domingo, 30 de janeiro de 2011

'Causos'


Para quem quiser ler (e para, quem quiser, acreditar)

Quem me conhece sabe que sou totalmente ligado às questões sobrenaturais, ainda mais quando essas se dizem verdadeiras. Apesar do clichê do “Baseado em fatos reais”, essa propaganda para atrair turistas, ainda me atrai em determinada escala, até porque, algumas situações já aconteceram comigo.
Antes de entrar em meus relatos pessoais – e medonhos – venho destacar o que ainda me bota medo. O escuro não digo ser a base dos meus calafrios, embora nele possam acontecer muitas coisas que jamais poderão ser explicadas. Embora, quase todos os fatos que se seguem aconteceram no escuro.
Tenho muito medo de zumbis, esses seres cambaleantes, vagarosos e em estado de decomposição. Meu medo está neles, no fato de já terem morrido e voltarem para nos devorar. Não tenho tanto medo de sua mordida ou no real perigo que oferecem, mas em todo o processo que envolve um zumbi. É um cadáver, uma pessoa que já morreu, que podia estar dentro de um caixão ou embaixo de uma sepultura. Todo símbolo fúnebre acompanha este ser faminto por cérebro (ou carne humana). O meu grande medo é ver, um dia, alguém levantar do caixão ou mesmo abrir os olhos no velório, no seu velório. Por mais que haja alegria alheia pelo dito estar vivo, acho que eu correria gritando e chorando cemitério a fora. Falando neste lugar, o cemitério é um lugar mais misterioso do que medonho para mim. Gosto dele, claro que, não para passear num domingo de folga, mas não creio que lá moram meus maiores medos.
Os fantasmas são os maiores causadores de insônia. Ao contrário dos zumbis, eles podem existir. Não que zumbi não exista, eu não disse isso, mas são mais raros, visto pelos casos no Haiti, envolvendo toda a questão religiosa do vodu, seita proveniente do lugar. Porém, os ‘gasparzinhos’ podem ser uma realidade, pois já vi gente descrente ter medo, (como minha mãe, por exemplo, depois de assistir "Atividade Paranormal). É o desconhecido, envolve a morte e a alma que saiu do corpo, que vaga, que pede ajuda ou que aparece atrás das coisas. Outro quesito questionável é o porquê esses espectros adoram aparecer atrás das coisas? É atrás de armário, cortina, reflexo no espelho e principalmente atrás da porta do quarto, do nosso quarto, do seu quarto. Filmes com essa temática fazem sucesso, pois apresentam casos do desconhecido, daquilo que não possa ser realmente explicado.
Dúvida: um zumbi é um corpo sem espírito. Um fantasma, um espírito sem corpo. Então, enquanto o corpo cambaleia, o espírito desse mesmo corpo pode atormentar os vivos? Uma espécie de ‘conjunto sobrenatural’ onde espírito e corpo assombram em diferentes escalas?
Os extraterrestres também fazem muito marmanjo ter insônia. Outro fator desconhecido, de seres que possam viver em outros planetas – além da Terra – e com inteligência superior aos humanos. Naves e OVNI’s são vistos em todo o canto do mundo. Tem gente que não liga para fantasmas e zumbis, mas se borram quando o assunto é ET. Teve o caso do Et de Varginha, os “causos” inexplicáveis no triângulo das bermudas e outros Bilús que aparecem por aí. O cinema aproveita para criar situações diversas para nossos amigos Etevaldos.
Outras plataformas do medo tentam molhar as calças do povo, como bolhas assassinas, aranhas gigantes (embora eu mooorraa de medo de aranha de qualquer tamanho) seres do mar gigantescos, enfim.
Alguns casos aconteceram com este que vos escreve. Isso sem contar os amigos que me relataram outras situações de medo. Segue uma delas, que aconteceu comigo, justo comigo:

O causo do Raimundinho

“Esse é o caso que pode parecer engraçado hoje, mas quase me fez chorar de medo na época que aconteceu”

