segunda-feira, 19 de abril de 2010

Era quarta

Era quarta-feira. Dia fatídico cheio de trabalho, chefa, luzes de poste. Chato por si. Saiu do trabalho, entrou no Citroen e seguiu rumo ao litoral. Não avisou a família e sabia que ia ter problemas pelo sumiço instantâneo e não teria como explicar o motivo de descer à baixada no meio de março, depois de um meio de semana repleto de números.
Ouvia as músicas que levava em seu mp3 plugado no som do carro. Ficou feliz por ter adquirido o aparelho há dois anos.
Mantinha uma velocidade branda, avistava as luzes das casas de beira estrada que compunham a via que já havia passado em outros carnavais, natal ou réveillon, mas em março, ainda não. E sozinho, tampouco.
Eram poucos os automóveis que iam no mesmo rumo que o seu, mas havia. O celular acendeu no banco do carro e viu que a operadora havia mandado uma mensagem. Ignorou. Passava pouco das onze e ainda ninguém de casa entrou em contato, pois costumava chegar após os doze minutos das zero.
O túnel abafava o som da noite. Norah cantava baixo num timbre doce. Não negava o motivo de precisar ver o mar, mesmo que de dentro do carro. Seu olhar estava longe, distante do mar para onde ele se aproximava. Exultou-se pela liberdade, emprego, amigos e por ter a mãe por perto, mas era desarmado nas questões que envolvem o amor e suas peripécias.
Os amigos viram um amor antigo num barzinho de samba. Naquele domingo, ficara em casa por ter apenas vinte reais na carteira, mas não se lembra do motivo por realmente não ter ido. Mas foi bom ter ficado no quarto, ou não.
Já tinha ido lá quinze, vinte ou cem vezes, em domingos seguidos até, e nunca havia encontrado nada que fizesse seu coração tremer. Até tinha um certo asco daquele lugar por ter gente feia demais. Tudo mudou quando soube que uma pele morena conhecida e nada de ex-amada andava sobre os muros laranjas daquele espaço.
Sabia que nada mais o importava sobre tudo o que passou, mas por milhares de motivos ainda guardava um sentimento que não era nem amor, nem paixão, nem ódio, nem sabia.
Olhou para o lado e viu a cidade iluminada de Santos abaixo de si. A estrada um pouco molhada e a casa que um dia repartiu de banhos estava lá, no meio daquelas luzes.
Deus o livre de um dia alguém descobrir que desviava seu caminho de quarta para afogar a lembrança de um estranho sentimento. Tinha parentes de amigos na praia, de casas com jardim e piscina de lona. Queria só ver o mar.
Não soou sequer uma palavra dentro do carro e quando calava-se estando sozinho, a situação poderia ser considerada séria. Falava constantemente sozinho, dando broncas em si mesmo e despistando algumas dores com piadinhas sem-graça que duravam segundos.
O farol iluminou um homem que caminhava na beira da estrada. Quis descer, contar, pedir uma opinião, pois talvez o magricela poderia dizer uma palavra que o ajudaria naquele momento. Que pensamento besta! Poderia ser assaltado e seu corpo encontrado depois de alguns dias. O que sua mãe diria? Tinha apenas 26 anos. Sorriu pela primeira vez desde que cruzou o primeiro pedágio, quando riu do... do que mesmo? Esqueceu.
Entrando na cidade, viu uma grande estátua de Nossa Senhora Aparecida, depois um bordel mal iluminado e uma casa pintada com um peixe azul na porta. Sentia o cheiro de estofado, que tinha mandado lavar anteontem, segunda, quando soube que o amor estava por perto, mas ele estava em casa ocupando-se do domingo.
Sentiu uma brisa fria no rosto e piscou com a luz de um ônibus que cruzou com ele na rotatória. Viu uma rua pequena, com casas e alojamentos amontoados, que mais parecia um grande corredor no meio da cidade. Tinha areia na valeta, no canteiro central e alguns bares ainda estavam abertos. Viu que a cidade de praia também é cidade.
Sempre acostumado a vir para se divertir, acostumado com o MASP, a Augusta ou os faróis de longe da avenida Angélica, tinha um olhar menos preocupado nesse tipo de lugar, afinal tinha se tornado tão caipira dentro de uma metrópole que o bairro vizinho era novidade para ele.
Viu uma placa verde, velha, com as palavras: “Turistas, sejam bem vindos.” Não era turista. Era quarta-feira.
Entre alguns minutos esqueceu por que estava ali. Quis apressar-se para voltar e teve segundos de medo. Lembrou-se da mãe, quis chorar, mas não pela lembrança, ou não por essa. Ela – a mãe – simbolizava o mais tenro dos sentimentos, a perda irreparável, a verdade do coração, ao menos do seu e talvez isso fosse o que falta à sua vida bem sucedida de planos encaixotados em maços de papelão.
Virou a rua e fez uma entrada proibida, mas logo contornou para a rua que daria acesso à praia, porém não queria a praia e sim o mar.
Ouviu fora do carro os pneus arrastarem na areia. Viu uma grande montanha em frente ao carro e as casas ainda o impossibilitavam de ver as águas. Chegou mais perto, diminuiu a velocidade e o som das ondas que se quebravam longe, o remetiam às pedras que um dia sentou com o amor do samba de domingo. O oceano era um só.
Algo reluzia em um ponto da montanha e lembrou que não era montanha, mas monte. Este que o olhava, observando-o pequeno e só, em frente ao mar.
As faixas de estacionamento estavam apagadas no chão, em partes pela areia em partes pelo tempo que estavam pintadas ali. Amarelas.
Uma placa de aço, na altura dele, tinha o desenho de um coco com canudo, sorrindo para o nada. Aquele coco estava dormindo, era quase uma da madrugada.
Desligou o som e o motor do carro. Tudo ficou mudo e ele olhou para o mar.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O Teto

