domingo, 7 de outubro de 2012

O que me irrita em dias de eleição e ano-novo

Praça da cidade, com coqueiros,
parque de diversões e cavaletes animados

Neste domingo, dia do pleito, saí de casa com dor na consciência em saber que sou obrigado à votar em alguém. A obrigação me faz doente, me mostra o quão dependente ainda sou de um país que se diz livre.
Em dias de eleição e ano novo, fico nervoso. Chego até a tremer, por saber que me obrigam implicitamente nessas duas datas à, respectivamente, votar e comemorar. Já pensou em não comemorar o réveillon? Ficar no quarto, comendo algum prato pronto e dormir antes da meia noite? Não dá. Os fogos te acordam, a televisão te impregna da novidade chamada ano, sem contar os familiares que te perguntam se está tudo bem, para 'numa época de festa, você querer apenas ficar quieto no seu quarto'.
Fora os desejos de correr nu pela rua nessas datas, o que me incomoda muito (e me incomodou extremamente neste 7 de outubro de 2012) foram as ruas forradas de santinhos e cavaletes, quebrados e atrapalhando o fluxo ainda por cima. Vejam as fotas.
Mulher caminha sobre santinhos políticos
em frente à escola que serve de ZONA eleitoral
Embora eu não esteja morando em Santo André e continuo votando porraqui, ontem após o trabalho, quando desci do ônibus aqui no bairro, pisei numa camada indecente de papéis de candidatos. Me deu vontade de dizer um palavrão: POUXA!
Em tempos contemporâneos, fala-se tanto de sustentabilidade, limpeza da cidade, cuidado com o quadrado do outro e ainda assim notamos as ruas infestadas de papéis que vão entupir bueiros e urnas eletrônicas, porquê inocente é aquele que pensa que os santinhos não fazem milagres. É incrível a quantidade de pessoas que não se informam sobre os candidatos antes das eleições e acabam votando no primeiro papelzinho que encontram no caminho da zona eleitoral. Vergonhoso. E não para por aí. A boca de urna é explícita, feita pelos mais 'simples e humildes' que ganham setenta reais para tomar um pinga - e que porre é esse? - quando humildade não se confunde com ignorância.
Vamos votar em quem menos aparecer
nas papeletas?
Indo votar, fui abordado por umas três ou quatro pessoas, oferecendo-me santinhos. Falam baixo, são educadas e esticam o braço para te apresentar NO DIA DA VOTAÇÃO um candidato bom. O problema é quando você vê pessoas que conhece praticando tal crime. Essa é a boca de urna explícita, a menos descarada delas, porquê tem a implícita também, aquela que é velada, que vem do alto, onde caso alguém reclame, dá para dizer que 'não estou fazendo propaganda para ninguém, só usando uma camisa com a cor que eu e meus setenta amigos gostamos'. Isso me deixa vermelho de vergonha.
Num mundo perfeito, não teríamos tanta sujeira na rua, tanta cara desconhecida sorrindo para alcançar voto, tanta pobreza camuflada. O problema é que, quando questionamos a obrigatoriedade de votar, eu me pergunto como seria se não fôssemos obrigados a exercer essa função de jurados para calouros-políticos. Se votar de maneira obrigatória já é ruim, pior seria se não houvesse essa tal democracia. Então já não sei o que pensar e o que querer, já que tudo parece ser uma questionável opção.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

365 Diários - Um ano neste emprego

Gosto de guardar papéis. Do banco, cinema, chocolate, bala de menta. Papéis com histórias, que foram importantes em algum momento da vida.
Gosto também de rememorar e marcar datas. Quando mudo de casa, encontro uma música boa, reencontro alguém no trem.
Uma das coisas que eu mais gosto também é de fazer aniversário de trabalho, de trampo, de serviço. Contar os dias e notar que algum tempo se passou desde que comecei a trabalhar em determinado lugar e ver o quanto cresci com as experiências.
Na publicação deste post (03 de outubro de 2012) estou completando um ano de trabalho na empresa Diário de S. Paulo, como produtor multimídia, editor da TV Diário/BOM DIA; e resolvi escrever para comemorar.
Meu bloco de anotações e ao fundo a página de quem sou o pai
Saí de outro jornal em agosto de 2011, sem rumo, sem saber aonde trabalhar.
Estava psicologicamente abalado por um trabalho que estava me tirando a paz e me baixando a auto estima profissional. Trabalhava mais de dez horas por dia, folgas mínimas e uma vida social comprometida. Se quiser conferir toda a saga da saída desse ex-trabalho, só clicar aqui.
Lá, eu trabalhava na parte de vídeos, fazendo a mesma coisa que faço hoje: gravando como cinegrafista e editando no premiere CS3.
Após minha saída, lembro-me que o dia seguinte em casa foi de muito pesar. Embora eu não quisesse me abalar facilmente para não entrar no desespero do desemprego, aquela quinta-feira foi muito desgastante, embora eu não tivesse fazendo absolutamente nada.
Era um dia de muito sol. Sol escaldante. Acompanhei um amigo ao ponto de ônibus e a rua parecia se contorcer, tamanha era minha confusão. Estava triste, com medo de ficar desempregado, sem saber que rumo tomar.
Meu ex (atual) chefe, já estava no Diário. Lembro-me que, o jornal iria estrear um novo portal, com um canal de vídeos exclusivo. Lembrei disso.
Mandei o texto deste blog, comunicando minha saída e propus conversarmos para, possivelmente, eu trabalhar no novo portal na área dos vídeos. Depois de toda a saga, lembro-me do chefe me ligar e dizer:
- Fica tranquilo. Te ligo na segunda.
Aquilo me deu um grande alívio. Saber que haveria uma possibilidade por trás daquele 'Fica tranquilo'

Quando entrei no novo trabalho, levei comigo alguns traumas do trabalho anterior que até então estavam me estafando psico e fisicamente. Ao sair no meu horário, me sentia culpado, imaginando que poderia trabalhar mais um ou duas horinhas, mesmo sem ter coisas efetivas para fazer. O portal ainda nem sequer tinha estreado e eu numa pilha absurda. Traumas antigos.
Fizemos vários testes, várias reuniões antes do novo portal estrear. Quando estreou, eu tive que 'rechear' toda a página de vídeos sozinho, o que me assustou um pouco.
No começo, o portal teve picos de audiência, era novidade e direto passava o comercial na poderosa das emissoras. Estava ansioso para gravar, editar matérias super legais e não imaginava que não seria assim. Seria melhor.
Junto comigo entraram também algumas pessoas. O bom disso, foi o crescimento mútuo. O engraçado era, que na época em que eu entrei, o jornal havia demitido em massa muita gente e em minha caixa de email, eram constantes as mensagens de 'Até logo' ou 'Fiquem com meus contatos' num momento que tudo era novidade para mim. Enquanto um ciclo se fechava para alguns, outro se abria para mim.
A primeira pauta que eu fiz no novo emprego foi o Cirque Du Soleil, na turnê Varekai. Gravei com uma câmera amadora e pude assistir todo o espetáculo. Foi mágico, literalmente. Logo que estreamos, quando coloquei o primeiro vídeo, com qualidade pífia e o logo do jornal no ar, meu chefe veio ao meu encontro e bateu as mãos comigo dizendo: 'Estreamos'.
Depois disso, as matérias foram melhorando e na convivência com meus novos companheiros de trabalho, foram aparecendo as amizades, algumas intimidades e o respeito profissional. Tenho a sorte de trabalhar com pessoas de muita índole e que sabem o que é sofrer na vida para dar valor ao que se tem.
A redação é mediana em tamanho físico. Dá para conhecer todo mundo, mas não convém, como tudo na vida.
Uma das coisas que eu prezo bastante no meu trabalho é a autonomia. Poder dar ideias, realizá-las e poder brincar com as possibilidades, ver e sentir o resultado. Pude gravar ótimas matérias, conhecer ótimas pessoas e claro, me realizar profissionalmente.
Um ano. Estou há um ano neste novo trabalho e muito feliz. Gosto de contar minhas experiências para as pessoas, pois há muito de enriquecedor no próprio testemunho de vida.
Chega de conversas. Abaixo, listo sete das, que eu julguei, as melhores reportagens produzidas por mim para a TV Diário. Segue em ordem decrescente:

7º Lugar: Fãs da Britney acampam em frente ao Anhembi

Esta matéria foi engraçada. Dancei com os fãs na gravação, trocamos figurinhas e ainda fiquei na pista premium no dia do show. Loosho!



6º Lugar: São Paulo Assombrada: Liberdade

Um dos vídeos da série "SP Assombrada" que gravei com dois grandes companheiros de trabalhos aleatórios. Dois temas que me instigam: a cidade e seus fantasmas



5º Lugar: Monstros comentam as últimas Noites do Terror do Playcenter

Sonho de criança: conhecer quem são os monstros do Playcenter, entrar onde eles se transformam. Me transformei depois disso.



4º Lugar: Zombie Walk SP 2011

O sonho de qualquer fã do gênero. Ver a cidade infestada de zumbis.



3º lugar: Entrevista com o dublador do Kiko, Nelson Machado

Preciso falar alguma coisa?



2º lugar: Quartel da Polícia no Pq. Dom Pedro

Esse é um lugar que eu sempre quis entrar na cidade. Do lado de fora, o imóvel me encanta. Entrei e gravei seu abandono.



1º Lugar: 5 anos do acidente da TAM

Essa foi a matéria que me fez doente. Chorei na gravação, passei mal sonhando à noite e tive um resultado divinal quando pude prestar essa homenagem aos familiares que choram por seus entes falecidos neste triste fato. Valeu.


