Um conhecido de décadas me chamou pelo bate-papo do Facebook, perguntando se podia 'me marcar' em algumas fotos antigas, na época em que eu cursava mecânica no Senai. Antes de responder, um turbilhão de lembranças invadiu minha cabeça e tentei buscar na memória quais imagens ainda permaneciam vivas em mim, de uma época que eu pouco quero me lembrar.
Hoje sou cinegrafista e editor de vídeos. Trabalho com reportagens audiovisuais e tenho muito orgulho da minha profissão. Porém, tenho ainda mais orgulho do caminho que trilhei para conseguir operar câmeras de vídeo ao invés de torno ou fresadora.Meu pai trabalhava em uma indústria metalúrgica, em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, a terra do Lula. Aliás, voltando um pouco mais para trás, minha família veio do chão de fábrica, trabalhando em grandes indústrias de metalurgia como a Mercedes, Volks e GM. A lembrança que guardo do meu avô paterno, por exemplo, é de um velho brincalhão vestido num macacão azul com o logotipo da Mercedes Benz do Brasil, uma estrela de cinco pontas.
A família seguiu esse rumo. Meus tios, primos e meu pai trabalham com graxa, ferro e botas de couro. Este último que ajudou minha mãe à me colocar no mundo, foi o pivô que me empurrou ao mesmo trabalho do ex-presidente do Brasil.
Minha turma no Senai. Meados de 2001, acho. Eu rindo ao lado da Aline |
Lembro-me de, na época, ver um comercial de lentes de contato na televisão e pela primeira vez ter a opotunidade de abandonar os óculos (que eu tanto odeio até hoje) e comprá-las com o meu dinheiro. Fiquei provisoriamente feliz e pela primeira vez quis passar nessa prova e começar ter minha vida assalariada.
Passei. E em terceiro lugar! Numa sala de exatos trinta e dois adolescentes sonhadores. Minha família ficou em êxtase e eu também fiquei feliz, até ir para a primeira aula dos próximos dois anos do curso de Mecânica de Usinagem.
As aulas mudavam conforme o semestre e as matérias variavam em álgebra, física, química e as aulas práticas. Não demorou muito para eu perceber que não queria seguir aquela carreira e desejei não ter passado naquela prova.
Ao contrário disso, meu pai estava satisfeito com o primogênito dele. Ao menos uma vez na vida eu pude corresponder ao futuro que ele imaginou ser o certo para mim.
Minhas aulas eram de apenas quatro horas diárias, sem finais de semana. Eu estudava à tarde, das 13h às 17h e ainda ganhava dois salários mínimos. Para um quatorze anos como eu, estava ótimo. Quer dizer, não estava.
As aulas começaram me intrigar. Eu não queria desistir e tirar dos meus pais o gosto de me ver 'subindo' na vida. Tudo o que eu tinha que fazer era estudar álgebra, aprender a desbastar, alisar e sangrar peças no torno mecânico, além de aprender a trabalhar com paquímetro.
Aquela brincadeira estava me deixando irritado e mais distante de fazer o que eu realmente queria: estudar cinema. Sim, eu queria estudar CI-NE-MA, enquanto aprendia as funções das ferramentas de corte para aço inoxidável 1090.
Eduardo Veroneze, eu com cara de empregada e Everton, me abraçando |
Muita gente da minha sala tinha um brilho nos olhos. Alguns de famílias bem simples, outros com pais engenheiros, mas a maioria com sonhos se desenrolando e se concretizando naqueles primeiros passos fornecidos pelos professores do Senai.
Para mim, tudo estava ruim, mas ficaria pior: o estágio na empresa!
Como parte do contrato, eu teria que, nas férias, passar quatro horas estagiando numa empresa metalúrgica de verdade: na Irbas, onde papai trabalhava.
No primeiro dia lá, eu fui colocado numa bancada para limar (sabem o que é isso?) umas peças chamadas de 'cachorrinho'. Limar consistia em tirar as rebarbas (sabem o que é isso?²) da peça com uma lima.
Meu pai apresentou-me aos chefes modelos e dizia que era pra os velhotes 'cuidarem bem de mim', seguidos de risadas e muito barulho das máquinas ao redor.
Eu, de uniforme cinza, ninfo e com o logotipo da Irbas estampado no bolso à direita da minha camisa. Eu não imaginaria que, além dos dois anos de curso no Senai, eu trabalharia ali na Irbas mais outros três longos e depressivos anos, até ter dinheiro o suficiente para poder custear minha faculdade, mais tarde de rádio e TV.
No último ano de Senai, tive uma disciplina chamada "Redação para currículos" no qual eu pude mostrar um pouco dos meus dotes de escritor (pff) Foi a única matéria que eu consegui alcançar nota 100 em todos os exames. Nos demais, chegava no máximo ao 75. Lembro até do nome da professorinha dessa disciplina: Clementina, que adorava meus textos e dava pulinhos de alegria quando pedia para eu lê-los em sala.
Eu não era o único sonhador-anti nessa história. Um amigo, chamado Rodrigo, dividia a sala comigo, tinha o sonho de fazer artes cênicas e viver do teatro. Éramos o refúgio um do outro quando nos encontrávamos no refeitório para maldizer as aulas de informática e oficinas chatas, trocando ideias sobre peças teatrais, filmes e sonhos futuros.