Hipóteses de pés que pisam no assoalho de vidro e refletem sua própria imagem no solo. Outrora, ouça o ruído que o teto pisado faz e quem é que está sobre as nossas cabeças. Há possibilidades de tocar o teto e ouvir se algum gato vagabundo anda acima e ainda é cedo para julgar se nosso destino é um dia pisar sobre a cabeça dos outros O teto que está sobre nós, revela que mesmo com as ilusões de não haver nada sobre nossas mentes, ainda há um teto, um lugar mais alto. Refleti sobre essa hipótese quando em pé sobre um tablado de cimento, fiquei mais perto do teto que outrora era distante e me causava alegria quando conseguia tocá-lo com meus dedos finos. Seja por algum que me levantou ou por subir em um móvel imóvel e firme. Me fez tocar o teto. Com as andanças da vida, passei a me aproximar do dito postulado e nem sequer me dei conta de que ele se aproximava de mim. Busquei – e ainda busco – sua proximidade íntima e ele se afasta quando mais eu o busco. Assim como a vida, o teto é um fato interessante, concreto de natureza e abstrato em suas conformidades. Podemos ouvir quem nele pisa, mas não saber quem nele está. Mesmo que para o ouvidor, o teto seja o auge, para quem pisa ele é o mínimo e para este também há um teto. Hoje pisamos no teto que serve de sonho para outro homem, abaixo de nós nem que seja só de passagem, amanhã nosso teto pode ser um chão. Quem o vê, nele quer estar, nele quer ser, encostar. O teto como fato inerente demonstrado por pinturas de cores ocres, borra-se com a bota de quem pisa. O teto é um segredo. Conciso em ser sustento e sonho ao mesmo tempo, separados em questões hipotéticas e um mesmo que o relata em ser apenas teto. Ouça enquanto um barulho provido do teto preocupa e um, do chão, incomoda. É mais trágico um teto cair sobre nossas cabeças do que um chão ruir abaixo de nossos pés. Paredes de cima preocupam mais do que as de baixo. Quem ousaria entrar numa casa onde o teto está caindo? Prefiro pisar no solo que se dilata do que bancar o besta em colocar minha cabeça abaixo de um concreto molambo. Infeliz de quem não se dá conta de que pisa num teto, naquilo que um dia foi o seu teto. O chão nada mais é do que teto de alguém e o teto, chão de outro. Batem as vassouras dos edifícios pedindo silêncio, trocam as lâmpadas do andar de baixo e olha-se pelo vão na obra mal acabada. Ainda quero estar no teto que observo com olhares fixos e sugiro que quem for pisar no meu teto, tenha consciência de que eu o deixei bem limpo e varrido. Digno de ser polido e capaz de abrigar um corpo cansado. O chão que um dia foi chão e hoje é teto para alguém, enquanto eu piso no teto que é meu por merecimento.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Dois Ois

Um texto com um pouco de melancolia e ao mesmo tempo simples, de pensamentos sem vozes, entre duas palavras.