Em uma cidade do interior, chamada Avaré, onde costumo passar minhas férias e feriados, mora minha avó materna e outras tias. Meus pais tem casa lá também.
O cemitério da cidade é bem comportado, digamos. Bem cuidado pela prefeitura, com algumas esculturas e ficou mais visitado pela minha família desde quando meu avô passou a morar lá. Sepultado. Confesso que, este cemitério, me atrai mais pelas histórias e lendas que o rodeia do que pelas esculturas tumulares.
Raimundo é um menino que morreu antes mesmo de eu nascer. Ficou doente, faleceu e foi enterrado neste cemitério em um jazigo pequeno, reformado posteriormente com azulejos azuis e uma foto sua com roupa de criança do século 19. Aquelas roupas que incluem chapéu e bordados ondulados.
Sempre acompanhei as lendas e contos da cidade que incluem o túmulo dessa criança morta. Algumas mães aflitas com o comportamento de seus filhos pequenos, rogam à esse menino, pedindo ajuda, para que seus filhos deixem a mamadeira, ou o hábito da chupeta e até as fraldas. Ao alcançar essas ‘graças’, as mães deixavam no túmulo alguns doces e até as respectivas chupetas de seus filhos, como forma de gratidão. Claro que, para os mais materialistas, isso só daria mais trabalho aos zeladores do cemitério, que tinham de limpar toda essa oferenda. Para os mais espiritualistas, isso refletia uma forma material de gratidão e oferta ao menino morto.
Nos dias de finados, o cemitério ficava lotado, com missas e celebrações em oferecimento aos mortos. Lembro-me que, nessas datas, o túmulo do Raimundinho ficava repleto de doces, inclusive balas rosas de Yorgut que eu adorava, mas jamais tive coragem de pegar uma delas e comer. Chupetas coloridas também ficavam durante dias ao lado de velas, sobre o túmulo do menino. Com o passar do tempo, construíram uma mini capela in front ao túmulo do pequeno, que se hoje estivesse vivo, seria mais velho que eu. Essas explicações se deram para você entender essa lenda de cidade pequena.
Nunca fui atrás de mais relatos sobre o menino, embora meu irmão mais novo disse que ele morreu de uma doença contagiosa. (Talvez eu siga mais adiante nesse assunto na próxima vez que for para lá, eu disse Talvez!)
Eu e minha alma de cineasta, num belo dia, levei minha Handycam ao cemitério para gravar esse túmulo. Gravei as balas, as velas e inclusive a foto do Raimundo, sem diminutivos dessa vez. Acompanhado dos meus irmãos e alguns primos, me divertia fazendo imagens dessa lenda morta-viva dali. Dei até zoom na fotinho. Meu irmão brincou:

- Você não trouxe balas para o Raimundinho. Ele vai cobrar pela filmagem.

Tentei me desvencilhar dessa afirmação:

- Imagina, Raimundinho não faria isso.

Visto que certo calafrio me correu as pernas, fui me entreter com outro túmulo ou outro assunto. Não queria ser cobrado posteriormente.
Sei que nesse dia, consegui com exclusividade, imagens dum coveiro em uma desossada. Perguntei se ele não tinha medo da profissão e aquela famosa frase veio à tona: “Tem que ter medo é dos vivos, né fio” Não concordo muito com isso.
Naquele mesmo dia, após sairmos do cemitério, tomei banho (por higiene, não por superstição) e junto com minha mãe, fui visitar uma prima. Cristina, a prima, tem seis filhos e seis pais diferentes para cada um deles.
Um deles, o mais novinho me pediu para comprar doces. Comprei uma boa quantia de balas e distribuí entre eles. Ficamos um tempo lá e depois seguimos para minha casa. Neste dia, especificamente dormiram em casa apenas mamãe e eu. Ela no quarto dela e eu num quarto nos fundos, colchão no chão.
Dormi, acordei depois de algum tempo. Meia noite e quarenta e dois. Quase uma da madrugada. Ouvia algumas poucas pessoas conversando na rua e me virei para re-dormir. Dormi novamente, acordei. Duas da manhã agora. Olhei no celular e este iluminou todo o quarto. Uma pequena luz na escuridão, ilumina um quarto inteiro.
Fechei os olhos para retornar ao sono, mas todo sono se foi quando ouvia alguns barulhos ocos na parede, como se alguém batesse, parasse e depois batesse mais. Parecia correr, parecia caminhar na parede. Era um ruído contínuo, alternava na velocidade mas sempre voltava. Não parecia um gato no estuque, mas eu queria que fosse um gato no estuque. Era como alguém batendo na parede com as mãos fechadas. E com as mãos de lado.
Fiquei amedrontado e nenhum cachorro latia lá fora. De vez, acendia o celular para iluminar o quarto e corria com o neon sobre as paredes. (e o medo de ver alguém agachado aos pés do colchão) Fechava os olhos e o barulho tornava-se quase inaudível, mas no silêncio da noite, era audível, penosamente audível.
Levantei e fui ao quarto de mamãe, que dormia pesadamente. Chamei uma, duas e na terceira vez ela, assustada, perguntou o que eu queria. Perguntei quem morava nas casas do lado. Do lado do barulho, disse, morava um casal e no outro, baldio.
Até brinquei, tentando amenizar o momento, que o filho desse casal escolheu um horário péssimo para brincar. Mamãe em seu sono, disse que o casal não tinha filhos e mesmo que tivesse era impossível ele brincar, pois estavam viajando.
Meu medo aumentou, mas não até o momento que, em seu quase sono mamãe soltou: “Você fica filmando cemitério, as coisas vieram junto com a filmagem” Nessa hora Raimundinho e a foto dele, brilharam nitidamente em minha mente. O pavor me dominou.

