segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Hospital – impressões de ontem, hoje


Lembro-me quando viajava para casa da minha avó, em férias, e lá montava ‘circo’ – assim como ela mencionava – e cobrava para crianças da rua entrar.
Na época, tinha entre nove e onze anos. Nos fundos da casa da vó, havia uma varanda a céu aberto cheia de trambolhos e mistérios. Lona, cadeiras velhas, caixas de roupa, banheiro vazio e uma máquina de lavar azul, eram algumas coisas que tomavam o lugar e aguçavam minha curiosidade/imaginação. Ali eu montava sobre a telha uma espécie de toldo com uma lona laranja e apagava toda a luz, esperando ansiosamente o anoitecer. Desenhava no chão, com carvão, o caminho a ser feito embaixo da lona. Montava monstros com roupas velhas e dividia o lugar em duas alas, como num labirinto.
Vez ou outra, eu comprava uma lâmpada colorida, quase sempre vermelha e essa era a única a iluminar aquela varanda, que agora era uma Casa do Monstro, que me orgulhava. Fazia uma divulgação boca a boca na rua e a noite lotava de crianças com cinqüenta centavos na mão. Faziam fila e a fila também me dava orgulho, não sei explicar. Entravam e não levavam quase muito susto, mas sempre tinha alguém que chorava.
Fiz isso muitas vezes e em algumas delas, fiz - a casa - numa casa dos fundos que estava para ser alugada, uma espécie de Casa Maldita.
No último sábado, depois de anos – e muitos – vi se concretizar “O Hospital” um evento que relembra a Casa do Monstro que eu fazia quando criança. Agora, adulto fisicamente, contei com ajuda de amigos para produzir essa atração. Ainda mais por acontecer durante uma festa paroquial, de igreja, ao lado dela. Como misturar o que é Santo com o Terror, que não é nada santo?
Sei que os jovens vibravam cada vez que os monstros saíam na porta d'O Hospital. Ocupamos um espaço ainda a ser inaugurado (será a casa do padre) e ainda em construção. Montamos a iluminação, com fumaça, luzes que piscam e fechamos paredes com lona preta, formando um labirinto. Tivemos defuntos de lençol, guache vermelho em plásticos de açougue e trilha sonora de medo. Até uma tevê com uma câmera de vídeo foi colocada na entrada, simulando câmeras de segurança. Ficou tudo perfeito.
Entre a montagem e os ensaios de susto, lembrava da Casa do Monstro que montei na casa da vó antigamente. Na época tinha o sonho, a lona e era sozinho na produção. Hoje tenho amigos que abraçam a idéia, luzes diferentes em todos os ambientes e muita gente amontoada na rua querendo entrar. Uma coisa que não mudou daquele tempo para cá, quando se trata da montagem de casa dos monstros: o anseio em ver o céu escurecer, para poder dar luz à imaginação.

Veja o vídeo:

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O milagre dos bifes

"Jesus mandou que a multidão se sentasse no chão. Depois pegou os sete pães, agradeceu aos céus e partindo-os deu aos discípulos para que distribuíssem." Mc 8,6

Terça. Para alguns o dia mais entediante da semana, por ser o terceiro, após a segunda e, segundo dia de branco para quem folga aos domingos. A lua que tramita, não estava boa para muitos dos conhecidos, sequer para a vida financeira e às adjacentes situações a serem citadas; Trabalho, projetos, vida amorosa. Tudo estava num clima estranho, sem névoa de benevolências. Apenas um marasmo cotidiano sem dinheiro, sem paz e sem novos amores. Chato mesmo.
Tentava buscar em outras atitudes um motivo para se animar, alegrar um pouquinho o dia e tentar ver além do muro que cobria o momento daquela terça entediante. Terceiro dia entediante.
Ia e voltava do trabalho, até com pretensões de tomar um chopp num barzinho famoso da cidade e olhar aos arredores sortudos onde poderia encontrar alguém para beijar. Nada. Tinha estado em um lugar interessante no centro, na segunda, dia atípico para tal. Era um bar conhecido e com cara de pub americano, de paredes forradas a óleo de peroba e quadros antigos pendurados sobre ela. Não se animou com o clima e logo deixou o lugar.
No outro dia, na terça, quando aconteceu o milagre dos bifes, passou no caixa eletrônico para sacar uma grana e ter ânimo de dezoito reais no bolso. Viu a tela mais escura que o normal, imagem que a lente dos óculos de sol lhe proporcionava. Digitou a senha do cartão de débito e viu que nada mais tinha no chip, além de umas quirelas. Ficou puto, nervoso e quis descontar em alguém que não ofereça perigo.
Passou em outro caixa eletrônico para confirmar que não poderia sacar dinheiro algum. Confirmou.
Quis descontar na mãe, mas lembrou que ela estava em casa sem possível conexão via celular, que estava quebrado. Conseguiu falar com ela lá pelas seis, dezoito da noite, quando a raiva tinha sido abafada pelo esquecimento. Não foi rude, apenas informou o que aconteceu: que estava sem um puto, puto por aquela vida ter que ser tão cara.
Estava com pouco dinheiro para voltar para casa. Naquele dia quase não saiu da sala de trabalho, apenas de ora em ora para ir ao banheiro e comer um pedaço doce de bolo.
Marcou com a mãe às oito, na estação.
Quando entrou no carro, viu que ela estava nervosa por ver um filho puto e com raiva daquela vida que também era puta, mas que não a permitia falar assim, pela religião talvez. Entre a conversa e a troca mínima de farpas por gastarem demais sem ter, ela contou que na vasilha de casa, tinham quatro bifes para o jantar.
Disse que contou e os separou em pratos diferentes antes de matá-los na gordura quente. Distraiu-se com algum afazer e disse que no momento da fritura, pôs na frigideira cinco bifes. Um, a mais, havia aparecido entre os quatro abatidos.
O filho constatou que ela havia contado errado e que nenhum bife de boi poderia aparecer entre outros quatro. Lembrou, imediatamente, da passagem bíblica, que Jesus multiplica os pães e mata a fome de uma multidão. Para quem não acredita em Deus, isso soa de forma muito romântica. Há também quem acredite em milagres, mas jamais em Deus, ou em deus.
Mesmo crendo em algumas circunstâncias, o filho logo descartou a hipótese de uma multiplicação milagrosa. Milagre seria se aparecesse dinheiro no banco, mas a mãe afirmou que os quatro, agora eram cinco bifes. No filho, não passou a ideia de uma mentira, ainda mais em bifes que nada ajudariam naquela terça chata.
Quando sentou para jantar, viu dois bifes dentro da panela e a mãe reforçou que naquela terça-feira, um bife surgiu como milagre e dos cinco agora sobraram dois. Um pensamento sobrevoou sua cabeça, como uma brisa leve que bate em nosso rosto. Num dia pacato, de trabalho sem dinheiro e de lua que não brilha, um bife a mais ou outro a menos não importaria, se este não tivesse vindo de um milagre. Creu.

"E então os discípulos entregaram à multidão, pães com bife..." parafraseando