Vamos ver o que virá por aí. Já edito em CS5.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Avenida dos Maracás

Marcamos às 19h30.
Hora quebrada, dia de semana, para nos reencontrarmos.
Até que naquele dia as coisas deram certo, foi tudo bem no trabalho, na condução, no almoço. Não foi um daqueles dias em que você marca um encontro e dá tudo errado. Foi normal, até.
Há quase quatro anos morremos um para o outro. Não tínhamos notícias do que cada um fazia da vida por um tempo que dava para entrar e sair de um bacharelado. E resolvemos marcar e olhar um para o outro e ver no que dá.
Marcamos na Avenida dos Maracás, à noitinha para tomar um chopp no barzinho mais próximo. Antes do encontro, eu ria. Ria sozinho e tentava imaginar o que levou a pessoa que um dia eu amei, depois de tantos outros beijos, remarcar para me ver e trocar algumas palavras que ficaram na gaveta.
A avenida movimentada, com ruas estreitas e gente circulando. No centro da cidade.
Fui direto do trabalho, não me dei o trabalho de tomar um banho e me arrumar para alguém que já foi meu. Pra quê?
Cheguei depois da hora marcada, uns oito minutos, mas me alarguei na esquina e isso transformou-se em dez. Avistei de longe o ponto marcado pelo msn. Era a entrada de uma loja colorida, com nome engraçado. Mesmo atrasando de propósito, cheguei antes. Notei que estava nervoso e não conseguia mais rodear a avenidinha.
Guardei os fones de ouvido, arrumei a mochila nas costas e olhei para a rua. Estava sozinho esperando um amor que foi embora e voltaria naquele dia para 'me ver' e 'como eu estava'.
Lembrei da noite em que, eu pude olhar e ver esse amor ir embora no ônibus. Naquele dia, não lembro onde foi, não lembro onde fui, mas tive a certeza que não voltaria.
Porém, estava eu ali, veja só, esperando novamente a mesma pessoa que não me quis mais, ou que eu não quis mais no passado.
Notei a fachada da loja, colorida, com flores pintadas que brotavam das paredes e, com suas raízes, entravam pela porta de vidro. Lá dentro vi uns jarros de porcelana, pintados à mão, enfileirados na prateleira e quis ter um deles.
A vendedora parada ao lado do balcão, com os braços para trás, lançou um sorriso simpático. Devolvi sem encará-la e fugindo de seu olhar, novamente notei as flores pintadas nas parede da frente. Elas não eram tão bonitas agora, olhando de perto. Estavam desbotadas, sem brilho, mas inexplicavelmente ficavam vaidosas naquela hora do dia, com a ausência da luz. A noite torna-as vibrantes, vivas e prontas para adentrar os demais muros.
De longe eram boas, viçosas. De perto, desbotadas e sem traços.
Perdido nos contornos floridos daquela loja ouvi um 'oi' ao meu lado. Reconheci a voz.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Eu deveria ser mais político

Aquele clichê de sempre: "Futebol, política e religião não se discutem", mas eu sempre acreditei no contrário. São assuntos que mais rendem debates, discussões e posicionamentos. E é bom falar sobre.
O que me levou a escrever este texto foi um fato recente que aconteceu comigo no Facebook: Eu comentei uma foto de um amigo de faculdade, que tinha sido marcado enquanto esteve em um congresso de uma candidata xis de uma cidade xis do abC.
Na foto, repleta de jovens, a futura (ou talvez não) prefeita da cidade, falava num microfone e a única cabeça virada da foto, era desse meu conhecido. Sua expressão era engraçada e resolvi comentar assim:

'Pensamento do fulano: Na boa véi, cê acredita?' e publiquei.

Até imaginei que isso poderia render alguns comentários anti, ou mesmo outros achando a piadinha engraçada, mas o que me rendeu foi esse conhecido me chamando no bate-papo individual e pedindo, gentilmente, para que eu retirasse o comentário, pois ele trabalha na prefeitura e eu 'poderia fudê-lo'.
Pensei comigo: Quanto rabo preso! Porém, analisando a situação, percebi o quanto todos nós temos nossos rabos presos em diferentes circunstâncias da vida e em diferentes locais no mundo, até aqui.
A política é uma merda mesmo, mas dependemos dela e isso é uma outra merda. Na verdade, política e politicagem são duas grandes antíteses que se confraternizam de maneira muito implícita.
Nossas timelines ficam repletas de candidatos que aparecem nessas épocas com rostos limpíssimos, gestos carinhosos e slogans otimistas. Aí aparecem alguns dos seus amigos apoiando o ciclano, te chamando no chat, mandando email marketing estreitando laços para marcar uma conversa e apresentar propostas. Vão fazer corpo-a-corpo, são solícitos aos idosos e compartilham imagens usando terninhos black-tie.
Tudo isso é politicagem. E necessária.
O comentário que escrevi não refletia o pensamento do meu conhecido, refletia a minha opinião e sempre fazemos piadas um com o outro. A foto estava na minha timeline de uma fulana que eu nem sei que é (e agora já peguei raiva da mulher) duma cidade que nem sequer eu voto lá e eu ainda não tenho o direito de fazer o comentário que eu quiser!? Mesmo sendo brincadeira? No meu perfil? Não, não posso.
Apaguei o comentário por respeito ao meu ex-amigo. Vai saber, se calha de ele ser mandado embora e eu acabo como culpado nessa história.
Eu, sempre que vou escrever/falar/confabular sobre política, sempre tento encontrar as melhores palavras. Isso quando eu falo, porquê prefiro ficar quieto e votar em silêncio. Não tenho perfil para estar na política, ou melhor, trabalhar com politicagens, não consigo, até que um dia se torne necessário.
Ano passado recebi um convite para fazer assessoria à um candidato. Não aceitei. No retrasado, convidaram-me para fazer vídeos e ajudar na campanha audiovisual de um outro. Também not.
É mais forte que eu, não tenho talento para isso. Não tenho peroba e queria ter, de verdade. Até gosto de política, juro.
Outra coisa que sempre me chamou a atenção são os horários políticos, que hoje já aprendi a conviver com eles: não há horário eleitoral para os candidatos de cidades pequenas. Não há! Eu não voto nos candidatos de São Paulo, por exemplo, e eles estão arrasando em suas campanhas cheias de after effects.
Os panfletos, outdoors, campanha na TV, redes sociais. No rádio, no tablet e nas calçadas. Quantas caras, quanta gente que eu nunca vi.
Eu não bebo cerveja, mas sei que se bebesse teria mais amigos. Eu não faço politicagens, mas se fizesse...

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Passeio de barco


Todo ano, quando o Dia dos Pais se aproxima, uma incógnita sentimental me invade de uma maneira muito peculiar. Eu não sei se digo que amo meu pai, ou se digo que um dia tentei amá-lo.
Um abismo. É assim que eu mensuro a distância do afeto familiar que há entre eu e a parte masculina que participou de minha criação, meu pai de sangue. Quem me conhece bem, sabe que eu não tenho uma relação de bons afetos com ele, embora esta relação seja de muita proximidade.   
Cresci num ambiente onde sempre vi minha mãe reclamar das ausências e irresponsabilidades daquele que era para ser o macho-alfa da casa, o homem. Macho este, que tem a mesma inicial que a minha no primeiro nome: a letra ‘D’.
D sempre foi ausente. Presente-ausente. Eu como primogênito, sempre tive a figura materna como principal fonte de força e resistência dentro do lar.
Das coisas que me lembro de D, guardo muitas lembranças. Talvez tantas delas eu não teria caso tivéssemos uma relação de cumplicidade.
Um dia, chamei D para passarmos o dia dos pais juntos. Havia muito tempo que não o via. Agendei nosso encontro por telefone e disse que iria vê-lo no domingo. O primeiro dia da semana era a data exata em que ele acordava cedo, colocava o lixo na rua, rondava a cozinha e saía pelo bairro embebedando-se, voltando no meio da tarde com os olhos pesados e pernas cambaleantes. Dormia o resto do dia e à noite, após o jantar, cruzava as pernas na sala assistindo TV e pouco participava do ambiente familiar.
Pedi para que D não bebesse naquele domingo. Ele me perguntou aonde iríamos e preferi não responder. Minha mãe, tão dele cansada que vivia, adiantou-me que o marido não iria e que faria normalmente seu ritual dominical. Preferi confiar e mantive meu convite.
Nem mesmo eu sabia o motivo daquele passeio. Não havia ensaiado nada, nem uma fala, nem um abraço e confesso que, sentia-me nervoso ao tê-lo sóbrio comigo, num domingo, caso aceitasse o convite. Não comprei nenhum presente, apenas encomendei um passeio de barco num grande lago no centro da cidade.
No dia marcado, cheguei cedo em casa. Senti o mesmo cheiro da minha antiga casa naquele bairro que vivi durante anos. O dia ensaiava-se radiante de sol, que desde aquele momento, invadia a sala da casa com raios amarelados, lugar onde eu ainda possuía uma cópia da chave. Logo que entrei, minha mãe desceu as escadas, ainda de pijamas e cumprimentou-me alegremente. Senti o doce aroma de mãe quando a abracei.
- Seu pai já saiu. Eu te falei... disse ela dando de ombros e virando-se.
Abaixei minha cabeça e fiquei confuso por um momento. Normalmente, naquela hora ele ainda estaria em casa com seus chinelos arrastando-se pela cozinha.
Senti um furor momentâneo e joguei-o às valas em meu pensamento, mas mantive minha compostura. Em silêncio, desmarquei o passeio e já maquinava um jeito de ligar ao homem do barco e pedir um desconto pelo serviço não prestado.
Minha mãe preparava o café na cozinha e já chamava para comer pão de centeio.
Enquanto conversávamos sobre trabalho e as contas da casa, ouvi um barulho no portão. Era D.
Entrou com os cabelos molhados, incrivelmente penteados e disse meio acanhado:
- Vamos?
Estava sóbrio.

O parque estava movimentado. Era nítido que algumas famílias resolveram passar o dia dos pais numa churrascaria ou compartilhando comida e avarezas dentro de casa.
No caminho, D não perguntou aonde iríamos. Só questionou o motivo de eu querer falar com ele. Deve ter imaginado milhares de coisas e talvez, a mais óbvia delas, que eu iria novamente cobrá-lo sobre algum tratamento anônimo que possivelmente, deveria ajudá-lo numa abstinência cotidiana.
Andamos pelo parque. Conversamos sobre trabalho, sobre nossos salários e como estava o apartamento onde eu morava. O sol refletido em seu rosto me fez perceber que, ao lado do olho esquerdo, havia uma pequena cicatriz. Perguntei o que foi e ele respondeu imediatamente: caí.
Um turbilhão de imagens veio à minha cabeça e percebi que não deveria ter perguntado. D não estendeu a conversa e logo avistou um grande lago.
- Está bonito, bem cuidado né!? Disse
- Tá
Começou a elogiar o prefeito da cidade e lembrou de um deles, de candidatura passada, que havia sido assassinado há quase duas décadas. O assunto foi parar em política e logo se lembrou da politicagem mal feita que resultou em seu desemprego passado. D trabalhou durante anos em uma empresa e foi mandado embora, fruto de seu desencadeamento alcoólico. A culpa, para ele, era do chefe que participava de propinas na empresa.
Avistei o velho com quem eu tinha falado há uma semana e combinado o passeio. Paguei adiantado e queria apenas navegar em descanso sobre aquele lago. Queria a certeza que teria uma barco só para este momento.
Aproximei-me e cumprimentei-o formalmente. Após rápido aperto de mão, apresentei-o também à D. Quando o homem pegou em sua mão, vi que as mãos de D eram bem mais maltratadas e com aspecto mais envelhecido do que as mãos daquele homem velho. Guardei mais lembranças.
O homem oferecia passeios de barco pelo lago. Meu pai observava com desconfiança minhas atitudes. Não imaginava que eu iria querer navegar num lago desconhecido como aquele. Pelo que me consta, D nunca havia entrado em um barco sequer para conhecer. Muito menos eu.
Sugeri que entrássemos em um dos barcos. O filho mais novo do velho acompanharia nosso passeio por aquela pequena imensidão verde-ocre.
O lago era grande, mas não se perdia a vista. Um pequeno cais adentrava as águas da margem e os barcos ficavam enfileirados um ao lado do outro, batendo-se os cascos. D olhou-me e eu o convidei para que pudéssemos juntos, navegar pelo lago do centro.
D rejeitou com um sorriso acanhado e virando-se preferiu olhar-me de longe, como sempre fez.
Entrei no barco e com meu colete salva-vidas estendi a mão e chamei-o mais uma vez. Ele percebeu que era sério e com um olhar sereno assentiu. Ligeiramente, pediu outro colete para o velho e entrou no barco também, que balançou para os lados, fazendo-o rir.
Sentou em frente a mim e deu espaço para que o negro, filho do velho, pudesse nos ajudar a remar. O menino alto foi em pé, no bico do pequeno barco, enquanto eu e D adentrávamos juntos aquele imenso lago, sentados num barquinho.
Olhei para as águas que agora eram nosso sustento. Olhei também para os cabelos penteados do meu pai e vi uma inocência em seu olhar. O vento batia leve em seu rosto e percebi pela primeira vez na vida, que éramos homens e que havíamos desperdiçado tanto tempo buscando uma resposta para os motivos que nos afastam.
Me bateu uma vontade de chorar e D percebeu isso. Olhou-me e não soube o que fazer. Tudo o que ele temia era que eu o abraçasse e pedisse para que ele fosse mais presente em minha vida. Queria pedir desculpas também, por não ter sido quem ele queria que eu fosse. Cobrá-lo, para que ele fosse o que eu queria. Despedir-me, apresentar-me novamente como filho. Aceitá-lo como pai.
Pendi a cabeça para o lado e vi a margem do lago bem ao longe. O jovem negro alçava o horizonte com o olhar e eu agora olhava para o chão. Quando chegamos ao meio do lago, pude perceber o quão imenso era aquela reunião de águas. Pedi para pararmos. O jovem obedeceu.
D estava desconcertado. Eu também. O barco balançava de um lado para o outro e nós agora já estávamos em alerta, mesmo em silêncio, de que alguma cobrança iria surgir. Nossos olhares traziam nossas vidas afastadas.
O sol batia em seu rosto, um semblante cansado num corpo magro e definhado por tantos anos de bar e solidão. Éramos dois agora, num barco a balançar, no meio de um lago fundo.
- Gostou?
- Do quê? perguntou
- Do passeio...?
D sorriu e disse que estava com medo. Eu também estava. Percebi neste momento, que somos assustadoramente iguais.
Vendo seu reflexo na água embaçado pelo sol, pedi ao jovem alto que continuasse o percurso. No barulho do remo encostando-se à água, o barquinho adiantou-se e continuamos a sacolejar sobre aquelas águas brandas de um domingo à tarde em um singelo passeio de barco.

