sábado, 17 de dezembro de 2011

Eu posso voar...

...foi o que o menino disse enquanto pintava, dias após começar no segundo ano do primário. De calças ralas, blusa surrada e pés sujos num chinelo de pano, continuava pintando a casa-sapato.
Tia Nininha sorriu ao ouvir estas palavras, que soaram de maneira doce, desse menino que vira há algumas horas brincar lá fora, no pátio. A moça, recém-formada no magistério, lembrou das aulas de psicologia aplicada à educação e sem titubear lançou:
- e como aprendeu?
- A voar? perguntou, quase interrompendo Nininha
- Sim; a voar
- Não disse que sabia
Fingindo esquecer a colocação, desviou o olhar; com um sorriso mais simpático que verdadeiro, pegou na mão do menino e incentivou-o a entreter-se com sua atividade e com outros pensamentos.
- Vai, pinta!
Outro aluno pegou um lápis colorido e retomou sua obra. Antes, ouvia a conversa da professora com o menino.
Do desenho, o cheiro do álcool de mimeógrafo agradava a professora nova. Nininha sentiu os joelhos estalarem. Soltou um 'uff' ao esticar as pernas e levantar. Viu Sandra, linda, de pele parecida com cera, moldada cuidadosamente com a luz do fogo e mãos cautelosas. Segurava três lápis coloridos. Um verde, outro azul bem claro e um rosa. A mão esquerda coloria o sapato em forma de casa, de laranja. Apesar da cor forte, a menina sabia a força a ser aplicada no desenho, fazendo com que a pintura se tornasse suave.
- Lindo, Sandrinha
- É da cor da minha casa, fessorinha
Como as crianças são cheias de atenção, pensou Nininha. Refletia o quanto esses fatos, de trabalhar e perceber os pequenos, a impulsionaram em sua decisão. Talvez, possa ser de forma inconsciente, mas de alguma maneira, que o que já está feito, serve de modelo a ser seguido por quem chega mais tarde.
Ao mesmo tempo, ao pensar nessas protuberâncias, remeteu também toda sua reflexão ao curso de psico-aplicada e a ênfase na educação, que seria completa somente com essas trocas patéticas nas salas de aula. Engrandeceu-se rapidamente e pousou as mãos nos cabelos da Sandra, que retribuiu com um olhar branquinho.
Apesar de ser uma quinta-feira, de inverno, o dia estava quente.
- Terminei professora! Disse Sandra.
Indo até a menina, Nininha perguntou quem mais havia terminado. Ouviu uma negativa em coro. Não apressou-os.
- Quero todos bem bonitões
- O meu está lindo professora. Bonitão, disse a menina prodígio. E realmente estava. A pintura da menina estava demasiadamente enfeitada e com uma coloração em degrade. As cores eram o chamariz da casa, do desenho e nenhum retoque estava faltando.
- professora! Era o menino que sabia voar – terminei!
E entregou o papel com a casa-sapato, pintada em tons de cores ocres.


Segurando com o braço um calhamaço de papeis e abrindo a porta do apartamento com outra mão, Nininha entrou em casa. Nina, por si. Usava o diminutivo apenas com os alunos do primeiro grau e limitava-se a Nina com amigos mais próximos ou com parentes menos conhecidos.
Morava com mais duas amigas, colegas diria. Repartiam o aluguel e algumas angústias. Após despejar as folhas desenhadas sobre a mesa, jogou a bolsa na mesinha de centro de sala e deitou parte do corpo no braço do sofá, coisa que sua mãe odiaria se pudesse vê-la e dar represálias.
Eram tantos desenhos, tantas casas-sapato para olhar e elogiar um a um. Os pequenuchos gostavam de ver a caneta vermelha dando-lhes confiança de um bom trabalho e algumas florzinhas desenhadas junto às letras. Nininha gosta, Nininha quer ver bonito.
A noite estava quente. Olhou pela janela e viu ao longe a torre da Paulista brilhar em cores vivas e cintilar uma a uma, para cima para baixo. Desde que veio de Taubaté, sentia-se importante ao olhar para o centrão e sentir-se parte dele. Embora trabalhasse em região metropolitana, afastada do centro, fazia o mais importante dessa história de superação que era morar ali. Ter uma casa no terceiro andar do Paraíso que permitisse ver a cidade acesa e livre para ela.
Uma de suas conquistas interiores era ter um namorado, coisa que até agora não conseguiu conquistar nesta grande metrópole de galinhas urbanas. Era dessas que inconscientemente acreditava que o homem que a faria feliz viria depois de uma catraca eletrônica e um dia cheio. Sentaria ao teu lado no metrô, roçaria a perna peluda na sua, ambas escondidas em calças jeans. Jamais considerou besteira essas particularidades amorosas que a faziam ensaiar um encontro platônico que talvez nunca conseguisse concretizar.
Durou apenas alguns segundos, o olhar parado para fora; logo Nina virou o dorso cansado e estalou os dedos das mãos inclinando-as para trás. Estafada estava, mas ainda queria sentar e viajar no desenho dos alunos da tarde.
As crianças! Ah, lembrou das crianças e rememorou a inocência contida naqueles aluninhos tão cheios de problemas familiares banais. Crianças da cidade, com tantos compromissos e aulas de inglês, mas que na sala de aula deixavam transparecer um pouco do que realmente ainda são.
Pegou um desenho nas mãos, o primeiro do monte de sulfites. A casa alegre era verde, com plantas pintadas até o céu. Galhos que se uniam aos pássaros traçados com giz de cera preto, enormes, com duas asas. Os pássaros eram asas; o desenho era a visão daquela criança; Henrique era o que estava escrito no verso da folha.
Pegou outro. A casa era preta. Preta e borrada em traços longos feitos com lápis esgarçados pela força do autor. Outra casa, rosa agora, com bordas.
A quinta casa era marrom. O quintal cinza e as nuvens beges. Era do menino. No canto da folha, um pássaro, dando outros horizontes para a casa em forma de bota. O detalhe era que o pássaro estava morto, embora estivesse em pé com um buraco enorme que abria seu peito. As asas, escancaradas, pareciam estar diante de um predador faminto.
O pássaro estava morto,  embora estivesse com as asas abertas e ereto em seu corpo de ave rapina.

