domingo, 8 de julho de 2012

O quarto de Camila

"Essa história é verídica. Os fatos nela narrados aconteceram comigo e eu ainda tenho pretensões de voltar ao quarto, gravar algumas imagens em vídeo e tirar fotografias. O que me falta é coragem."

Conto em 1ª Pessoa
Parte I

No dia em que escrevi esta crônica, tive algumas revelações que me deixaram ainda mais curioso e confuso.
Numa noite de pizzas, fui convidado por um bando de mulheres amigas para jogar conversas fora e dançar no Wii. A festinha foi marcada numa sexta-feira, na casa de Camila, uma das minhas conhecidas que estava ansiosa para mostrar seu closet recheado de roupas e sapatos, além do seu quarto de dormir, com uma cama de chão e flores no papel de parede.
Chegamos, levando alegria uns aos outros, comemorando um final de semana que ainda nem havia chegado. A companhia das meninas me agrada muito e quando estamos juntos, esquecemos de nossas preocupações. São amigas há tempos e sempre que podemos, nos juntamos para brindar um suco, uma cerveja ou uma vodka, celebrando a saúde, jovialidade e o sexo, já não tão constante em nossas vidas quanto antes.
Neste dia, estávamos em sete pessoas. Conversávamos sobre trabalho, vida e muitas risadas enchiam a sala da casa. Camila mora numa casa aconchegante e alta. Por morar em rua de ladeira, o casa fica no alto, com uma escada de vinte e três degraus para chegar até a sala.
Da frente da casa, notam-se duas janelas, uma simetricamente perfeita acima da outra. A primeira janela, de vidro temperado e sem cortinas, revela a sala. Na janela de cima, o quarto que fora dos pais, hoje sem ninguém é fechada por vigas de aço.
Antes de as pizzas chegarem, Camila chamou-me para subir e ver o closet de roupas e também para ver como estava o andar superior da casa após a reforma que havia lhe custado caro. Estava animada com os resultados e logo subimos aos risinhos e gracejos para ver seu novo ninho.
Mostrou-me o embutido todo trabalhado em madeira envernizada, com cheiro de novo. As roupas organizadas davam um ar sofisticado ao desenho do móvel. Sapatos de várias cores, vestidos e toalhas dobradas como num hotel de luxo. O chão amadeirado, aquecia o local, tornando-o ainda mais aconchegante. O quarto com uma enorme cama, forrada com um lençol branco e uma grande televisão. Ela estava feliz com seu relacionamento que dava ares de casamento. Com tudo novo.
A escada ficava bem no meio do corredor entre o closet e o quarto dos pais. Uma porta agora separava um do outro.
Antes de descer, perguntei do quarto fechado por outra porta, bem em nossa frente, que era exatamente o quarto que durante anos abrigou os pais de Camila.
- Ah, aqui é o quarto dos meus pais, Dani, ela disse.
Eu sabia e já havia entrado ali, mas naquele dia, quis entrar novamente e rever o quarto semi vazio. Ela abriu, entrei ainda comentando sobre as novidades amadeiradas de fora e logo parei. 
Ao entrar, senti uma sensação estranha. Vi o pequeno banheiro de cor marrom, a cama de casal também forrada, essa com um lençol de babados, um crucifixo pendurado sobre a cama, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ao lado e um rack, vazio.
A sensação foi de peso nos olhos. Confesso que, já havia sentido essa estranha impressão de peso nas pálpebras em outras ocasiões e lugares, mas nesse dia, remeti esse estranhamento a um 'ar pesado' dentro daquele quarto.
- Nossa Camila, senti um ar pesado aqui, disse.
Ela estranhou e me perguntou se, esse 'ar' era bom ou ruim. Disse não saber, e não sei até hoje. Desconhecia, mas avancei para dentro do quarto, ainda escuro e a sensação intensificou-se. Ela riu de maneira acanhada e eu saí do quarto rindo também, mas para não deixá-la apreensiva.
Lá embaixo, as demais pessoas riam e conversavam sobre outras coisas.
Camila olhou para uma das meninas e disse que 'o Dani sentiu algo estranho no quarto dos pais'. Confirmei e a amiga disse que eu 'já ia começar' com minhas assombrações.
A pizza chegou. O assunto foi momentaneamente esquecido e nos entretemos com outras risadas e histórias. Até que, Camila perguntou para uma das amigas:
- Conto pra ele?
A amiga deu de ombros e respondeu:
- Você que sabe.