Mais tarde reencontraria Rodrigo em outro trabalho, veja só.
No último semestre, isso em meados dos anos 2001, teve um processo seletivo para o curso de Ferramentaria, um curso caríssimo e em alta no mercado da época. Só os masters faziam esse curso, ou porquê tinham dinheiro para bancar e provavelmente se dariam bem num futuro promissor, ou porquê conseguiam passa na prova dificílima. Quase igual ao curso de "Publicidade" hoje em dia (rs). Todos da sala prestaram, inclusive eu, porém eu estava cagando para este curso e queria era terminar logo tudo aquilo. Para a alegria geral do papai e dos meus encarregados (vulgo chefes) eu passei, em último lugar. Pergunte se eu fiz: Não! Dessa vez eu me dei ao luxo de seguir o que eu achei certo. Meu pai esbravejou, disse que eu estava perdendo uma oportundade única e mimimi.
Não consigo esquecer o último dia no Senai. Foi um dia quase sem aulas. Eu que sempre fui um aluno quieto e ranzinza, naquele dia estava saltitando pelos corredores. Eu não acreditava que estava acabando.
Quando saí pela portaria 1, junto com Rodrigo, olhei para trás e dei uma espiada lá dentro sentindo um forte alívio na alma por sair de lá. Porém, a empresa que mantinha meu estágio, resolveu me contratar.
Se eu for contar quantas vezes eu chorei, quantas vezes eu não quis ir trabalhar, quantas vezes eu entrei em depressão sozinho por causa do meu emprego, eu iria levar dias e entrar em depressão novamente. Resumindo, eu trabalhei mais três anos na Irbas, em horários alternados. Ora das duas às dez, ora das seis às duas. Segunda à sábado. Não sabia o que era pior. Quando eu entrava às seis da manhã, acordava quatro e meia da madrugada e às seis já estava em frente à maquina, de uniforme sujo, lente de contato e com muita coragem no rosto.
No horário de almoço, eu sempre sentava na calçada da empresa sozinho e lia o jornal do sindicato dos metalúrgicos. Um dia, vi uma notícia que me fez ir ao banheiro e chorar: em um acidente na Mercedes, um jovem de dezenove anos havia perdido o antebraço numa dessas fresadoras fodonas de cortar ferr, exatamente a mesma máquina que eu trabalhava lá. Não queria estar ali, mas numa ligação rápida para minha mãe ela pediu para eu aguentar que tudo iria passar logo. Mãe.
Foram tempos difíceis. Minha vontade de estudar cinema agora se fortaleceu, mas eu resolvi que iria começar fazendo Rádio e TV antes de estudar tal curso, pois ainda não tinha dinheiro/mercado para cursar Polanski, Hitchcock ou Von Trier.
Em casa, meu pai sonhava com Engenharia Mecânica, Mecatrônica ou qualquer área que me tornasse um engenheiro rico e cheio de subordinados. Cheguei a prestar um desses cursos, mas mais uma vez não cursei.
A guerra estava pronta. Meu pai se negou a me ajudar caso eu escolhesse essas 'porcarias de televisão, cinema e teatro'.
"Quer ser famoso, caraio?" dizia.
Senti que teria que pagar minha própria faculdade e custear todas as despesas caso eu escolhesse ir atrás do que eu realmente queria. E foi o que eu fiz.
Tive que trabalhar dois anos na Irbas para que o meu salário chegasse ao valor exato da mensalidade do curso em uma faculdade nem tão conceituada.
Quando eu passei a ganhar setecentos reais, prestei o vestibular e passei.
Ainda trabalhei um ano na Irbas estudando RTV. O primeiro ano inteiro eu paguei do meu bolso e até dinheiro de Avon minha mãe teve que arrecadar para poder interar algumas mensalidades.
Meu pai jamais levantou um centavo do dinheiro dele para me ajudar, porém o mínimo que ele fez foi parar de rogar pragas na profissão que eu havia escolhido.
No segundo ano, consegui uma bolsa 100% na universidade e abandonei de vez a metalúrgica. Repeti a cena do Senai. Eram duas da tarde, olhei para o páteo da Irbas e uma alma velha morria ali.
...tempo para respirar (e refletir)
Parece contos de fadas. E é.
Escrevi este texto para comprovar o tanto de memórias que me vieram à cabeça quando vi essas fotos do Senai de uma época que foi de aprendizado e muita luta, mas que não sinto nenhuma saudade.
Me formei em Rádio e TV em 2009 e nunca fiquei desempregado, sempre trabalhando na área. Graças à Deus, à mim, à minha mãe e à pessoas que me ajudaram (e me ajudam) muito nessa caminhada.
Tudo é aprendizado. No Senai, na Irbas... Vi realmente pelo suor e pelos machucados nas mãos, que a vida tem que ter uma época amarga para podermos reconhecer o que se tornará fruto doce mais tarde. Fiz amigos na empresa e por incrível que pareça, saí de lá por um pedido meu. Foi foda e tenho muito orgulho disso.
Acabou e não quero mais trabalhar com essa área. Os dias de amanhã são escuros, mas podemos clareá-los com nossas esperanças.
Desculpe-me por um texto tão grande e com erros de ortografia, mas não tive tempo para editar o passado.
A prova de que mesmo na metalúrgica eu já ensaiava meus passos no cinema
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