continua...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Dia 5

Foi o dia do meu aniversário. Quer dizer, é ainda, sempre será. Pode ser que um dia quando todos os meus amigos e antepassados estiverem ultrapassados, essa data possa ser esquecida quando configurada à mim. Porém, pelo que consta, são minhas bodas anuais individuais enquanto eu exista ou até que alguém, depois de eu ter virado pó, se lembre de mim.
No caso, ontem, vinte e seis largas primaveras; passei um dia corrido, mas com pequenos presentes ocultos. Não teve parabéns, mas teve bolo, de abacaxi. Fui trabalhar e consegui evitar que mil dólares fossem descontados da minha folha de pagamento. Estive fora de casa, por motivos maiores, porém comemorei o dia com pessoas no trem, táxi e numa sala técnica de produtos eletrônicos.
Muita gente me parabenizou, ganhei abraços de gente nova, amigos recentes e pessoas importantes em sentimento. Mensagens escritas pelo celular, telefonemas, presença e colegas que sabem do seu aniversário pela rede social, bombou.
Agrego meu aniversário ao Natal, uma data que eu considero deveras bonita, enfeitada e cheia de reciprocidades gratuitas. É engraçado pois, sempre nessa data, no comecinho de dezembro as ruas estão ainda sendo iluminadas pelas luzinhas pisca e meu aniversário me traz um pouco desse clima que se aloja nas ruas, começando a se iluminar. Eu não me imagino fazendo aniversário no meio do ano, sem ver essas luzes que de alguma maneira anseiam por melhoras. Já me acostumei com aniversário pré-natal.
Quando eu tinha nove, dez, catorze anos, essa já era a data das férias. Sempre aplicado e nerd cdf, saía em férias antes dos outros da sala e viajava para o interior da cidade. Lá ficava até fevereiro e sempre chorava quando tinha que voltar. Na ida eu também chorava, mas depois não queria ver os prédios daqui novamente. Nessa data, de dia meu, sempre me coloco à refletir, me empolgar com novos planos, correr nu nas ruas, ter um novo amor; em contraponto, problemas familiares, conflitos existenciais, retórica não convincente me trazem lembranças nem tão docinhas. Faço uma análise pessoal e vejo que estou perto dos trinta e nem um livro publiquei ainda. Antecipadamente me desespero, mas logo percebo que há tempo para muita coisa ainda. Inclusive para isso.
Sempre olho no espelho. Sempre. Não é um ritual, mas guardo um pouco da minha imagem, de como estou com certa idade. Coisas de homem. No ano passado, tive um aniversário de rei. Participei de um evento que reuniu centenas de jovens e no fim do evento, TODOS cantaram parabéns e gritaram por eu fazer vinte e cinco anos. Porém, o que mais me tocou, foi chegar em casa e ter amigos de anos, de cuecas e banhos me esperando com um bolinho e uma vela micha sobre ele. Chorei.
Nasci às 10h40 da manhã e nesse horário sempre me volto para o sol. Eu gosto de ficar quieto, de bruços sobre essa data minha, só percebendo quem vai lembrar; quem vai dizer que a saga de Sagitário está aberta e lembrar 'Pô o Dani faz aniversário esse mês'. É lindo e gratificante isso. Tenho marcado várias datas de aniversário na minha cabeça. De amigos, família e curiosamente de pessoas que pouco tenho contato, mas que por algum motivo fixou-me a data desse nascimento alheio. Curioso também são as pessoas que fazem aniversário no mesmo dia que eu. Elas sempre lembram e, me lembram, do meu aniversário.
Não sou muito ligado em astrologia, embora eu identifique em outros sagitarianos, pontos de personalidade idênticos aos meus. É comum chover no dia 5 de dezembro. Minha mãe me contou que quando nasci, choveu e posso afirmar que tenho grande sensibilidade com a chuva. Serena, torrencial, firme ou garoa, ela me encanta.
Confesso que essa etapa no dia do aniversário, de atender telefonemas, ler milhares de mensagens de paz, saúde e mimimi me cansam um pouco, porém resgatam que há pessoas, há quem olha, te vê, lembra e tira um pouco do seu tempo para ligar, enviar mensagem e... lembrar de você apenas.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A sala de Deus e o Diabo