Parte II

Silêncio. Todos entreolharam-se e eu explodi:
- Ah, agora vai ter que contar!
Camila largou o pedaço de pizza e pegou o copo com Coca. Enquanto tomava um gole, contou que a irmã mais velha, hoje casada, deu uma festa na casa para amigos, há uns dez anos. Os pais haviam viajado e ela aproveitou para reunir os mais conhecidos e beber ao som de música alta.
Um amigo, que era Pai de Santo, não foi convidado, mas mesmo assim foi até a casa. Proibido de entrar, esbravejou e rogou pragas aos festejos. Tentaram acalmá-lo, dizendo que não era necessário aquele circo todo. Já que fazia tanta questão, deixaram-no entrar. Podia entrar e beber também, dado a desculpa de que não o acharam antes para fazer o convite. Uma briga passada seria o motivo para não tê-lo convidado, mas esse fator não fora mencionado.
O homem negou e disse que não queria entrar naquela casa amaldiçoada. Foi embora desejando que a festa tivesse seu ar desagradável. 
Camila continuou contando, que tarde da noite, um casalzinho que se atracava no sofá, resolveu subir para o quarto dos pais e ficarem sozinhos lá durante um tempo. E foram.
Conta-se que, após trinta ou quarenta minutos, a moça no quarto, começou a gritar pedindo ajuda e implorando por socorro.
Os mais sóbrios subiram e viram-na encostada na parede ao lado da cama, com a cabeça coberta pelos braços, enquanto o namorado revirava os olhos na cama e pendia os braços para trás. A voz que saía do moço era rouca e ameaçadora, com palavras indecifráveis. 
Camila nessa época era adolescente e achou tudo engraçado. Só percebeu a seriedade da situação quando a irmã a trancou em seu quarto, hoje mobiliado com cama de chão e flores na parede.
Ficaram lá e só depois do fim da algazarra, Camila foi saber que uma outra participante da festa, chamada Andréa, também foi ao socorro do casal e começou a praguejar e revirar os olhos assim como o rapaz fazia há pouco, deitado na cama. Ela era loira, de cabelos compridos, e ao tentar ajudar os jovens, sentiu um forte impacto e sentou-se repentinamente na cama dizendo obscenidades em um tom gutural.
Todos assustaram-se e correram para o andar de baixo dizendo que Andréa agora estava possessa, dominada por uma força maior. Antes de tomarem qualquer decisão, lembraram-se que, os pais dela eram frequentadores de uma capela do Sagrado Coração desde a sua fundação. Rezavam o terço e cantavam nas missas e talvez poderiam intervir nessa força oculta, que agora parecia ter-se apoderado da filha deles. Ligaram imediatamente e esperavam ansiosos.
Andréa ficou sozinha no quarto. Ora ou outra urrava como um animal e soltava palavras chulas.
Esbravejava, mas não levantava dos pés da cama. Os braços pendiam sobre as pernas e a cabeça dava trancos repetidos para o lado esquerdo com violência.
O casal agora estava na sala, embaraçados com o acontecido. O moço dizia não lembrar de muita coisa, só de estar olhando para o teto do quarto e ter visto um crucifixo na parede, depois acordara no chão com as pessoas ao seu lado. Viu Andréa contorcer-se e parecer ser jogada na cama, virando o tronco para frente, parando finalmente sentada. Confuso, foi levado para baixo enquanto a dona da festa e os mais conhecidos de Andréa tentavam inutilmente alguma comunicação verbal com ela. Foi quando as palavras foram cuspidas no ar e todos, amedontrados, desceram, a fim de não despertar o que quer que fosse em Andréa.
Então emudeceu. Os gritos cessaram assim que ela foi deixada sozinha no quarto escuro, ainda na cama, imóvel.
Camila ouviu de seu quarto fechado, os urros de Andréa no fim do corredor, mas não ousava sair. Percebeu quando os gritos cessaram e logo jurou ouvir passos de alguém no corredor. Assustada, encolheu-se na beliche de cima e ali ficou.
Os pais de Andréa chegaram, confusos e munidos de uma bíblia e um terço da ordem bizantina.
Em seu silêncio, Camila perguntou-se o que estava acontecendo e se Andréa não estava brincando com todos e não se deu conta de que apenas ela e Andréa estavam no segundo andar da casa. Ouviu a voz do pai da loira subindo as escadas. A mãe chamou a filha de longe e os urros recomeçaram.
Uma porta bateu forte, abafando os gritos. Era a porta do quarto dos pais que batera com violência. Camila, de bruços na cama, com os ouvidos próximos à parede, ouviu ao longe a voz rouca dizer:
- Quem chamou vocês aqui?