domingo, 5 de agosto de 2012

Phantasmagoria - Análise

Assisti o quadro Phantasmagoria e resolvi escrever este post sobre.
Produzido pela Rede Globo, o dominical Fantástico - O Show da Vida resolveu fazer um quadro para desvendar possíveis casos fantasmagóricos em lugares ditos assombrados pelo Brasil. Fiquei um tanto preocupado quando vi que a Globo resolveu novamente falar sobre fantasmas. Acho a rede muito velha mídia, quadradona e sempre muito preocupada com estética e padrões implantados por eles mesmos, mas vamos ver.
O cenário para o primeiro episódio da série foi um castelo no Pará, conhecido com Eldorado. Muitos relatos de vultos e aparições foram atribuídas ao lugar.
Primeiro: castelo. Lugar muito propício para tal, mas ainda tá valendo. O que mata o quadro são alguns trovões estalando na vinheta e nas animações. O quadro é igual a tudo o que é produzido sobre temas sobrenaturais: uma espécie de documentário daqueles produzidos pelos canais pagos Discovery Channel ou pelo Syfy, visto 'Minha História de Fantasma', 'Famosos e Fantasmas' ou 'Lugares Assombrados' no qual você nunca sabe se é ou não verdade. É também um jogo, como o extinto FEAR, produzido nos anos 90 pela MTV com apenas um episódio exibido no Brasil.
No Phantasmagoria, três participantes voluntários foram ao Castelo Eldorado para instigar 'investigar' as supostas aparições. Receberam lanternas e teriam que completar provas no escuro.
A primeira tarefa foi dada à um jovem que teve que ir ao jardim e chamar um vulto que foi visto pelo jardineiro do castelo. Em um gravador colocado previamente, o apresentador do Fantástico fica ditando regras, o que tira todo o suspense do ar. Ele até tenta fazer uma voz mais metálica, mas não rola.
Os demais participantes, também ficaram recebendo ordens de um gravador e chamando os fantasmas, instigando-os à aparecer.
Na última prova, os três chamaram uma suposta mulher de branco que aparecia na janela. Nada mais clichê.
No final do quadro, um especialista do tipo que desvenda 'mistérios' explicou os motivos dos estalos na casa e as vultos que afirmaram ter visto. Explicações científicas foram dadas para os estalos, cheiros e vultos.
O quadro tem como base os espetáculos antigos feitos com ilusionismo, que davam a impressão na platéia de ver um ghost. Confesso que o quadro não é tão interessante, serve mesmo para dizer de maneira implícita: "Isso não existe gente", mas busca entreter. Visto que, o programa exibiu logo após, uma matéria sobre Transexualidade e Homofobia, dois grandes apelos e que rendem muitos interessados.
O quadro não quis explicitar conceitos verídicos ou não, deixando para que o telespectador faça sua própria conclusão.
Ao meu ver, a história do local já faz todo o suspense acontecer. Quando se tem uma narrativa que vem sendo contada e esta narrativa é atribuída à um lugar, os fantasmas já aparecem neste contexto, sem precisar apagar a luz.
Em uma das falas de uma participante, ela dizia que 'não precisa aparecer fantasma nenhum, o lugar já basta'. É exatamente neste ponto que quero chegar: o sobrenatural está naquilo que é construído pela mente e não em descobertas de verdade ou mito, científicas ou não, porém esta é a proposta central do quadro, que serve mesmo para entreter de maneira efêmera e logo ser esquecido com um assunto mais sério. Não que fantasmas e afins não seja, mas não é o caso do quadro do Fantástico.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Deus não está maravilhado com homossexuais

- Você vai virar homem, vai ter filhos e vai dar muita alegria aos seus pais. Disse a cantora Joelma, da banda Calypso à um rapaz homossexual. Eles vão ficar assim... radiantes. Sem dizer papai do céu, que vai ficar assim, maravilhado, finalizou.
Em um vídeo publicado no Youtube, supostamente gravado por um - outro(a) - fã da banda, a cantora aparece abraçada com um jovem, em uma conversa nada inocente sobre a sexualidade do rapaz.
Em tom sereno de voz, Joelma diz ao fã que ele vai 'virar homem' e 'ter filhos'. Nas entrelinhas das investidas da cantora, o rapaz responde em tom brincalhão, mas verdadeiro, que 'seus pais já são felizes com ele, do jeito que ele é' e que no caso dos filhos 'ele pode adotar'. Ela, Joelma, parece ignorar suas respostas e continua dizendo que o 'papai do céu', supostamente um deus daqueles que seguem algum tipo de doutrina religiosa, ficaria satisfeito caso o menino virasse homem, ou melhor, deixasse de ser homossexual para ser heterossexual, gostar do sexo oposto ao seu.
A ignorância começa não pelo teor do comentário, mas pela maneira em que foi colocado: ser homem no contexto da cantora seria ser 'heterossexual', porque no caso do fã ele já é um homem: tem um pênis, barba na cara e naturalmente um nome masculino. Agora, caso formos analisar a intolerância, a cantora não é a única culpada desses pensamentos ardilosos que escaparam de sua boca que solta gritinhos agudos.
Joelma demonstra-se membro ativo de uma grande parcela de pessoas que ainda atribuem a homossexualidade à um pecado, um distúrbio psicológico, à uma ignorância peculiar daqueles que ainda persistem numa discussão preconceituosa de caráter religioso e social machista.
Isso não acontece só nesse caso. Acontece com mulheres, nordestinos, negros e todas as grandes chamadas minorias. Entre aspas, nunca gostei dessa classificação.
Não sou um utópico ao achar que um dia todos seremos iguais e viveremos com pessoas que aceitam as diferenças. Somos diferentes e isso deveria servir de motivo para nos aproximar.
Não cabe também, entrar em discursos de gosto ou preferências musicais, visto que esse discurso enlatado partiu de uma vocalista com milhares de fãs. Há quem goste das músicas do Calypso e há quem não goste, mas o que entra em questão é que, mesmo com essa estrada toda, esse glamour e milhões de cd's/dvd's vendidos ainda haja, de maneira oculta, um pensamento tão pré-histórico e manipulado quanto o discurso da cantora no desenrolar de 35 segundos em vídeo.
Esses dias, com uma amiga em uma estação de trem, vimos um homem usando uma calça muito apertada, unhas pintadas e dançando puts-puts em seu tablet branco. Minha amiga, ao ver o personagem, olhou para mim e disse que 'se eu fosse daquele jeito, ela me batia'. Percebi o quão difícil é agirmos sem preconceitos em um cenário que jorra situações favoráveis para colocarmos em prática nossas pedras e nossas injúrias enrustidas. Nossos valores, muitas vezes são formados por uma cultura egoísta e pouco humana.
Perguntei à ela, porquê eu apanharia caso resolvesse vestir calças apertadas e rebolar na estação como o homem. Ela deu de ombros e manteve sua palavra.
-O que este homem está fazendo de mal para você? questionei.
-É verdade, ela disse num tom mais brando. Baixou a cabeça e viu o quão ordinário foi seu comentário e que, aquele menino de unhas pintadas estava feliz e sem afetar sua individualidade.
Enquanto algumas pessoas tentam agir sem julgamentos pessoais, percebemos que outras pessoas são cheias de pré-julgamentos, de ideiais pessoais, passando por cima do cinismo e escancaradas em vídeos amadores na internet, como infelizmente aconteceu com Joelma. Eu também tenho meus julgamentos, todos temos e precisamos trabalhar nossos preconceitos a fim de exterminá-los como se extermina uma gripe com benegripe.
No outro dia, minha amiga disse que sentiu vergonha de si mesmo por ter feito aquele comentário homofóbico contra o menino da estação. O questionamento que fiz à ela, serviu de reflexão para um preconceito ser cortado em sua raiz e retrabalhado em situações futuras.
Muitos fã de Joelma, que admiram seu trabalho, ficaram indignados com seu discurso curto, abraçado com sua causa. No twitter, a cantora respondeu não ter preconceito contra homossexuais e disse que até tem um amigo gay. A questão ali, ao meu ver, não é preconceito, mas fruto de uma sociedade hipócrita, discurso pronto.
Não espero que ela seja punida, mas espero que algum dia apareça alguém e apresente à ela um outro lado, para desmistificar esse pensamento. Mesmo não mudando de opinião, ao menos terá bom senso quando for apresentar valores que possam deixar papai do céu digamos assim... maravilhado a seu ver.
Joelma faz grande sucesso nas regiões norte e nordeste do país. E sabemos que, infelizmente, nordestinos enfrentam muitos preconceitos quando migram de seus estados para procurar outra vida em grandes capitais. São Paulo é uma delas. E isso deveria servir de motivo para ela se juntar à tantas vozes que procuram igualdade dentro ou fora de seu estado ou em qualquer lugar do mundo.

