sábado, 26 de maio de 2012

Quando (re)criei a história de DOIS FILHOS - Possíveis leituras da ausência

Quando (re)criei a história de DOIS FILHOS, pensei em primeiro plano, naquele que fica.
A narrativa da peça teatral partiu da parábola bíblica "Os dois filhos" (Lc, 15. 11-32) que conta a história de um jovem, o filho mais novo que pediu ao pai sua parte na herança e foi embora de casa, para viver sua vida sozinho.
Em todas as produções e releituras que foram feitas d'O filho pródigo, o foco narrativo, foi em cima do menino que partiu, desse mais novo como protagonista, do que ele fez fora de casa: gastando o dinheiro com roupas caras, perfumes, saindo com prostitutas e ficando pobre financeiramente.
Acompanhamos durante todo o tempo, um jovem que teve nas mãos sua parte da herança e que a gastou com bolhas coloridas da vida, belas que se apagam no ar.
Nesse percurso, o pai que o amava, respeitou sua decisão em sair e voar sozinho. O velho ficou em casa, na companhia do filho primogênito e dos empregados. Pouco se conta sobre esse pai, sobre essa família que continuou sobre os muros daquele casarão sertanejo. O que a bíblia recria é um pai com muitos empregados, que guardara dinheiro pensando no futuro de seus dois varões.
Partindo do princípio de, que toda essa história não tenha acontecido, que trata-se de uma parábola (um tipo de conto de fadas contada para ensinar valores da vida real) ela tem um fundamento profundo quando analisada pelas vertentes humanas, ou melhor, humanitárias.
Durante a ausência desse filho mais novo, ninguém cita como a sua família fica em casa, vendo-o partir com os bolsos cheios de dinheiro para uma vida incerta que aos olhos dele, do jovem, era o caminho de ouro.
Imaginemos: um pai, que mesmo duvidando da certeza de sucesso lá fora, deixa o menino seguir e perde totalmente a comunicação com ele. Do lado humano por parte do pai, podemos tirar várias vertentes: preocupação (a mínima delas), desespero, ausência, luto, depressão, angústia, insanidade, perda de valores, entre muitas outras.
Embora haja a fé, de que um dia esse filho volte, essa fé é abalada pelos dias que se passam. Pela cama vazia, jamais desfeita, pelas roupas murchas, pelo semblante do caçula no primogênito, a falta de notícias.
A construção da narrativa foi densa. Dois anos. Tive essa ideia em recriar os dias desse pai que não ouve mais a voz do filho ecoar pelas paredes do casarão, que não sabe onde ele está, com quem está e se está realmente vivo. A morte é a menor das preocupações. Todo esse imaginário, pode ser analisado e comparado à famílias que vivem com a dura realidade em ter alguém desaparecido. A meu ver, essa situação é pior do que a morte propriamente dita.
Na parábola, o filho volta e o mais espetacular nisso tudo é a atitude do pai. Ele aceita o menino em suas misérias. Além de ter gasto tudo, perdido a dignidade lá fora, o pai o aceita na condição do que nunca deixou ser: um filho. Esse é clímax. Porém, na narrativa da peça, o principal não é esse retorno, mas é mostrar onde um homem declina-se quando parte de si deixa de existir.
Fico muito feliz em ter conseguido escrever apenas uma ideia de como pode ter sido esse tempo de angústias, de ausência de um amado. Essa peça vai além de valores religiosos, de dogmas ou do cristianismo. Ela é viva, humana, digna de ser revivida sem nunca sequer ter acontecido de verdade. Outra fantástica recriação de uma situação invisível que torna-se concretamente visível.
Há diversas leituras possíveis para 'DOIS FILHOS' e mesmo nós do elenco, deliciamos-nos com os ensaios repletos de aberturas que essa narrativa pronta nos traz.
Espero que, quem tenha assistido a peça, possa concordar, discordar e trazer novos olhares dessas leituras tão complexas quando comparada ao amor de alguém que amamos e que não está mais assim tão perto. Aliás, quando comparada ao amor, simplesmente, inexplicável até sempre.

sábado, 12 de maio de 2012

Dois sozinhos


Era uma tarde quente de domingo. Dia sorrateiro, que antecede o branco da segunda, o filho viu pela primeira vez o pai chegar em casa sóbrio. Naquelas tantas, o homem já tinha bebido tanto a ponto de esquecer os nomes.
Sentado na cozinha, o filho olhava o arquétipo do magérrimo, com pele fina, porém sóbrio naquele dia.
Inveterado no vício, fora do convívio de pai e filho, ambos não sabiam como se tratar. Se pelo calor da frieza ou no gelo da tentativa de amparo. Eram dois homens testados em dores, mas que partilhavam de um mesmo brio. Uma imagem refletida num pai que não passava um dia sem se entregar ao álcool e um filho, que não passava um dia sem desejar outra vida.
Cumprimentaram-se com olhares e perguntas pequenas, conversa rápida, que não era conversa.
O pai evitava olhar o filho ainda mais quando estava sentado na cadeira da ponta da mesa. No trono dos mais vividos.
Inebriados pelo convívio doente, sabiam quais palavras usar. Sóbrios de si, não tinham coragem de se encarar. Tanto tempo que o homem via seu pai chegar em casa trançando as pernas e nada mudou, mesmo muita coisa mudando.
Começou refletir sobre o bruto martírio daquele homem. Nenhum sentimento de compaixão agora passava pelos seus sentimentos. Teve um dia, tal sentimento, mas agora desistiu. Foram tantas alegrias estragadas para chegar nesse êxito de esquecer quem por ora deu-o a vida, aquela vida.
Não sabia dizer se era grato por ter que viver com um carma de sangue, que bebia, achava-o feio, inferior aos demais do bairro. Questionou sua vida, de maneira rápida, questionou seus sucessos e sua cor de cabelo. Ninguém pediu nada disso, mas estamos prontos para reclamar.
O filho imaginou que o pai também tinha muitas azarias para destrinchar. Ambos tinham, mas para quê soltá-las? Por tempo, pode-se afirmar que as dores fazem parte do processo para as alegrias, mas assim como elas, vão e vem e nunca perduram por um dia inteiro. A mente muda pede o diferente e o inconstante.
Já estava sozinho na cozinha. O magro foi a outro cômodo da casa e o deixou ali, como sempre.
Para o pai sobrara o martírio de sofrer na escravatura de uma alegria exacerbada que hoje se tornou senhora. Teve vontade de convidar o pai, que hoje estava sóbrio, para passear, conversar sobre a vida e contar algumas alegrias que tinha no bolso.
Mesmo que fossem mudos, sem sentido, estariam juntos.
O dia era de sol, muito quente. No parque da cidade, andariam duas quadras e o filho poderia olhar para o rosto do pai, sorrindo envergonhado. Sol, muito sol.
O céu azul, sem nuvens e pai e filho andam no parque.