Parte III

Camila contou que estava apavorada e com vontade de chorar. Os gritos que haviam parado, retomaram com mais força. Andréa agora falava palavrões contra seus pais e dizia que algo como 'não vou devolver, não vou devolver...'
Todos os demais estavam na parte de baixo da casa, alguns ouvindo o show de horrores da sala, outros na rua, falando na calçada. Camila ouvia do quarto apenas algumas palavras das pessoas lá embaixo.
Silêncio novamente. As vozes agora também ficaram quietas e dava para ouvir apenas o ruído do estrato da cama dos pais. Era como se alguém andasse sobre o colchão.
Parece que tudo parou, que todos foram embora e a deixaram sozinha no quarto.
Aquilo que entrou em Andréa poderia entrar nela também e imaginou ser um mal invisível, algo das trevas, ruim.
Levantou a cabeça e tentou ouvir algo. O ruído do estrato também parou, mas não ouvira quando. Aquela quietude a preocupava. Tudo parecia ter desaparecido.
Após alguns minutos ainda deitada, resolveu levantar e abrir a porta. Suas pernas cambaleavam quando sentiu o chão. Próxima à porta, olhou primeiro pela fechadura que dava de frente para o quarto onde estava Andréa e os pais. Olhando, viu que a porta do quarto ainda estava fechada. Lembrou-se que, da janela do seu quarto, dava para ver a churrasqueira, onde há pouco estavam os amigos da irmã. Lentamente, abriu a janela e viu a varanda vazia. Estava acesa, com carne na brasa e o chão com marcas de pés. Ninguém.
Estava aflita. Não sabia se chamava alguém, se abria a porta ou se ficava ali esperando alguém se lembrar dela no quarto.
Batidas na porta.
- Cá! Pode sair... disse a irmã
Após uns segundos de silêncio amedrontador, Camila perguntou:
- Tá tudo bem aí fora?
- Sim, só algumas pessoas que não sabem beber.
Camila abriu a porta e viu a irmã com o rosto inchado. Parecia ter chorado muito, mas tentou desconversar com um sorriso fraco no rosto.
- Vamos dormir na vó. Amanhã a gente limpa aqui.
Sem hesitar, Camila pegou suas roupas de cama e embrulhou num lençol que há pouco estava embaixo dela. Quando saiu do quarto, viu que o quarto dos pais estava aberto e vazio. A cama revirada e as janelas fechadas. Sentiu um leve arrepio no braço esquerdo enquanto descia a escada que dava na sala, onde seu avô a esperava.
A casa estava vazia, a não ser por ela, a irmã e agora o avô, que as levaria para dormir em sua casa. Não conseguia tirar dos pensamentos os gritos de Andréa e ainda mais como saíram do quarto dos pais sem que ela percebesse ou ouvisse passos ou vozes. Simplesmente, as vozes e as pessoas saíram da casa de maneira muito silenciosa ou desapareceram.
No outro dia, ao voltar com a avó e a irmã, Camila olhou para a casa e teve medo de entrar. Questionou-se realmente se aquele ataque que atingiu duas pessoas  um dia antes, fora mesmo resultado de bebedeira, dúvida que a fez dormir e acordar de meia em meia hora. Pelo pouco que conhecia Andréa, não imaginava que ela faria isso a ponto de terem de chamar os pais para acalmá-la.
A avó veio junto ajudar na limpeza, visto que os pais de Camila voltariam no dia seguinte.
A casa estava uma desordem, com garrafas, espetos de madeira e copos de plástico por todo lado. A vó pediu que Camila e a irmã fossem limpar a cozinha e que lá em cima, como pouca gente tinha subido, ela mesma limparia.
A irmã estava muda, com um tom sério e visivelmente abalada com o fato da noite anterior e então resolveu não perguntar nada. Ouviu os passos da vó no andar superior, mas tentou se concentrar em recolher copinhos sujos da varanda.
Uma porta bateu forte lá em cima e logo ouviu-se um grito rápido de susto.
Camila paralisou-se. A irmã recomeçando a chorar gritou e chamou pela vó.
A porta de cima foi logo aberta e a voz da velha soou lá pela escada:
- Tudo bem meninas, foi só o vento que fechou a porta e eu me assustei.
Nem assim as duas relaxaram. A irmã largou o que estava fazendo e sentou-se no sofá, chorando e dizendo que queria sair dali. Camila foi consolar a irmã na sala, quando viu a vó descendo com um saco de lixo em uma mão e o abajur dos pais na outra.
- Camila, pegue esse saco e coloque lá no fundo.
- O abajur quebrou?
- Vai fazer o que estou pedindo
Camila estava com medo de andar pela casa, simplesmente de cruzar a cozinha. Jogou rapidamente o saco nos fundos e voltou para a sala. Mais tarde ela descobriria que o abajur infravermelho que o pai tanto estimava não tinha quebrado e sim, explodido.