domingo, 29 de julho de 2012

Quem me viu, quem me vê

Um conhecido de décadas me chamou pelo bate-papo do Facebook, perguntando se podia 'me marcar' em algumas fotos antigas, na época em que eu cursava mecânica no Senai. Antes de responder, um turbilhão de lembranças invadiu minha cabeça e tentei buscar na memória quais imagens ainda permaneciam vivas em mim, de uma época que eu pouco quero me lembrar.
Hoje sou cinegrafista e editor de vídeos. Trabalho com reportagens audiovisuais e tenho muito orgulho da minha profissão. Porém, tenho ainda mais orgulho do caminho que trilhei para conseguir operar câmeras de vídeo ao invés de torno ou fresadora.
Meu pai trabalhava em uma indústria metalúrgica, em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, a terra do Lula. Aliás, voltando um pouco mais para trás, minha família veio do chão de fábrica, trabalhando em grandes indústrias de metalurgia como a Mercedes, Volks e GM. A lembrança que guardo do meu avô paterno, por exemplo, é de um velho brincalhão vestido num macacão azul com o logotipo da Mercedes Benz do Brasil, uma estrela de cinco pontas.
A família seguiu esse rumo. Meus tios, primos e meu pai trabalham com graxa, ferro e botas de couro. Este último que ajudou minha mãe à me colocar no mundo, foi o pivô que me empurrou ao mesmo trabalho do ex-presidente do Brasil.
Minha turma no Senai. Meados de 2001, acho. Eu rindo ao lado da Aline
Eu nunca quis, confesso. Sempre achei um trabalho sujo, literalmente falando. Sempre gostei de escrever (voilá), fazer teatro ou fantoches na casa da vó. Meu pai nunca me incentivou, embora ele ache estranho até hoje essa coisa de câmera, microfone e ilha de edição. Olhando para trás e para a criação que ele teve, apesar de não ter chego ainda aos cinquenta, percebo que a culpa não é dele, mas do modo de criação (ante)passada.
Entrei no Senai com 14 anos. Meu pai, trabalhava numa empresa chamada Irbas, ainda em São Bernardo. Prometeu que, se eu passasse no Senai, a empresa iria me fornecer estágio remunerado e isso seria 'bom para mim'. Fiz a prova e não tive muita certeza de que iria passar. O teste era cheio de números, exatas e nada de humanas.
Lembro-me de, na época, ver um comercial de lentes de contato na televisão e pela primeira vez ter a opotunidade de abandonar os óculos (que eu tanto odeio até hoje) e comprá-las com o meu dinheiro. Fiquei provisoriamente feliz e pela primeira vez quis passar nessa prova e começar ter minha vida assalariada.
Passei. E em terceiro lugar! Numa sala de exatos trinta e dois adolescentes sonhadores. Minha família ficou em êxtase e eu também fiquei feliz, até ir para a primeira aula dos próximos dois anos do curso de Mecânica de Usinagem.
As aulas mudavam conforme o semestre e as matérias variavam em álgebra, física, química e as aulas práticas. Não demorou muito para eu perceber que não queria seguir aquela carreira e desejei não ter passado naquela prova.
Ao contrário disso, meu pai estava satisfeito com o primogênito dele. Ao menos uma vez na vida eu pude corresponder ao futuro que ele imaginou ser o certo para mim.
Minhas aulas eram de apenas quatro horas diárias, sem finais de semana. Eu estudava à tarde, das 13h às 17h e ainda ganhava dois salários mínimos. Para um quatorze anos como eu, estava ótimo. Quer dizer, não estava.
As aulas começaram me intrigar. Eu não queria desistir e tirar dos meus pais o gosto de me ver 'subindo' na vida. Tudo o que eu tinha que fazer era estudar álgebra, aprender a desbastar, alisar e sangrar peças no torno mecânico, além de aprender a trabalhar com paquímetro.
Aquela brincadeira estava me deixando irritado e mais distante de fazer o que eu realmente queria: estudar cinema. Sim, eu queria estudar CI-NE-MA, enquanto aprendia as funções das ferramentas de corte para aço inoxidável 1090.
Eduardo Veroneze, eu com cara de empregada e Everton, me abraçando
Para se ter uma base, passando na prova, eu havia ganhado o curso completo de Mecânica. Dois anos!
Muita gente da minha sala tinha um brilho nos olhos. Alguns de famílias bem simples, outros com pais engenheiros, mas a maioria com sonhos se desenrolando e se concretizando naqueles primeiros passos fornecidos pelos professores do Senai.
Para mim, tudo estava ruim, mas ficaria pior: o estágio na empresa!
Como parte do contrato, eu teria que, nas férias, passar quatro horas estagiando numa empresa metalúrgica de verdade: na Irbas, onde papai trabalhava.
No primeiro dia lá, eu fui colocado numa bancada para limar (sabem o que é isso?) umas peças chamadas de 'cachorrinho'. Limar consistia em tirar as rebarbas (sabem o que é isso?²) da peça com uma lima.
Meu pai apresentou-me aos chefes modelos e dizia que era pra os velhotes 'cuidarem bem de mim', seguidos de risadas e muito barulho das máquinas ao redor.
Eu, de uniforme cinza, ninfo e com o logotipo da Irbas estampado no bolso à direita da minha camisa. Eu não imaginaria que, além dos dois anos de curso no Senai, eu trabalharia ali na Irbas mais outros três longos e depressivos anos, até ter dinheiro o suficiente para poder custear minha faculdade, mais tarde de rádio e TV.
No último ano de Senai, tive uma disciplina chamada "Redação para currículos" no qual eu pude mostrar um pouco dos meus dotes de escritor (pff) Foi a única matéria que eu consegui alcançar nota 100 em todos os exames. Nos demais, chegava no máximo ao 75. Lembro até do nome da professorinha dessa disciplina: Clementina, que adorava meus textos e dava pulinhos de alegria quando pedia para eu lê-los em sala.
Eu não era o único sonhador-anti nessa história. Um amigo, chamado Rodrigo, dividia a sala comigo, tinha o sonho de fazer artes cênicas e viver do teatro. Éramos o refúgio um do outro quando nos encontrávamos no refeitório para maldizer as aulas de informática e oficinas chatas, trocando ideias sobre peças teatrais, filmes e sonhos futuros.
Mais tarde reencontraria Rodrigo em outro trabalho, veja só.
No último semestre, isso em meados dos anos 2001, teve um processo seletivo para o curso de Ferramentaria, um curso caríssimo e em alta no mercado da época. Só os masters faziam esse curso, ou porquê tinham dinheiro para bancar e provavelmente se dariam bem num futuro promissor, ou porquê conseguiam passa na prova dificílima. Quase igual ao curso de "Publicidade" hoje em dia (rs). Todos da sala prestaram, inclusive eu, porém eu estava cagando para este curso e queria era terminar logo tudo aquilo. Para a alegria geral do papai e dos meus encarregados (vulgo chefes) eu passei, em último lugar. Pergunte se eu fiz: Não! Dessa vez eu me dei ao luxo de seguir o que eu achei certo. Meu pai esbravejou, disse que eu estava perdendo uma oportundade única e mimimi. 
Não consigo esquecer o último dia no Senai. Foi um dia quase sem aulas. Eu que sempre fui um aluno quieto e ranzinza, naquele dia estava saltitando pelos corredores. Eu não acreditava que estava acabando.
Quando saí pela portaria 1, junto com Rodrigo, olhei para trás e dei uma espiada lá dentro sentindo um forte alívio na alma por sair de lá. Porém, a empresa que mantinha meu estágio, resolveu me contratar.
Se eu for contar quantas vezes eu chorei, quantas vezes eu não quis ir trabalhar, quantas vezes eu entrei em depressão sozinho por causa do meu emprego, eu iria levar dias e entrar em depressão novamente. Resumindo, eu trabalhei mais três anos na Irbas, em horários alternados. Ora das duas às dez, ora das seis às duas. Segunda à sábado. Não sabia o que era pior. Quando eu entrava às seis da manhã, acordava quatro e meia da madrugada e às seis já estava em frente à maquina, de uniforme sujo, lente de contato e com muita coragem no rosto.
No horário de almoço, eu sempre sentava na calçada da empresa sozinho e lia o jornal do sindicato dos metalúrgicos. Um dia, vi uma notícia que me fez ir ao banheiro e chorar: em um acidente na Mercedes, um jovem de dezenove anos havia perdido o antebraço numa dessas fresadoras fodonas de cortar ferr, exatamente a mesma máquina que eu trabalhava lá. Não queria estar ali, mas numa ligação rápida para minha mãe ela pediu para eu aguentar que tudo iria passar logo. Mãe.
Foram tempos difíceis. Minha vontade de estudar cinema agora se fortaleceu, mas eu resolvi que iria começar fazendo Rádio e TV antes de estudar tal curso, pois ainda não tinha dinheiro/mercado para cursar Polanski, Hitchcock ou Von Trier.
Em casa, meu pai sonhava com Engenharia Mecânica, Mecatrônica ou qualquer área que me tornasse um engenheiro rico e cheio de subordinados. Cheguei a prestar um desses cursos, mas mais uma vez não cursei.
A guerra estava pronta. Meu pai se negou a me ajudar caso eu escolhesse essas 'porcarias de televisão, cinema e teatro'.
"Quer ser famoso, caraio?" dizia.
Senti que teria que pagar minha própria faculdade e custear todas as despesas caso eu escolhesse ir atrás do que eu realmente queria. E foi o que eu fiz.
Tive que trabalhar dois anos na Irbas para que o meu salário chegasse ao valor exato da mensalidade do curso em uma faculdade nem tão conceituada.
Quando eu passei a ganhar setecentos reais, prestei o vestibular e passei.
Ainda trabalhei um ano na Irbas estudando RTV. O primeiro ano inteiro eu paguei do meu bolso e até dinheiro de Avon minha mãe teve que arrecadar para poder interar algumas mensalidades.
Meu pai jamais levantou um centavo do dinheiro dele para me ajudar, porém o mínimo que ele fez foi parar de rogar pragas na profissão que eu havia escolhido.
No segundo ano, consegui uma bolsa 100% na universidade e abandonei de vez a metalúrgica. Repeti a cena do Senai. Eram duas da tarde, olhei para o páteo da Irbas e uma alma velha morria ali.

...tempo para respirar (e refletir)

Parece contos de fadas. E é.
Escrevi este texto para comprovar o tanto de memórias que me vieram à cabeça quando vi essas fotos do Senai de uma época que foi de aprendizado e muita luta, mas que não sinto nenhuma saudade.
Me formei em Rádio e TV em 2009 e nunca fiquei desempregado, sempre trabalhando na área. Graças à Deus, à mim, à minha mãe e à pessoas que me ajudaram (e me ajudam) muito nessa caminhada.
Tudo é aprendizado. No Senai, na Irbas... Vi realmente pelo suor e pelos machucados nas mãos, que a vida tem que ter uma época amarga para podermos reconhecer o que se tornará fruto doce mais tarde. Fiz amigos na empresa e por incrível que pareça, saí de lá por um pedido meu. Foi foda e tenho muito orgulho disso.
Acabou e não quero mais trabalhar com essa área. Os dias de amanhã são escuros, mas podemos clareá-los com nossas esperanças.
Desculpe-me por um texto tão grande e com erros de ortografia, mas não tive tempo para editar o passado.