- Dorme que passa, ela disse.

Dormir? Oi? Era o que eu mais queria naquele momento e enquanto eu ainda falava com ela, os murros na parede continuavam. Murros, passos, tapas, sei lá eu. Até incentivei-a a ouvir mas o que eu ouvi foi seu ronco fundo. Dormia.
Voltei para o colchão no chão, voltei para o neon do celular que agora acendia de minuto a minuto, menos que isso. Rezei, na esperança de afastar aquele medo. Tava com muito medo, tudo estava estranho e tive real vontade de chorar. Rezava e entre uma palavra do Pai-Nosso e Ave-Maria, balbuciei:

- Raimundinho, se for você: não levei bala ao seu túmulo, mas comprei aos filhos da Cristina.

Não sei se foi a oração, as balas ou a promessa íntima de apagar a gravação, mas logo após uns minutos, os sons pararam. Tudo cessou e o silêncio me trouxe mais medo, mas ao mesmo tempo um alívio. Senti que estava seguro e adormeci. Só lembrei-me disso quando acordei no outro dia e apaguei, sem dó, toda a gravação.

Conto mais votado:
"O porco na janela"

Essa situação se deu na mesma cidade do caso acima: Avaré. Eu e minha tia, Laís, antes de dormir, conversávamos no quarto. Ela numa cama de solteiro e eu em um colchão, no chão, ao lado. Era quase meia-noite.
Atrás da casa, havia uma outra casa, que fazia parte do mesmo terreno. Era uma casa alugada, de três cômodos.
Enquanto conversávamos, ouvimos o portão abrir e fechar. Passos avançaram no corredor. Passos lentos, de quem não estava com pressa e ousaria dizer, cambaleando.

- A mulher deve estar bêbada, sugeriu Laís.

Imaginamos quase que unânimes que era uma mulher, pois o barulho dos passos mais pareciam com o barulho de sapatos de salto. Passos lentos e descompromissados, naquela hora da noite.
Não demos tanta trela aos passos de salto e voltamos a conversar sobre outras coisas. Não me lembro como, mas acabamos caindo em assuntos que envolvem cemitério e pessoas já falecidas de nossa família. Passava da meia noite.
Inesperadamente, ouvimos bem próximo da janela do quarto, um grunhido alto, rápido e gradativamente grave. Paramos o assunto, paramos de imaginar e ficamos sem ação durante longos dois segundos.
Meu corpo pulou do colchão e ao sair, percebi que Laís não conseguia se levantar de tanto medo. Voltei ao quarto e apenas minha presença a fez levantar e correr para a cozinha.
Apavorados, corremos ao quarto de minha avó e dissemos que ouvimos um som parecido com o som que o porco emite quando está com fome.
Minha avó, como sempre, sugeriu que fôssemos dormir e ainda bronqueou com o fato de estarmos acordados até aquela hora.
Custou para voltarmos ao quarto, porém nada mais soou da janela.
Essa história me rendeu muitas piadas, em rodas de amigos, e vários títulos rondam sua veracidade. "O porco de salto", "O porco na janela" são os mais sutis.
Eu e Laís, quando nos encontramos, questionamos um ao outro o grunhido que ouvimos naquela noite.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Vista para o céu