Parte IV

Eu estava atônito. Não sabia se, me assustava com a história ou se me sentia feliz por ser um desses médiuns sensitivos que têm a capacidade de conversar e/ou enxergar espíritos caminhando entre os vivos. Não consegui distinguir se aquela energia que sentira há pouco no quarto dos pais de Camila era boa ou ruim, mesmo sendo questionado por todas as pessoas quando narro esse fato.
O clima de alegria daquela noite de pizzas estava por ora estacionado. Todos na sala agora prestavam atenção em Camila que, sem tantas delongas, deixou todos com medo até de cruzar a escada para ir ao banheiro.
De outras histórias que ouvi, espíritos são energias de pessoas mortas que ficam em lugares que lhes foram muito familiar em vida. Porém, muitas vezes, eles aproveitam do medo das pessoas vivas para poderem se fortalecer até ter capacidade para mover algum móvel ou fazer-se sentir por um vento que passa, ou um ar frio que estaciona em determinado lugar. Aquela situação me parecia bem mais perigosa, pois o que se 'apossou' do rapaz e também de Andréa, parecia perturbar o corpo de tal maneira que, se não fossem tomadas providências imediatas, como uma oração ou um mini exorcismo, aquilo poderia ferir fisicamente alguém.
Uma das meninas do grupo estava extremamente incomodada com a história e quis ir embora.
- Não vim aqui para ficar com medo, ouvindo besteiras de fantasmas.
Logo, foi convencida a ficar com a condição de que pararíamos de tocar no assunto.
Fiquei mais curioso, com uma vontade imensa de subir novamente ao quarto, sentar na cama e ficar ali por um momento sentindo a vibração do lugar. Deram-me essa ideia, mas não tive coragem sequer de ir ao segundo andar após saber de sua fama.
Após uns vinte minutos, enquanto as meninas jogavam na sala, fui até a cozinha onde Camila lavava as louças. Estava sozinha e aproveitei para tentar tirar mais fatos dela.
- Estranho né meu!? Eu nunca tinha ouvido essa história e senti isso entrando lá. Fiquei encucado!
- Sim Dani, respondeu-me, mas nunca ouvi nada lá.
- E seus pais?
- Também não.
Segundo ela, na época, os vizinhos ouviram os gritos, porquê depois contaram aos pais. Embora soubessem da festa, não sabiam do acontecido e pelo que me parece, até hoje não sabem.
- O pai da Andrea te conta se você ir lá perguntar, mas não sei se é bom tocar nesse assunto, disse-me Camila enquanto ensaboava um prato.
Questionei novamente, como foi que resolveram o assunto. Pelo que consta, os pais entraram no quarto com Andréa ainda falando palavrões e tendo comportamentos estranhos, mas ninguém se lembra, além dos pais, como saíram de lá e qual era o estado de Andréa.
O fato aconteceu há mais de dez anos. Camila relembrava com facilidade daquela noite de setembro que ouviu uma loira bonita e alta dizer coisas horríveis intercalando com urros animalescos.
Fui embora da casa de Camila com barriga e cabeça cheia. Não consegui dormir direito pensando no quarto semi-vazio. A cama arrumada, o crucifixo, a cômoda e a imagem da santa. Não contei à ninguém da família sobre minha sensação naquele lugar. Já tinha sentido esse estranhamento em outros lugares, principalmente se eu soubesse previamente a história dali. Qualquer história que seja.
Um dia, senti esse estranho torpor numa casa velha que fora de uns tios meus, na vila que morei quando criança. Eles já tinham mudado de lá há um tempo e quando eu soube que a casa estava aberta, fui até lá para ver como esta seria vazia. Havia passado muitos momentos naquela casinha de três cômodos, cresci brincando ali, tomando chuva e dormindo naquele quarto. Quando entrei, vi as mesmas vidraças na janela, a mesma porta e a sala, tudo vazio. Foi aí que senti esse peso nos olhos e na cabeça, algo físico mesmo. Minhas pupilas reviram e na região da testa aparece uma pequena vertigem. Foi esse mesmo sentimento que me invadiu quando entrei no quarto que fora dos pais de Camila.
Na outra semana, na missa das oito, vi os pais de Andréa. Não sabia se perguntava sobre o que tinha acontecido naquele quarto e como puderam tirar a filha do transe. Conheço bem os pais dela, são personagens prontos para um boa história de horror: católicos, unidos em um casamento longo, humildes e sempre com um sorriso no rosto. O enredo? Uma filha possuída pelo mal.
Naquela noite de domingo, após terminar a celebração, ambos vieram me cumprimentar e perguntar como estava em minha nova moradia no centro da cidade. Ouviram dizer eu havia me mudado e vieram conversar. Eu disse estar bem, mas o fato do quarto não saía da minha cabeça e vendo-os novamente após saber da história, imaginava seus rostos simples, atordoados com a imagem retorcida da filha que não era sua filha naquela noite. Sorrateiramente, eu disse que tinha um assunto delicado para tratar com eles, mas não ali dentro da igreja. Ambos olharam-me com uma dúvida no rosto, mas visivelmente dispostos a responder qualquer coisa. Porém, jamais imaginavam que o assunto seria os gritos roucos que a filha dera há anos.
Fiquei com receio de não vê-los novamente tão cedo e resolvi perguntar ali mesmo, ante o sacramento e os anjos pintados na parede. Alguns amigos estavam comigo quando comecei a contar a história do cômodo.
A mãe ouvia-me com as mãos dentro da jaqueta de lã e o pai, com os braços cruzados. O sorriso singelo de ambos tinha desaparecido.
Resumindo os fatos, terminado a história, perguntei se tudo aquilo era verídico e me arrependi de toda minha curiosidade e audácia em tocar neste assunto, quando a mãe de Andrea começou repentinamente a chorar.

