclamava, debruçada sobre a estátua do menino Jesus na faixada de sua morada, observava a jovem vizinha que aproximava-se. Moça nova morava com uma irmã e a mãe. O pai ainda não estava com elas, mas não iria demorar visto por suas noitadas regadas a álcool e libertinagens. Longas noitadas desde quando elas chegaram.
Ao ver a moça, Cícera deu um sorriso e acenou com a mão. Nenhuma palavra saiu de sua boca. Estava ansiosa para a chegada da vizinha Luíza, com quem trocou horas de vida alheia.
O homem surgiu. Cícera observava pronta para ser educada. Passava sobre os monumentos que estavam ali e voltou de onde havia saído.
Cícera levantou o pescoço e tentou enxergar o interior do lugar. O homem era estranho, nem olhou pros lados, só andou e entrou.
Ali poderia estar a explicação para o motivo de sua psicologia negativa. Aquele lugar há anos ficou vazio. Após o suicídio de Bira, um outro homem que não resistiu sua paranóica depressão, suicidou-se perto da entrada do lugar, com uma corda de amarrar talhas de madeira. Desde então, tudo era deserto.
Ali era um bairro. Onde morava.
Sua morada era grande, vistosa e toda feita pelos filhos em sua homenagem. Sentia-se orgulhosa com isso. Só estranhou a ala inferior a sua estar sendo habitada, sendo que ficou deserta durante quase dez anos. Ninguém aceitou morar ali, visto por histórias mal contadas.
A chuva estava por vir. O tempo fechou e o céu ficou nublado. O sol deu lugar às nuvens que se juntavam em formas diferentes.
Foi até o quintal para ver a rua. A moça nova apareceu andando. Não entendia onde estava, mas tinha no rosto uma certa serenidade.
Cícera olhava e estranhava aquela atitude, tal serenidade.
O quintal do homem era sujo e cheio de folhas secas.
Como era a mais velha, conhecia as histórias do lugar. Também sabia da índole daquela moça que não era das melhores. Imaginou que já estava de trambique com o homem. Ou de safadeza.
Na rua passavam, fora dos muros de seu bairro, algumas pessoas. Cícera cumprimentava e ninguém respondia. Já estava acostumada com tal reciprocidade.
Virou-se e viu alguns de seus conhecidos encostados em suas novas moradas. Alguns viviam ali durante anos, outros chegaram há pouco tempo. Ela era a mais velha e destacava bem isso. Viu muita gente chegando de várias maneiras, até que foram esquecendo aquele lugar que era chamado de bairro.
Contava-se no dedo quem ainda ficara ali.
Cícera não sabia ao certo para onde as pessoas iam quando dali sumiam. Sabia que um dia iria também, embora não fizesse planos para tal.
Viu novamente o homem passar ao longe. Não sabia onde estava, nem ao menos quem era. Haviam algumas meras lembranças em sua mente de quem foi quando ainda não estava ali. Agora já havia se esquecido.
Ela quis ajudar. Aproximou-se dele e olhava em seus olhos.
Ele não a via.
Continuava andando. Seus olhos e sua expressão eram de angústia. De sua boca não saia um ruído.
Ele não conhecia ninguém ali e não aceitava aquela situação. Cícera acostumada, sabia ali, quem ficaria por algum tempo e quem nem ao menos entraria no bairro.
Caminhou satisfeita por estar bem onde estava. A moça, tranqüila em sua expressão não estava mais no bairro. Embora havia acabado de chegar, partiu por aceitar sua condição e ter feito obras que lhe deixaram satisfeitas.
Cícera entendia a privacidade do homem e sabia que naquele ponto não podia mais ajudar. Ele teria que encontrar seu caminho, sozinho.
Sua morada era vazia e fria. A do homem também.
Após a morte, é cada um por si.

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