- Oi? Disse deste lado da linha.
Havia ensaiado durante meses essa ligação. O número discado foi decorado e percebeu que não havia esquecido, pois não tinha sequer um papel ao lado com algo anotado. O coração aflito o fez lembrar naquele desgastado teclado numérico, quantas vezes tinha discado o mesmo número em anos anteriores e em outros demasiados aparelhos, quando ainda os sentimentos se encontravam em um mesmo almejo. Ligava de um orelhão público, com adesivos prostitutos colados ao pé do ouvido. O aparelho azul não tinha lábios vermelhos, mas dele surtiria a voz do ex companheiro que iria responder seus anseios, mesmo com palavras ocres, o timbre o bastava. Bem próximo do azul que o aproximava da voz longe em outras circunstâncias.
Aquilo que chamavam de relacionamento, de aliança no dedo e oculto dos parentes próximos, terminou logo depois de uma traição boba, que partiu de um dos lados. Estava cansado da falta de tempo e se emaranhou em outros braços, antes mesmo de encerrar o gosto do outro. Braços que eram mais frios do que a causa do término. Lembrou-se rapidamente das canções que embalaram o relacionamento, dos momentos de água salgada e do sexo que faziam enquanto os pais viajavam. Eram adolescentes de coração bobo, mas haviam amado verdadeiramente um ao outro, embora isso tenha acontecido em momentos distintos enquanto estavam juntos. Brigavam, calavam-se e beijavam-se no final. Lembrou também da viagem e do sexo que fizeram ao entrar na casa do destino antes mesmo de desfazer toda a bagagem.
Questionou-se como tudo aquilo podia ter acabado na intensidade do gosto que tinham um pelo outro. Ficou imaginando o que o outro pensava enquanto segurava o telefone ao ouvir seu singelo cumprimento feito de duas vogais. Não se deu conta que o fato de ter novamente ligado, fôra um processo de determinação e uma batalha contra o próprio orgulho. Discou em uma tacada só e entregou aos ventos aquele momento. Tantas outras ligações já tinha feito naquele orelhão para outros amores e para este também, mas não no momento que vivia agora. Viajou também pelo cheiro de saliva seca na pele, de outros sexos que esbarrou pelo caminho, todos para se convencer que era capaz de amar um outro alguém e caso um dia pudesse, contaria todas as aventuras que teve como prova de esquecimento, mas não. O outro estava na linha e havia sentido quem estava novamente o procurando.
Este outro poderia ter ido embora como prometera certa vez ou estar aquecido em outro coração ou se esquecido de tais momentos que o fizeram novamente procurar o passado atrás de uma seqüência numérica. O outro poderia também tê-lo esquecido e jogado todas as lembranças fora, menos uma foto que guardava apenas para se juntar aos demais casos que tivera durante seus dias devaneios. Ou não, podia ter tudo muito bem guardado na esperança de um dia retornar a amar a voz que estava do outro lado da linha. Teve raiva de si mesmo por
dois ou três segundos, pois não deveria ter tirado um tempo de sua vida tão corrida para aparecer em outra que dele correu tão cedo.
Imaginou o motivo daquela ligação, que não hesitou para atender, pois imaginou ser sua mãe perguntando do rodo que esqueceu atrás da porta da cozinha. Mas não, era um amor passado que novamente entrou em sua vida por um momento pequeno. Franziu os pêlos da sobrancelha, tentou transmitir calma e se fazer de desentendido, mas um sorrateiro sorriso surtiu de sua boca e imediatamente ficou feliz por não poder ser visto pelo telefone. Poderia passar pelo tom da voz o sentimento que julgasse necessário. Por ter recebido essa ligação embora também tivesse vontade de saber como o outro estava, tinha o poder sobre aquele momento. Ou não. Talvez por ter sido ele que encerrou a união há dois anos, tinha mais dúvidas sobre si do que aquele que deixou chorando na estação.
Ambos não sabiam o que falar e nem como agir, mesmo que não precisassem se mover. Alguns pensamentos se encontraram ali, as músicas, a chuva e quase instantaneamente puderam ler naquele segundo em silêncio que ainda tinham muito que ser um ao outro. Os dias o afastaram, o trabalho havia mudado e talvez agora pudessem dedicar um pedaço de tempo. Talvez estivessem mais maduros, mais determinados a amarem-se e tudo ficou tão perto. Moravam ainda em suas cidades de início, pois o número discado foi o mesmo. Um deles julgou lembrar-se das brigas para suscitar maturidade e não deixar que aquele minuto se tornasse doce demais e pudesse agir com a razão, como não fizera várias vezes em tempos remotos o que resultou em lágrimas que poderiam muito bem ter sido evitadas. Nem sequer tinham caído em si pelo nervosismo de um ouvir a voz do outro. Voltaram ao aparelho azul e o passado foi ligeiramente esquecido para que pudessem dar continuidade a uma conversa banal e ao mesmo tempo, interessante. Estavam presos ao momento e próximos em suas vozes, em coração, mas não juntos. Podia ser uma ligação qualquer, uma proximidade boba ou um rumo que se retornaria, quem sabe... Ou apenas mais uma das tantas conversas que fizeram durante seus vinte e alguns anos.
- Oi, respondeu o outro.