Parte I

Era de se esperar que os hotéis estivessem lotados em época de festas de fim de ano ou qualquer outro tipo de feriado religioso, ainda mais no Brasil onde reside a fé católica em sua grande parcela de crentes. A praia foi descartada antes mesmo de ser cogitada. O campo parecia monótono demais para constar como destino de um casal que procura férias agitadas. Vacas e os outros animais provenientes dele poderiam entreter os filhos, mas como o casal não tinha filhos e ainda não planejavam um, o mato não chamou tanto a atenção.
Surgiu uma colônia, dessas onde as atividades são programadas e quase sempre não agradam tanto. São mais interessantes no folhetim de anúncio do que na realidade. Veio também a idéia de um cruzeiro e isso agradou os dois, tanto ele quanto ela, mas o orçamento não correspondia à ideia. Até estudaram o passeio num navio gigante, viram fotos de vistas maravilhosas, mas sabiam que um cruzeiro, sete dias num cruzeiro, era muito caro, mesmo fora de temporada e com a moeda nacional valorizada.
Acabaram numa cidadela cheia de crianças correndo pelas ruas, armazéns e gente sentada na varanda de casa. A mulher esbravejou quando viu folhas secas pelo chão, mas o marido tentou encontrar um motivo para ficarem.

- Pode ser interessante, disse em voz baixa.

Quase não tinham pousadas na cidade, nem mesmo hotéis vagabundos. À cada pessoa que perguntavam, eram mirados dos pés a cabeça e com um sorriso sem vergonha no rosto, as pessoas diziam não saber se havia, ou não, um hotel nas proximidades.
Avistaram uma casa grande, dessas com aspecto medieval e imaginaram ser um bordel, visto pelas meninas de saia curta e blusa sem manga, recostadas na porta. O marido, educadamente se apresentou a uma delas e percebeu que aquele tipo de educação era desnecessária naquele lugar. Perguntou se era um hotel e antes mesmo de terminar, a mulherzinha apontou para o balcão e olhou a esposa da cintura para baixo.
Era um hotel, efetivamente um hotel e organizado, mas de baixo escalão. A senhora gorda da recepção os atendeu com educação, mas com uma simpatia surrada, de gente do mato que trata todo mundo como velhos conhecidos. Isso irritou um pouco o marido, mas a esposa observava as outras portas do lugar.
Enquanto a gorda falava dos aposentos, o marido ouviu um gemido agudo de mulher e um ranger de cama, vindo de perto. Sua mulher certamente ouviu, mas parecia se encantar com os corredores do casarão. Havia quartos vagos, mas o homem não quis ficar. Mais do que rápido, tirou sua mulher dali com certa vergonha de tê-la levado àquele lugar. Uma imagem de um puteiro vagabundo rondou sua mente e não quis compartilhar seus desejos sexuais com a esposa. Saíram e a mulher da porta continuou a olhar a esposa caminhando pela rua da frente.
O dia já encerrava seu trajeto, a noite debruçava-se sobre as montanhas, mas não havia chegado ainda aos telhadinhos. Sabiam o caminho da rodoviária e o próximo ônibus sairia em meia hora, mas não souberam explicar porque não foram embora daquele lugar vazio de interessantes destinos.

Parte II

A fome causou um oco principalmente na barriga do marido. A esposa queria “fazer xixi” e era assim que descrevia sua vontade. Pararam num boteco de nome “Vintém” e a mulher esqueceu por um instante das reclamações caseiras do banheiro sujo e logo entrou no cubículo de pisos brancos para derramar sua ânsia física da urina e da vontade de estar em casa. O marido estava incomodado com a situação, porém jamais pensou em reclamar, pois foi ele quem teve a ideia de entrar num ônibus qualquer e seguir viagem para Itatinga. Foram quase três horas de viagem e ele, nesse tempo, conseguiu convencer a esposa que seria curioso descer numa cidade pequena, desdobrar suas esquinas e depois dormir num lugarzinho aconchegante. No fundo, lá fundo de sua mente, quase se certificou haver hotéis em Itatinga, mas começou a se preocupar quando viu as lojinhas fecharem suas portas e nenhum rastro de algum lugar decente para deitar a cachola.
Enquanto pedia uma coxinha de frango, viu a esposa sair do banheiro, desajeitada com o vestido e com o lugar. Ela passou por ele, parou na porta do Vintém e acendeu um cigarro. Ele detestava quando ela fumava e lembrou da promessa em parar, mas ali, noite, num boteco, não quis incomodá-la ou não quis incomodar a si mesmo.
Os passos dos dois estavam cansados e quando pensaram ir para a rodoviária e pular no próximo ônibus de volta para a cidade, viram escrito numa placa de madeira em frente a um sobrado: ‘Quartos disponíveis’
Sem pensar, o marido bateu palmas e o som delas ecoou no quintal, que no escuro parecia pequeno, mas o som provou o contrário. Do fundo, de bermudas jeans e chinelos, saiu um mulato, magro e de sorriso largo.