A prova de que mesmo na metalúrgica eu já ensaiava meus passos no cinema

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Desova

Capítulo 1

Desligou.
Furiosa com a aquisição que tinha feito no início do ano, Berenice agora estava também triste por não conseguir ir morar no apartamento novo e bateu com força o telefone no gancho encerrando a conversa com o agente de vendas.
Tivera muitos problemas com o novo imóvel antes mesmo de obtê-lo e resolveu tomar um chá para acalmar os ânimos antes de dormir.
Levantou repentina da poltrona da sala e, soltando baforadas pelas ventas, dirigiu-se até a cozinha. Do outro canto da sala o marido levantou os olhos e perguntou se estava tudo bem.
- Não! Respondeu
O homem ouvia o tilintar dos talheres e das xícaras na cozinha. A mulher estava realmente atormentada com a demora para a entrega do apartamento que havia financiado há anos. Desde o réveillon, Berenice teve a promessa de pegar as chaves e se mudar para a Rua Maranhão, onde o novo edifício estava sendo construído, mas as obras atrasaram e os preços foram remanejados.
-Burocracia dos infernos, dizia consigo mesma. Nesse país tudo é demorado.
O marido, que trabalha indiretamente com vendas imobiliárias foi tentar acalmá-la, dizendo que o processo é realmente demorado e que os prazos sempre são prorrogados por questões orçamentárias e de ordens maiores. Até a obra ser finalizada ainda demorariam meses e o prazo máximo de entrega ainda não tinha sido rompido.
Os planos de Berenice e o marido era de se mudar até o carnaval daquele ano. Porém, estavam já próximos do feriado de todos os santos e nada havia realmente se concretizado. O casal esperava ansioso para a mudança e a mulher havia feito planos meticulosos para o novo apartamento. Um condomínio que deveria ser entregue pronto para colocar mobílias e abrigar novas famílias.
Apesar da compra singela, o imóvel custou caro e uma entrada de sessenta mil havia sido paga à vista. As prestações seriam parceladas sem acréscimo durante os próximos oito anos e o casal pretendia levar uma vida menos agitada do que vinham levando nos últimos meses com as preocupações no trabalho e ainda mais, com a demora para a entrega do que seria 'um novo lar'.
O marido entendia as aflições da esposa, mas entendia também que preocupações além da conta iriam acabar com o início de um novo ciclo naquele apartamento que tinham comprado juntos. Berenice estava prestes a se aposentar e o marido ainda teria que trabalhar mais uns cinco anos para poder se beneficiar do dinheiro do governo. Enquanto isso, resolveram vender a casa onde moravam para comprar um novo espaço onde poderiam ter um pouco mais de privacidade e sossego quando os dias brandos da terceira idade acercassem os dois.
Aquela noite estava quente. Berenice não quis alongar muito o papo com o marido, pois sabia que no outro dia teria que enfrentar novamente o agente. Preferiu deitar e tentar esquecer o assunto do apartamento. O marido permaneceu na sala, assistindo a um filme policial que logo acabaria. Havia perdido um terço da história conversando com a mulher na cozinha, mas logo entreteu-se novamente com os carros explodindo na televisão. Quando acordou, uma mulher sensual na tv, tirava parte da roupa em um piscina de águas bem azuis. Os olhos pesados do homem rapidamente correram sobre a sala vazia e deveras silenciosa.
Levantou-se, calçou os chinelos de pêlo e desligando a tv ouviu a respiração forte da mulher no quarto. Berenice sempre roncava quando tinha dormido ansiosa. O terço de madeira jogado na cama tornou-se uma arma caso a mulher se debruçasse sobre ele.
Serenamente, o marido tirou o acessório das mãos da esposa e o colocou na cômoda ao lado. Beijou sua testa e ela abriu os olhos assustada.
-Acalme-se, disse ele. Você dormiu rezando novamente. Boa noite.
Com um sorriso pequeno, Berenice fechou os olhos e só acordou no outro dia, com o telefone tocando insistentemente na sala.
Correndo, pisou no chão frio e fechou os olhos com os raios de sol que invadiam o lugar.
-Alô?
-Senhora Berenice, tenho novidades.
Berenice ouvia atentamente a voz rouca do vendedor do outro lado da linha, este que cuidava do caso de seu apartamento e que tinha prometido que no início do ano, as chaves estariam nas mãos do casal.
O marido ainda deitado, ouvia as respostas monossilábicas da esposa vindas da sala. Quando ela 'conversava' usando aquelas expressões, era sinal de que não estava acreditando no que o seu locutor estava tentando convencer-lhe.
-Obrigada, vou pensar e te retorno. E desligou.
Foi até a cozinha e acendeu o fogo para esquentar água. Gostava de café preparado no coador. Ouviu a voz do marido desejando-lhe 'bom dia' encostado na porta e com um sorriso fraco, respondeu o cumprimento.
-Quem era?
- O Jorge! Veio com outras lorotas...
Enquanto colocava água quente no coador de papel, explicou que outros problemas iriam afetar ainda mais a entrega do apartamento e que Jorge, o vendedor, tinha apresentado uma nova opção para o casal que queria um vida 'confortável e tranquila'.
Ao invéns do apartamento, Jorge queria vender-lhes uma antiga casa num local afastado da cidade.

Parte II

Antes ainda de sair para trabalhar, Berenice ligou para a irmã para saber como estava a mãe. A demência fraca que a atacara há uns dois anos, fazia com que a velha ficasse quieta e singelamente sorridente enquanto assistia aos demais com seus afazeres de casa.
-Está na mesma Berê, hoje ainda até que comeu um pouco, disse a irmã pelo telefone.
-Pois bem, talvez eu ainda passe aí lá pelas oito. Vou ver uma casa que me foi oferecida em troca do apartamento.
Desde o início, Berenice e o marido entraram em comum acordo que, morar em uma casa era a decisão mais sã a se tomar tratando-se do descanso que gostariam de ter dali para frente. Escadas, elevadores, vizinhos próximos e barulhentos eram os percalços negativos que morar em um apartamento traria, caso decidissem por isso, mas os preços para se ter uma nova casa eram bem maiores comparados a um apartamento mediano que poderia aconchegar bem o velho casal. Agora, com essa notícia de uma possível casa fora dos entornos da cidade, o desejo em obter um imóvel só para eles estava prestes a se realizar.
Os dois saíram juntos e a mulher foi dirigindo. Sempre, quando entravam no carro, Berenice questionava a passividade do marido. Em famílias tradicionais e socialmente corretas, é o marido que toma as decisões de grandes mudanças, escolhe a cor da casa e consequentemente dirige o automóvel num eventual festejo em família. Ali não. Ela sempre fora o alicerce da casa, tomando as decisões que, numa sociedade machista, eram designadas ao sexo masculino.
O homem é um bom marido. Trabalha com vendas imobiliárias, mas nunca chegou a ter uma carreira, com promoções e altos cargos. Tivera um ou dois empregos na vida e neste terceiro está até hoje, porém naquele dia, decidiu não ir ao trabalho para acompanhar a esposa na escolha daquela casa que talvez seria em breve seu novo lar.
-Como é a casa?
-Não sei. Jorge apenas adiantou que era grande e isso me preocupa um pouco.
As preocupações de Berenice eram muitas. Grandes casas, além do trabalho para limpar, manter a ordem e segurança seriam outros desafios. Sabia que para pequenos ajustes podia contar com o marido, mas como ambos trabalham fora, cogitou em pensamento ter uma empregada para lavar as roupas e preparar a comida. Casas em geral, chamam mais a atenção do que apartamentos. Embora houvesse na cidade um surto de arrastões em condomínios, o índice de invasores em residências era ainda maior. Percebeu que estava fazendo planos como se já tivesse aceito ficar com a nova oferta do vendedor.
Comentou com o marido, que não se lembrava de dizer à Jorge que seu real desejo era mesmo ter uma casa. Seu pensamento foi dando-lhe asas ao pensar que, essa casa poderia um dia ser alugada e eles poderiam viver em outro lugar, com o que ganhariam dali e de suas aposentadorias.
- Qual é a rua?
- Não é rua, é uma avenida. Respondeu o marido com o guia nas mãos. Avenida Anuás
Berenice dirigia por ruas com pequenos sobrados. A maioria deles com placas de venda ou prontas para alugar. Lembrou-se que Jorge falou bem da vizinhança e arredores, e realmente aquela rua era visivelmente bem cuidada, porém um tanto deserta.
-É para entrar por um beco, que dá de frente pra casa, disse Berenice enquanto passou por uma lombada.
-Ali, apontou o marido. Deve ser ali, com o indicador direito apontava para um beco murado por duas grandes casas.
Berenice estranhou o acesso à uma avenida ser feito por um beco. Avenidas geralmente são repletas de comércios, pontos de ônibus e pessoas. Fez meia volta e apontou o carro em direção àquele caminho que mais parecia um túnel no meio da cidade. Logo que adentrou o veículo, avistou um enorme sobrado que parecia ter sido construído simetricamente no fim daquele extenso beco que dava acesso à Avenida Anuás.
-Será que é aquela casa?
Teve certeza quando viu Jorge acenar ao longe, pequeno e franzino que era, ao lado daquele enorme casarão.

Parte III

Era enorme. Até sótão tinha.
- Deviam usar para guardar coisas velhas, disse Jorge.
Berenice havia gostado, mas suas preocupações com tamanho agora tornaram-se concretas quando caminhou entre os dois andares da casa e até perdeu-se do marido entre o quarto de hóspedes e o dormitório principal no segundo andar. 
A cozinha era mediana, no estilo antigo de construções não era tão grande. Embora não houvesse um fogão a lenha, havia uma estrutura no canto que pareceu ser reformada recentemente pela família que viveu ali.
A porta principal da casa revelava um corredor com dois espelhos do estilo penteadeira, um em frente ao outro. Só no fim estava a sala, com duas janelas que davam para a varanda dos fundos em um desenho oval. Era como se a casa tivesse sido construída após àquele corredor, que tinha o chão todo forrado por madeira maciça e as paredes com um papel de parede cor ocre. O acesso ao segundo andar dava-se por uma escada íngreme, com doze degraus. O corrimão também era de madeira e precisava de uma mão de tinta. Na parte superior, dois quartos, um banheiro em cada um deles. Uma área vazia, que ficava exatamente acima do corredor principal da casa, chamou a atenção do casal.
Jorge contou-lhes que a casa pertenceu a uma familia rica no início do século XX. Os Martin vieram de Sevilha, na Espanha e construíram o casarão para morar com os oito filhos. A casa não abrigou-os durante muito tempo e foi vendida após a morte do patrono Odilon Martin, quando sua família resolveu voltar à sua terra natal. Ficou abandonada quase trinta anos e depois fora novamente vendida para uma família do sul do Brasil.
- Eles nem chegaram a morar aqui, apenas compraram o imóvel e deixaram-o às moscas., explicou Jorge.
O marido de Berenice havia gostado do lugar, mas não palpitou muito sobre ficarem com a casa, pois achou estranho aquele grande descampado dar lugar apenas à uma estrutura daquele tamanho e, ao mesmo tempo, teve certo receio de morar em um lugar um tanto afastado da cidade.
Na verdade, o que separava o casarão da cidade, era o beco. A impressão era de que a casa fora construída exatamente no centro daquele círculo fechado com quadras de gramado. O chão era árido, sem cor. Não tinha grama verde e só depois de algumas quadras, dava para notar as primeiras residências.
Após a visita informal, o vendedor informou que o valor bruto daquela casa chegaria à cem mil reais. Que o tempo de abandono e o local afastado desfavoreciam o valor. Jorge ofereceu-lhes a casa em uma pechincha e disse que poderiam ficar muito bem ali, caso fosse sossego o que procuravam.
- Você é um charlatão Jorge, disse Berenice em tom de chacota. Conseguiu me convencer a morar novamente numa casa.
Todos riram e entenderam que a casa estava finalmente vendida.