Deus e o Diabo moram em uma mesma sala. Estreita, pequena, mas que os comporta inteiramente em suas necessidades.
Deus e o Diabo moram em uma mesma sala, compartilhando suas vidas numa convivência fraterna, mesmo distante em imaginários e pragmatismos universais. Gostam dos mesmos livros, com pequenas divergências entre autores; Usam dos mesmos talheres e opinam diariamente sobre a cor da parede da sala, com um tom amarelado fosco, com mesclas azuis bem claras que vão do chão até parte do teto, coberto de escamas. É assim a parede da sala onde mora Deus e o Diabo.
Tudo se tem na sala e tudo se encontra lá; e aí que se dão suas virtudes em serem, ambos, cultuados por toda a humanidade de fé.
De lá, da sala estreita, eles notam os humanos, manipulam os seus dias e ora ou outra, trocam gracejos sobre as peripécias de alguns pouco experientes.
Da janela frontal, próximo ao candelabro de cera, se vê um jardim florido, com crisântemos e margaridas, onde as estações revezam entre os meses. Deus escolhe o inverno e o Diabo anuncia o verão. Na primavera, o Diabo prepara as flores para que Deus possa murchá-las e derrubá-las pelo gramado dando-as outro destino. Vida.
Ambos moram na sala, dormem na sala e comem na sala. Preferem alimentos ricos em fibras e que não ataque o intestino. Evitam gorduras e condimentos.
Diariamente, ajudam um ao outro no trabalho diário e sempre que possível, lavam o chão com água e sabão.
As telas coloridas da sala reportam ao cotidiano dos homens os seus atributos diários. Deus prefere os sinais, os passos e a fala. O Diabo, o sorriso, o olhar e o pensamento. Ambos se completam, trocam repentinamente de nome e gostam de enganar os que se julgam inteligentes. Respeitam os sábios, mas não os ignoram em suas artimanhas.
Deus e o Diabo moram em uma mesma sala. Ambos não têm sobrenome e há de usarem muitos nomes quando se fadigam de seus arautos pessoais. Cada um tem seus amigos e ora ou outra, numa tarde de domingo ou terça, aparecem na sala quase sempre sem muitas expectativas. Tomam uma cerveja, falam de Sócrates, ciência e sexo. Acabam por haver amigos em comum, muito dispersos, de longa data.
Moram no atraso, na janela entreaberta e nos parênteses familiares. Trabalham duro nas intrigas de família, no nascimento da criança e nas salas de aula do ensino médio.
Um não vive sem o outro. Inventaram o amor, o ódio e a saudade. Alguns desses foram tidos como conseqüências rudimentares de ausência, mas vivem a experimentar outros diversos atos intrínsecos da alma.
Deus e o Diabo moram em uma mesma sala. Assistem seriados, invejam os autores e quase nunca saem para se divertir.
Fazem com que os homens que buscam de seus santos refúgios, imaginem entender um pouco da vida de ambos, que moram em um mesmo lugar e se alargam de dar atenção aos que nele se refugiam. Não é de costume misturar trabalho e vida particular.
Seus vizinhos teimam em taxá-los. Em dizer que um é mau e outro bom. Ambos, Deus e o Diabo são amigos e só dão-se a existir quando é lhes dado permissão. Não deixam vir às margens da virtude quem é quem nessa relação.
Por ora aparecem calúnias a respeito de Deus e o Diabo. Assuntos absurdos, de ordem categórica e audaz. Eles não respondem às essas miudezas ignorantes e continuam pagando suas contas.
A casa tem mais cômodos, mas os dois dividem suas diferentes manias numa mesma sala. Uns dizem que Deus mora em cima e o Diabo em baixo. A sala é o lugar onde moram e ainda não há interesse em mudar.