- Boa noite, viajantes, saiu da boca do mulato.

- Procuramos um quarto para dois, dessa vez a esposa, meiga e firme.

- Esqueci de tirar a placa, desculpem-me, não há mais quartos vagos! Todos estão ocupados.

E emendando a fala, disse que em um estava uma mãe com a filha adulta, noutro, dois jovens estudantes, no fundo uma mulher e seu amante e no último um padre velho e ranzinza. A mulher interviu dizendo que iriam embora pela manhã e tentou ressuscitar no mulato a lembrança de outro possível quarto vago. O mulato pensou e agora se podia ver seu cavanhaque, mas não todo seu rosto. Caminhou lentamente e continuou sua explicação:

- Atrás da minha casa tem um lago, um lindo lago!

E novamente emendando a fala, disse que cobrava quantias diferentes para cada hóspede de sua casa. O marido levantou o pescoço para notar se realmente aquele sobrado possuía tamanho para abrigar umas dez ou quinze pessoas, e no escuro mais escuro da noite, percebeu que realmente havia um oco, um vazio atrás do terreno e ali podia mesmo ter um lago. O escuro não o deixou notar nada. Apenas supôs.
Voltou a prestar atenção no menino. Agora explicava que cada janela de sua casa tinha uma vista diferente para o lago e por isso cobrava mais caro para as vistas mais privilegiadas.
A mulher interviu novamente e agora, já sem paciência, agradeceu e deu as costas para o jeans e os chinelos de cavanhaque. O marido prestava atenção na conversa e por um instante, um instante bem miúdo, imaginou o lago que podia enfeitar a varanda daquela casa. E logo atropelou esse pensamento provocante com outro pensamento, mais instigante ainda, de como seria ter em casa, um lago. Um maravilhoso lago, mas logo estava sendo puxado pela mulher, que não imaginava lago, nem maravilhoso, nem nada. O homem, ainda atento, mas lutando para não contrariar a mulher, ouviu a voz do menino atrás do portão:

- Tem um quarto... Com vista para o céu, e seu rosto se iluminou.

Parte III

Esta última fala foi um motivo, ou mais um motivo, para causar na mulher o desejo de estar em casa e poder degolar o marido que outrora a convenceu ser ‘interessante’ essa viagem para uma cidade desconhecida e pequena. A característica pequena, nas palavras do marido, soava como um adjetivo, uma qualidade e quase que inconsciente, essa sensação agradável na palavra pequena, transmitiu à esposa uma curiosidade de estar nessa cidade, pequena. Esse encantamento que o marido tinha causado nela há algumas horas, era o mesmo que aquele cavanhaque de rosto iluminado estava causando em seu marido, agora. Ainda mais pelas circunstâncias do momento, de não ter onde passar a noite e descansar. Embora a cidade não parecesse oferecer perigo, não quis arriscar e ficar ali discutindo se ficaria ou não num quarto “com vista para o céu”, soltou essas palavras quase que remedando seu autor.
Ficou ainda mais nervosa quando mensurou a ousadia de um molambo em oferecer um quarto com vista para o céu. O que não era comum. Ofereciam-se quartos com vista para o mar, ou para montanhas, campos verdes e vastas ramagens de flores, mas para o céu? E por mais excêntrico que fosse, poderia ter vista para um abandonado campo de concentração, de antigas guerras, ou mesmo o simples lago atrás da casa, que ele jurava existir. Quem queria ver o céu? Podia vê-lo dali de onde estava e não precisava pagar estadia num quarto para ver nuvens e possivelmente um pássaro voando entre elas.