O processo de mudança não fora tão fácil. As escrituras precisaram ser revistas com cautela antes que Berenice e o marido pudessem se mudar para o novo endereço. Ainda restavam oito anos para que o preço do apartamento fosse totalmente quitado e o acordo para a compra da nova casa foi mantido com o mesmo valor.
Há uma semana antes de se mudarem, a irmã de Berenice ligou dizendo que a mãe havia tido um surto durante a noite.
- Ela acordou e ficou chamando por você Berê.
- Será que foi o remédio?
- Pode ser, naquela noite disse que você estava novamente tramando das suas e custou a dormir de novo, disse a irmã. Levei um susto com ela sentada na cama na madrugada!
A mãe de Berenice sempre foi uma mulher muito sozinha. O pai faleceu logo que mudaram-se para a capital e ela teve que cuidar das duas filhas. Aos quarenta e seis anos teve um derrame e ficou com algumas sequelas. A velha consegue andar, mas com dificuldade e ora ou outra retira da mente alguma memória antiga e trata aquele pensamento como se estivesse acontecendo nos dias de hoje.
Em um dos surtos, a velha levantou à noite, arrumou-se e saiu de casa. Foi encontrada num terreno baldio, a quatro quarteirões de casa, sentada na porta de uma padaria fechada, às sete da manhã. Alegou ter ido trabalhar no campo, mas perdeu-se no caminho. Berenice foi buscá-la após um vizinho reconhecer e ligar para que alguém a ajudasse. Descobriram desde então, que a mãe estava com lapsos na memória e precisaria de cuidados especiais.
As irmãs revesam nos cuidados com a mãe. Berenice cuida no período de um ano e a irmã em outro. Recentemente a mãe estava com a irmã há quase quatro anos. Tinha se acostumado bem naquela casa térrea e até cuidava das samambaias da filha mais nova enquanto esta estava no trabalho. A mãe não ficava sozinha. Uma moça de nome Juliana, cuidava dela e ganhava por isso.
Num acordo amigável, as irmãs concordavam que a mãe só iria para casa de Berê quando quisesse. Caso contrário, ficaria com a caçula até quando pudesse.
Berenice como primogênita, ainda mantinha essa conduta de também cuidar da irmã, sempre comprando comida e roupas. Professora quase aposentada, mantinha em si uma postura maternal com a própria mãe e consequentemente com a irmã.
No dia da mudança, Berenice contratou uma empresa para cuidar dos móveis. O marido não pode acompanhar todo o processo naquele dia, pois estava prestes a fechar uma grande venda a um de seus clientes. A irmã foi acompanhar a mudança e até conseguiu se divertir no meio daquela bagunça com Berenice. As duas rememoraram juntas a primeira grande mudança que fizeram com os pais, em sessenta e três. Brincavam entre os móveis acumulados no canto da sala daquela casa que fora dos pais. A mãe, na época, brigava com as meninas por elas correrem entre os quadros e as mobílias ainda não posicionadas na nova casa. O pai, sempre muito sério, apenas dava ordem aos carregadores para que tomassem o máximo cuidado com as cômodas e espelhos.
- Fico feliz por você Berê
- Eu também. Estou me dando uma oportunidade de tentar uma vida mais calma.
Ainda faltava os móveis do quarto, que seriam entregues após uma semana. A cama era grande demais e foi preciso desmontá-la para que pudesse ser levada.
Ao levar uma cadeira para a sala de estar, a irmã de Berenice percebeu que o chão do corredor principal estava molhado nos cantos. Mostrou à irmã e perceberam que havia uma infiltração naquelas paredes escuras.
- Era só o que me faltava, disse Berenice. Vou ligar para o Jorge.
E quando pegou o telefone, percebeu que haviam quatro ligações perdidas da casa da irmã. 
- Nossa, acho que Juliana quer falar com a gente.
Ao ligar novamente, a ajudante atendeu.
- Oi Berê, aqui é a Juliana, babá da sua mãe. Pode falar?
- Aconteceu alguma coisa?
- Não. Na verdade sim, mas nada demais. É sua mãe...
Tapando o bocal do telefone, Berenice gesticulou para a irmã que a mãe parecia estar dando trabalho. Instigou Juliana a contar o que houve e ficou confusa com a voz suave da moça do outro lado da linha:
- Sua mãe disse que quer ir morar com você agora.

Parte IV


- Pronto, pronto, disse Berenice empurrando a cadeira de rodas da mãe. Agora está em nossa nova casa.
A velha olhou para os arredores do casarão e não articulou sequer uma palavra. A sala mostrava-se aconchegante, com pequenos raios de sol invadindo as janelas e o sofá velho que viera da casa velha, ocupando o centro.
Tinha marcado a mudança para sábado, pois poderia arrumar os demais cômodos durante os outros dias, visto que tinha tirado uma semana de folga na escola onde dava aulas. O marido chegaria depois das três da tarde e já sabia que a sogra iria novamente ficar hospedada com ele e a esposa. Não concordou prontamente quando Berenice resolveu trazer a velha logo nos primeiros dias na nova casa, mas achou melhor que os ares de uma nova vida pudessem também ajudá-los a recuperar qualquer lembrança boa em sua nova anfitriã. Mudanças de ares sempre são positivas, quando o cotidiano demora para responder.
A irmã de Berê ajudou trazendo as poucas roupas da velha. Grandes vestidos floridos, calções íntimos e bermudas largas. A mãe não gostava de roupas que lhe apertassem o busto.
No almoço, as três reuniram-se em volta da mesa e convidaram também Juliana, para conhecer o seu novo destino de trabalho. A moça magra, com aparência cansada, sempre foi muito atenciosa com a idosa. O caminho para o casarão não seria tão simples. A empregada teria que pegar duas conduções a mais para chegar à nova casa e Berenice marcou o almoço para acertar com a moça se ela continuaria ou não cuidando da mãe.
Juliana topou, mas por um período curto de experiência, afinal a senhorinha já tinha se acostumado com a sua imagem e com o modo com que ela tratava suas roupas.
A noite foi caindo. Berenice se deu conta de que não haviam postes de iluminação nos arredores de sua casa. Olhando pela janela da frente, percebeu um feixe laranja de luz que revelava apenas o beco que dava para o grande quintal da casa.
- Nem tinha percebido isso. Olha o breu que ficou isso aqui, resmungou para o marido que arrumava alguns sapatos velhos embaixo da escada.
- Jorge deveria ter falado que não tinha iluminação pública por aqui, retrucou o marido indo também à janela observar a escuridão ao redor da casa. Nossa... que escuridão, reclamou.
Berenice tentou não pensar de maneira negativa no assunto. Talvez, pelo tempo que a casa ficou desabitada, a prefeitura optou por não iluminar seus arredores para não chamar tanto a atenção. Propositalmente, seria esse o motivo para que nenhuma família desabrigada tomasse posse do lugar.
-A mocinha vai dormir aqui hoje? perguntou o marido.
- Vai
Sob uma luz fraca do abajur, Juliana arrumava a velha na cama. O segundo andar ainda estava semivazio e ambas ficariam num quarto pequeno próximo à cozinha no andar térreo, para que não precisassem subir ou descer escadas. A família que morou na casa, usava o quarto para receber hóspedes,  amigos ou parentes mais próximos. Depois, o quartinho ficou desabitado, servindo como um quarto de costura ou para guardar mantimentos.
Antes de subir para dormir, Berenice passou no quarto onde estava a mãe acompanhada de Juliana e desejou boas-noites. A moça acenou e viu a cabeça da velha virar para olhar a filha, mas sem nada dizer. No dia seguinte, passariam o domingo em casa, com a promessa de um belo almoço feito por Berenice e Juliana.
Já no quarto, o marido de Berenice lia um jornal antigo que encontrou embaixo das escadas. A mulher, ainda ajeitando alguns pertences no guarda-roupa, viu aquele papel velho nas mãos do marido e questionou o que era.
- Achei aqui em casa. É um jornal antigo.
- Deixa ver, disse a esposa colocando os óculos.
A manchete estampava conflitos acentuados com a questão do café no Brasil. Setores agrícolas manifestavam-se contra o governo da época e a imprensa sofria com a censura, sem poder denunciar mandantes e golpistas do governo. A imagem de um homem segurando uma bandeira confundia-se com as letras minúsculas da reportagem. Ambos agora estavam entretidos com aquele calhamaço sujo e, ao que tudo indicava, era um jornal de esquerda. Berenice logo deu de ombros e foi colocar outra roupa para dormir. Ao apagar a luz do corredor, teve a sensação de ver alguém em pé no primeiro degrau da escada. Olhou fixamente para o cômodo abaixo de seu quarto e seus olhos desenharam na escuridão o que poderia ser o ombro de um homem em pé. Acendeu a luz que pouco clareou os degraus e lá embaixo, continuou vendo aquele semblante encarando-a. Berenice apertou os olhos e chamou por Juliana. A moça respondeu do quarto, perguntando se ela precisava de alguma coisa.
- Não, só para desejar boa noite.
Percebeu que Juliana tinha acendido a luz e vinha até a escada, onde parecia que alguém a observava há pouco.
- Precisa de alguma coisa Berenice? E seu rosto se iluminou com a luz da sala.
- Não Juliana, não precisava ter levantado.
Juliana abaixou a cabeça e apagou novamente a luz da sala. Agora Berenice não viu mais nada.
Foi se deitar ao lado do marido, que já dormia pesadamente.

Continua...

domingo, 8 de julho de 2012

O quarto de Camila

"Essa história é verídica. Os fatos nela narrados aconteceram comigo e eu ainda tenho pretensões de voltar ao quarto, gravar algumas imagens em vídeo e tirar fotografias. O que me falta é coragem."