- Vamos passar a noite no quarto! Disse o marido.

A mulher não acreditou nas palavras dele e o estranhou por um instante. O menino retirou a placa do portão e colocou os chinelos na calçada, enquanto o marido já abria a carteira para acertar a noitada no quarto com vista para o céu.
Sem poder esbravejar mais, pois o marido já estava inteiro dentro da casa, a mulher esperou entrarem no quarto para assim finalmente degolar o marido, com palavras e juramentos de separação. Sabia que não era capaz, mas naquele momento era. O menino não pegou o dinheiro ainda e ocupou-se com as malas dos dois. Foi a frente deles e explicava cauteloso sobre o quarto.

- É um quarto com apenas um colchão, de solteiro. Terão que dormir apertados. Se for para apenas dormir, não precisarão de mais nada.

A mulher quis falar, mas apenas um grunhido oco saiu de sua boca, como desabafo misturado com raiva. Passaram por um corredor comprido e novos quartos iam surgindo conforme adentravam a casa, que se revelava maior que suas estruturas exteriores. A porta de um dos quartos estava semi-aberta e a esposa pôde ver um velho sentado aos pés da cama recitando o terço. Viu a janela e o breu fora dela.
O menino parou ante um quarto no fundo do corredor. Pegou uma única chave pendurada ao lado da porta, num desses ganchos improvisados e a abriu com apenas um toque. No quarto, escuridão. O menino entrou, sumiu lá dentro e ao acender a luz, o quarto revelou-se miúdo e com um esqueleto de cavanhaque e chinelos, no centro dele.

- Este é o quarto, apresentou o esqueleto, movendo satisfeito o braço direito.

Era miúdo mesmo, pequeno a tal ponto de, o menino sair para que os dois pudessem entrar. A mulher entrou e com uma volta ao redor de si mesma, viu o quarto inteiro e depois a cara do marido, encarando o assoalho, com mais medo dela do que de dormir naquele chão frio. O menino disse que no outro dia, pela manhã, acertariam a quantia da pernoite e desejou um bom sono aos dois. Antes de sair recomendou:

- Acordem antes de o sol nascer! Sei que estão cansados, mas bem cedo, abram a janela e observem o céu.

E saiu novamente satisfeito com o aluguel daquele quarto. O marido fechou a porta e nem sequer olhou para a mulher. Havia cobertores e apenas um travesseiro sobre o colchão. O homem tirou os sapatos e arrumou as malas no canto do quarto, ao par do colchão. Ela chorou e não conseguiu degolá-lo.
Em pouco tempo, ambos estavam deitados e abraçados no colchão que incrivelmente os abrigou bem, mesmo eles dormindo frente a frente num colchão único, de gente solteira. A mulher, agora mais calma, lembrou-se dum trecho de um livro que lera na faculdade, cujo escritor português narrava a história de um casal que embarcou no mar em busca de uma ilha desconhecida e acabaram esquecendo-se de cotar o céu como fonte de perigo para suas jornadas. Lembraram do mar e esqueceram-se do céu. Logo refletiu como os poetas e escritores dão valor ao céu que está sobre nossas cabeças, todos os dias, mas que nunca, ou quase nunca, ninguém pára para admirá-lo, ou pensar sobre ele. Não era poeta e nem pretendia ser, mas nesse momento o céu aguçou sua vontade de encará-lo. O céu, aquele mesmo de sempre, lá em cima, que se podia ver sem pagar.
Reparou que o marido caíra no sono e já dormia. Foi até a janela e com os dedos miúdos como o quarto, girou a pequena manivela que separava seus olhos da vista do céu.
Escuridão foi o que viu e dessa vez ninguém estava ali para acendê-lo como fizera o esqueleto há pouco, com o quarto. Lembrou do lago e tentou vê-lo também. Um fardo de frio tocou seu peito e entrou no quartinho. Novamente olhou para cima e nem uma estrela sequer encontrou.
Entristeceu-se por, a pouco rejeitar a vista para o céu e preferir ver o que se podia tocar, como as flores ou o mar. Neste momento, entendeu um pouco sua alma de poeta e algumas palavras do menino magro, de rosto iluminado, que falava tão bondoso, dessa tal vista.
Fechou a janela e ansiosamente foi se deitar para poder dormir e no outro dia esperar a aurora e novamente poder ver o céu.

FIM