Conto em 1ª Pessoa
Parte I

No dia em que escrevi esta crônica, tive algumas revelações que me deixaram ainda mais curioso e confuso.
Numa noite de pizzas, fui convidado por um bando de mulheres amigas para jogar conversas fora e dançar no Wii. A festinha foi marcada numa sexta-feira, na casa de Camila, uma das minhas conhecidas que estava ansiosa para mostrar seu closet recheado de roupas e sapatos, além do seu quarto de dormir, com uma cama de chão e flores no papel de parede.
Chegamos, levando alegria uns aos outros, comemorando um final de semana que ainda nem havia chegado. A companhia das meninas me agrada muito e quando estamos juntos, esquecemos de nossas preocupações. São amigas há tempos e sempre que podemos, nos juntamos para brindar um suco, uma cerveja ou uma vodka, celebrando a saúde, jovialidade e o sexo, já não tão constante em nossas vidas quanto antes.
Neste dia, estávamos em sete pessoas. Conversávamos sobre trabalho, vida e muitas risadas enchiam a sala da casa. Camila mora numa casa aconchegante e alta. Por morar em rua de ladeira, o casa fica no alto, com uma escada de vinte e três degraus para chegar até a sala.
Da frente da casa, notam-se duas janelas, uma simetricamente perfeita acima da outra. A primeira janela, de vidro temperado e sem cortinas, revela a sala. Na janela de cima, o quarto que fora dos pais, hoje sem ninguém é fechada por vigas de aço.
Antes de as pizzas chegarem, Camila chamou-me para subir e ver o closet de roupas e também para ver como estava o andar superior da casa após a reforma que havia lhe custado caro. Estava animada com os resultados e logo subimos aos risinhos e gracejos para ver seu novo ninho.
Mostrou-me o embutido todo trabalhado em madeira envernizada, com cheiro de novo. As roupas organizadas davam um ar sofisticado ao desenho do móvel. Sapatos de várias cores, vestidos e toalhas dobradas como num hotel de luxo. O chão amadeirado, aquecia o local, tornando-o ainda mais aconchegante. O quarto com uma enorme cama, forrada com um lençol branco e uma grande televisão. Ela estava feliz com seu relacionamento que dava ares de casamento. Com tudo novo.
A escada ficava bem no meio do corredor entre o closet e o quarto dos pais. Uma porta agora separava um do outro.
Antes de descer, perguntei do quarto fechado por outra porta, bem em nossa frente, que era exatamente o quarto que durante anos abrigou os pais de Camila.
- Ah, aqui é o quarto dos meus pais, Dani, ela disse.
Eu sabia e já havia entrado ali, mas naquele dia, quis entrar novamente e rever o quarto semi vazio. Ela abriu, entrei ainda comentando sobre as novidades amadeiradas de fora e logo parei. 
Ao entrar, senti uma sensação estranha. Vi o pequeno banheiro de cor marrom, a cama de casal também forrada, essa com um lençol de babados, um crucifixo pendurado sobre a cama, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ao lado e um rack, vazio.
A sensação foi de peso nos olhos. Confesso que, já havia sentido essa estranha impressão de peso nas pálpebras em outras ocasiões e lugares, mas nesse dia, remeti esse estranhamento a um 'ar pesado' dentro daquele quarto.
- Nossa Camila, senti um ar pesado aqui, disse.
Ela estranhou e me perguntou se, esse 'ar' era bom ou ruim. Disse não saber, e não sei até hoje. Desconhecia, mas avancei para dentro do quarto, ainda escuro e a sensação intensificou-se. Ela riu de maneira acanhada e eu saí do quarto rindo também, mas para não deixá-la apreensiva.
Lá embaixo, as demais pessoas riam e conversavam sobre outras coisas.
Camila olhou para uma das meninas e disse que 'o Dani sentiu algo estranho no quarto dos pais'. Confirmei e a amiga disse que eu 'já ia começar' com minhas assombrações.
A pizza chegou. O assunto foi momentaneamente esquecido e nos entretemos com outras risadas e histórias. Até que, Camila perguntou para uma das amigas:
- Conto pra ele?
A amiga deu de ombros e respondeu:
- Você que sabe.

Parte II

Silêncio. Todos entreolharam-se e eu explodi:
- Ah, agora vai ter que contar!
Camila largou o pedaço de pizza e pegou o copo com Coca. Enquanto tomava um gole, contou que a irmã mais velha, hoje casada, deu uma festa na casa para amigos, há uns dez anos. Os pais haviam viajado e ela aproveitou para reunir os mais conhecidos e beber ao som de música alta.
Um amigo, que era Pai de Santo, não foi convidado, mas mesmo assim foi até a casa. Proibido de entrar, esbravejou e rogou pragas aos festejos. Tentaram acalmá-lo, dizendo que não era necessário aquele circo todo. Já que fazia tanta questão, deixaram-no entrar. Podia entrar e beber também, dado a desculpa de que não o acharam antes para fazer o convite. Uma briga passada seria o motivo para não tê-lo convidado, mas esse fator não fora mencionado.
O homem negou e disse que não queria entrar naquela casa amaldiçoada. Foi embora desejando que a festa tivesse seu ar desagradável. 
Camila continuou contando, que tarde da noite, um casalzinho que se atracava no sofá, resolveu subir para o quarto dos pais e ficarem sozinhos lá durante um tempo. E foram.
Conta-se que, após trinta ou quarenta minutos, a moça no quarto, começou a gritar pedindo ajuda e implorando por socorro.
Os mais sóbrios subiram e viram-na encostada na parede ao lado da cama, com a cabeça coberta pelos braços, enquanto o namorado revirava os olhos na cama e pendia os braços para trás. A voz que saía do moço era rouca e ameaçadora, com palavras indecifráveis. 
Camila nessa época era adolescente e achou tudo engraçado. Só percebeu a seriedade da situação quando a irmã a trancou em seu quarto, hoje mobiliado com cama de chão e flores na parede.
Ficaram lá e só depois do fim da algazarra, Camila foi saber que uma outra participante da festa, chamada Andréa, também foi ao socorro do casal e começou a praguejar e revirar os olhos assim como o rapaz fazia há pouco, deitado na cama. Ela era loira, de cabelos compridos, e ao tentar ajudar os jovens, sentiu um forte impacto e sentou-se repentinamente na cama dizendo obscenidades em um tom gutural.
Todos assustaram-se e correram para o andar de baixo dizendo que Andréa agora estava possessa, dominada por uma força maior. Antes de tomarem qualquer decisão, lembraram-se que, os pais dela eram frequentadores de uma capela do Sagrado Coração desde a sua fundação. Rezavam o terço e cantavam nas missas e talvez poderiam intervir nessa força oculta, que agora parecia ter-se apoderado da filha deles. Ligaram imediatamente e esperavam ansiosos.
Andréa ficou sozinha no quarto. Ora ou outra urrava como um animal e soltava palavras chulas.
Esbravejava, mas não levantava dos pés da cama. Os braços pendiam sobre as pernas e a cabeça dava trancos repetidos para o lado esquerdo com violência.
O casal agora estava na sala, embaraçados com o acontecido. O moço dizia não lembrar de muita coisa, só de estar olhando para o teto do quarto e ter visto um crucifixo na parede, depois acordara no chão com as pessoas ao seu lado. Viu Andréa contorcer-se e parecer ser jogada na cama, virando o tronco para frente, parando finalmente sentada. Confuso, foi levado para baixo enquanto a dona da festa e os mais conhecidos de Andréa tentavam inutilmente alguma comunicação verbal com ela. Foi quando as palavras foram cuspidas no ar e todos, amedontrados, desceram, a fim de não despertar o que quer que fosse em Andréa.
Então emudeceu. Os gritos cessaram assim que ela foi deixada sozinha no quarto escuro, ainda na cama, imóvel.
Camila ouviu de seu quarto fechado, os urros de Andréa no fim do corredor, mas não ousava sair. Percebeu quando os gritos cessaram e logo jurou ouvir passos de alguém no corredor. Assustada, encolheu-se na beliche de cima e ali ficou.
Os pais de Andréa chegaram, confusos e munidos de uma bíblia e um terço da ordem bizantina.
Em seu silêncio, Camila perguntou-se o que estava acontecendo e se Andréa não estava brincando com todos e não se deu conta de que apenas ela e Andréa estavam no segundo andar da casa. Ouviu a voz do pai da loira subindo as escadas. A mãe chamou a filha de longe e os urros recomeçaram.
Uma porta bateu forte, abafando os gritos. Era a porta do quarto dos pais que batera com violência. Camila, de bruços na cama, com os ouvidos próximos à parede, ouviu ao longe a voz rouca dizer:
- Quem chamou vocês aqui?

Parte III

Camila contou que estava apavorada e com vontade de chorar. Os gritos que haviam parado, retomaram com mais força. Andréa agora falava palavrões contra seus pais e dizia que algo como 'não vou devolver, não vou devolver...'
Todos os demais estavam na parte de baixo da casa, alguns ouvindo o show de horrores da sala, outros na rua, falando na calçada. Camila ouvia do quarto apenas algumas palavras das pessoas lá embaixo.
Silêncio novamente. As vozes agora também ficaram quietas e dava para ouvir apenas o ruído do estrato da cama dos pais. Era como se alguém andasse sobre o colchão.
Parece que tudo parou, que todos foram embora e a deixaram sozinha no quarto.
Aquilo que entrou em Andréa poderia entrar nela também e imaginou ser um mal invisível, algo das trevas, ruim.
Levantou a cabeça e tentou ouvir algo. O ruído do estrato também parou, mas não ouvira quando. Aquela quietude a preocupava. Tudo parecia ter desaparecido.
Após alguns minutos ainda deitada, resolveu levantar e abrir a porta. Suas pernas cambaleavam quando sentiu o chão. Próxima à porta, olhou primeiro pela fechadura que dava de frente para o quarto onde estava Andréa e os pais. Olhando, viu que a porta do quarto ainda estava fechada. Lembrou-se que, da janela do seu quarto, dava para ver a churrasqueira, onde há pouco estavam os amigos da irmã. Lentamente, abriu a janela e viu a varanda vazia. Estava acesa, com carne na brasa e o chão com marcas de pés. Ninguém.
Estava aflita. Não sabia se chamava alguém, se abria a porta ou se ficava ali esperando alguém se lembrar dela no quarto.
Batidas na porta.
- Cá! Pode sair... disse a irmã
Após uns segundos de silêncio amedrontador, Camila perguntou:
- Tá tudo bem aí fora?
- Sim, só algumas pessoas que não sabem beber.
Camila abriu a porta e viu a irmã com o rosto inchado. Parecia ter chorado muito, mas tentou desconversar com um sorriso fraco no rosto.
- Vamos dormir na vó. Amanhã a gente limpa aqui.
Sem hesitar, Camila pegou suas roupas de cama e embrulhou num lençol que há pouco estava embaixo dela. Quando saiu do quarto, viu que o quarto dos pais estava aberto e vazio. A cama revirada e as janelas fechadas. Sentiu um leve arrepio no braço esquerdo enquanto descia a escada que dava na sala, onde seu avô a esperava.
A casa estava vazia, a não ser por ela, a irmã e agora o avô, que as levaria para dormir em sua casa. Não conseguia tirar dos pensamentos os gritos de Andréa e ainda mais como saíram do quarto dos pais sem que ela percebesse ou ouvisse passos ou vozes. Simplesmente, as vozes e as pessoas saíram da casa de maneira muito silenciosa ou desapareceram.
No outro dia, ao voltar com a avó e a irmã, Camila olhou para a casa e teve medo de entrar. Questionou-se realmente se aquele ataque que atingiu duas pessoas  um dia antes, fora mesmo resultado de bebedeira, dúvida que a fez dormir e acordar de meia em meia hora. Pelo pouco que conhecia Andréa, não imaginava que ela faria isso a ponto de terem de chamar os pais para acalmá-la.
A avó veio junto ajudar na limpeza, visto que os pais de Camila voltariam no dia seguinte.
A casa estava uma desordem, com garrafas, espetos de madeira e copos de plástico por todo lado. A vó pediu que Camila e a irmã fossem limpar a cozinha e que lá em cima, como pouca gente tinha subido, ela mesma limparia.
A irmã estava muda, com um tom sério e visivelmente abalada com o fato da noite anterior e então resolveu não perguntar nada. Ouviu os passos da vó no andar superior, mas tentou se concentrar em recolher copinhos sujos da varanda.
Uma porta bateu forte lá em cima e logo ouviu-se um grito rápido de susto.
Camila paralisou-se. A irmã recomeçando a chorar gritou e chamou pela vó.
A porta de cima foi logo aberta e a voz da velha soou lá pela escada:
- Tudo bem meninas, foi só o vento que fechou a porta e eu me assustei.
Nem assim as duas relaxaram. A irmã largou o que estava fazendo e sentou-se no sofá, chorando e dizendo que queria sair dali. Camila foi consolar a irmã na sala, quando viu a vó descendo com um saco de lixo em uma mão e o abajur dos pais na outra.
- Camila, pegue esse saco e coloque lá no fundo.
- O abajur quebrou?
- Vai fazer o que estou pedindo
Camila estava com medo de andar pela casa, simplesmente de cruzar a cozinha. Jogou rapidamente o saco nos fundos e voltou para a sala. Mais tarde ela descobriria que o abajur infravermelho que o pai tanto estimava não tinha quebrado e sim, explodido.

Parte IV

Eu estava atônito. Não sabia se, me assustava com a história ou se me sentia feliz por ser um desses médiuns sensitivos que têm a capacidade de conversar e/ou enxergar espíritos caminhando entre os vivos. Não consegui distinguir se aquela energia que sentira há pouco no quarto dos pais de Camila era boa ou ruim, mesmo sendo questionado por todas as pessoas quando narro esse fato.
O clima de alegria daquela noite de pizzas estava por ora estacionado. Todos na sala agora prestavam atenção em Camila que, sem tantas delongas, deixou todos com medo até de cruzar a escada para ir ao banheiro.
De outras histórias que ouvi, espíritos são energias de pessoas mortas que ficam em lugares que lhes foram muito familiar em vida. Porém, muitas vezes, eles aproveitam do medo das pessoas vivas para poderem se fortalecer até ter capacidade para mover algum móvel ou fazer-se sentir por um vento que passa, ou um ar frio que estaciona em determinado lugar. Aquela situação me parecia bem mais perigosa, pois o que se 'apossou' do rapaz e também de Andréa, parecia perturbar o corpo de tal maneira que, se não fossem tomadas providências imediatas, como uma oração ou um mini exorcismo, aquilo poderia ferir fisicamente alguém.
Uma das meninas do grupo estava extremamente incomodada com a história e quis ir embora.
- Não vim aqui para ficar com medo, ouvindo besteiras de fantasmas.
Logo, foi convencida a ficar com a condição de que pararíamos de tocar no assunto.
Fiquei mais curioso, com uma vontade imensa de subir novamente ao quarto, sentar na cama e ficar ali por um momento sentindo a vibração do lugar. Deram-me essa ideia, mas não tive coragem sequer de ir ao segundo andar após saber de sua fama.
Após uns vinte minutos, enquanto as meninas jogavam na sala, fui até a cozinha onde Camila lavava as louças. Estava sozinha e aproveitei para tentar tirar mais fatos dela.
- Estranho né meu!? Eu nunca tinha ouvido essa história e senti isso entrando lá. Fiquei encucado!
- Sim Dani, respondeu-me, mas nunca ouvi nada lá.
- E seus pais?
- Também não.
Segundo ela, na época, os vizinhos ouviram os gritos, porquê depois contaram aos pais. Embora soubessem da festa, não sabiam do acontecido e pelo que me parece, até hoje não sabem.
- O pai da Andrea te conta se você ir lá perguntar, mas não sei se é bom tocar nesse assunto, disse-me Camila enquanto ensaboava um prato.
Questionei novamente, como foi que resolveram o assunto. Pelo que consta, os pais entraram no quarto com Andréa ainda falando palavrões e tendo comportamentos estranhos, mas ninguém se lembra, além dos pais, como saíram de lá e qual era o estado de Andréa.
O fato aconteceu há mais de dez anos. Camila relembrava com facilidade daquela noite de setembro que ouviu uma loira bonita e alta dizer coisas horríveis intercalando com urros animalescos.
Fui embora da casa de Camila com barriga e cabeça cheia. Não consegui dormir direito pensando no quarto semi-vazio. A cama arrumada, o crucifixo, a cômoda e a imagem da santa. Não contei à ninguém da família sobre minha sensação naquele lugar. Já tinha sentido esse estranhamento em outros lugares, principalmente se eu soubesse previamente a história dali. Qualquer história que seja.
Um dia, senti esse estranho torpor numa casa velha que fora de uns tios meus, na vila que morei quando criança. Eles já tinham mudado de lá há um tempo e quando eu soube que a casa estava aberta, fui até lá para ver como esta seria vazia. Havia passado muitos momentos naquela casinha de três cômodos, cresci brincando ali, tomando chuva e dormindo naquele quarto. Quando entrei, vi as mesmas vidraças na janela, a mesma porta e a sala, tudo vazio. Foi aí que senti esse peso nos olhos e na cabeça, algo físico mesmo. Minhas pupilas reviram e na região da testa aparece uma pequena vertigem. Foi esse mesmo sentimento que me invadiu quando entrei no quarto que fora dos pais de Camila.
Na outra semana, na missa das oito, vi os pais de Andréa. Não sabia se perguntava sobre o que tinha acontecido naquele quarto e como puderam tirar a filha do transe. Conheço bem os pais dela, são personagens prontos para um boa história de horror: católicos, unidos em um casamento longo, humildes e sempre com um sorriso no rosto. O enredo? Uma filha possuída pelo mal.
Naquela noite de domingo, após terminar a celebração, ambos vieram me cumprimentar e perguntar como estava em minha nova moradia no centro da cidade. Ouviram dizer eu havia me mudado e vieram conversar. Eu disse estar bem, mas o fato do quarto não saía da minha cabeça e vendo-os novamente após saber da história, imaginava seus rostos simples, atordoados com a imagem retorcida da filha que não era sua filha naquela noite. Sorrateiramente, eu disse que tinha um assunto delicado para tratar com eles, mas não ali dentro da igreja. Ambos olharam-me com uma dúvida no rosto, mas visivelmente dispostos a responder qualquer coisa. Porém, jamais imaginavam que o assunto seria os gritos roucos que a filha dera há anos.
Fiquei com receio de não vê-los novamente tão cedo e resolvi perguntar ali mesmo, ante o sacramento e os anjos pintados na parede. Alguns amigos estavam comigo quando comecei a contar a história do cômodo.
A mãe ouvia-me com as mãos dentro da jaqueta de lã e o pai, com os braços cruzados. O sorriso singelo de ambos tinha desaparecido.
Resumindo os fatos, terminado a história, perguntei se tudo aquilo era verídico e me arrependi de toda minha curiosidade e audácia em tocar neste assunto, quando a mãe de Andrea começou repentinamente a chorar.

Parte 5 - Final

- Sim, foi isso que aconteceu. respondeu a mãe de Andréa, enxugando lágrimas dos olhos. Isso nos perturbou durante anos. Minha filha ouvia vozes pedindo para ela se matar. Não conseguia entrar em casa, cruzar os portões.
Ouvia abismado às constatações daquela senhora. Então era verdade, e de uma veracidade que tinha causado transtornos àquela família.
- Passamos por momentos muito difíceis, disse. Hoje graças à Deus, Andréa melhorou.
O pai calado, só confirmava com a cabeça as constatações da esposa. De braços cruzados, só repetia algumas palavras que ela dizia e tentava mostrar-se calmo com a conversa.
Era nítido que o fato realmente aconteceu e que algo de errado esteve naquele quarto na época da festa e de alguma maneira se manifestou em duas pessoas. Resta descobrir o que era.
Do lado de fora da igreja, enquanto nos despedíamos, não citei mais nada sobre a história do quarto substituindo o assunto por música sacra. O pai de Andréa é compositor e há anos canta na igreja ao lado da esposa e de seu violão. A igreja fôra trancada após a missa e conversávamos na calçada, com a rua iluminada apenas por uma luz fraca vinda do poste. A mãe já estava no carro aguardando o marido que animado, contava sobre suas composições musicais. 
Eram quase dez da noite. Enquanto ele falava, percebi uma bexiga em formato de coração cruzar o breu que se fazia na lateral da igreja, mas meu olhar logo voltou rosto animado do velho. O frio estava ficando denso e com uma leve finalização no papo, entrei no carro de uma amiga e nos distanciamos da igreja e dos pais de Andréa.
Dentro do carro comentei:
- Ela chorou, você viu?
- Vi, comentou a motorista. Estranho né! Deve ter algo naquele quarto. Credo.
Cada vez mais a história parecia uma incógnita para mim. O fato de eu ter entrado e sentido algo estranho no ar sem saber da história me parece de um assombro único. Algo está alojado no quarto, sobre a cama ou mesmo encostado no canto da parede.
Não consegui cruzar o quarto naquela noite de pizzas e desci com calafrios pelos cotovelos.
Na noite em que resolvi escrever este conto, sentei sobre minha mesa no quarto e iniciei as lembranças das noites de mistério. Escrevi até o quarto capítulo e quando estava escrevendo este último, resolvi deixá-lo para ser finalizado no outro dia.
Quando acordei, senti uma dor cortante no pescoço. Ao olhar no espelho, vi marcas como se fossem feitas por um gato com unhas bem afiadas na parte da frente e no lado esquerdo do pescoço, que estava todo arranhado, consequência de uma coceira abrupta que me deu durante a madrugada. Ao passar os dedos nas marcas, lembrei da sensação de uma unha quebrada percorrer meu pescoço suavizando a coceira, mas ao mesmo tempo abrindo um longo ferimento até próximo do peito. Na minha lembrança, as unhas eram minhas e tamanha era a coceira. Conferi meus dedos e as unahs não eram afiadas e só com uma força enorme eu faria aquelas marcas em meu próprio pescoço. Lembrei-me de alguns flashs que tive ao abrir rapidamente os olhos na madrugada, enquanto coçava bem abaixo do meu queixo. No sonho, estava deitado numa cama de casal com uma parede enorme atrás de mim. Era uma parede branca, com rachaduras pequenas e sem janela..
As marcas eram feitas de baixo para cima, começavam no fim do peito e acabavam no queixo.
Contando isso para alguns amigos do trabalho e mostrando as marcas, disseram que eu havia ficado impressionado com a história de fantasma e feito os arranhões no pescoço. Fora os mais engraçados que me perguntavam se eu não tinha dormido com um terceiro personagem da história.
De tardezinha, logo no começo da noite, vi que Camila tinha me ligado várias vezes no celular, mas não consegui atender. Em uma mensagem de texto, me disse que queria fazer mais uma noite de pizzas em sua casa e se eu estava afim de participar. No fim da mensagem, tentando me aliviar sobre quaisquer pensamentos ruins sobre o quarto, escreveu:
- Para te provar que não há nada lá, fiz uma limpeza no quarto e tirei o crucifixo da parede. E hoje mesmo vou passar a dormir lá.
O quarto passaria a ser seu, desde então.