Parte 5 - Final

- Sim, foi isso que aconteceu. respondeu a mãe de Andréa, enxugando lágrimas dos olhos. Isso nos perturbou durante anos. Minha filha ouvia vozes pedindo para ela se matar. Não conseguia entrar em casa, cruzar os portões.
Ouvia abismado às constatações daquela senhora. Então era verdade, e de uma veracidade que tinha causado transtornos àquela família.
- Passamos por momentos muito difíceis, disse. Hoje graças à Deus, Andréa melhorou.
O pai calado, só confirmava com a cabeça as constatações da esposa. De braços cruzados, só repetia algumas palavras que ela dizia e tentava mostrar-se calmo com a conversa.
Era nítido que o fato realmente aconteceu e que algo de errado esteve naquele quarto na época da festa e de alguma maneira se manifestou em duas pessoas. Resta descobrir o que era.
Do lado de fora da igreja, enquanto nos despedíamos, não citei mais nada sobre a história do quarto substituindo o assunto por música sacra. O pai de Andréa é compositor e há anos canta na igreja ao lado da esposa e de seu violão. A igreja fôra trancada após a missa e conversávamos na calçada, com a rua iluminada apenas por uma luz fraca vinda do poste. A mãe já estava no carro aguardando o marido que animado, contava sobre suas composições musicais. 
Eram quase dez da noite. Enquanto ele falava, percebi uma bexiga em formato de coração cruzar o breu que se fazia na lateral da igreja, mas meu olhar logo voltou rosto animado do velho. O frio estava ficando denso e com uma leve finalização no papo, entrei no carro de uma amiga e nos distanciamos da igreja e dos pais de Andréa.
Dentro do carro comentei:
- Ela chorou, você viu?
- Vi, comentou a motorista. Estranho né! Deve ter algo naquele quarto. Credo.
Cada vez mais a história parecia uma incógnita para mim. O fato de eu ter entrado e sentido algo estranho no ar sem saber da história me parece de um assombro único. Algo está alojado no quarto, sobre a cama ou mesmo encostado no canto da parede.
Não consegui cruzar o quarto naquela noite de pizzas e desci com calafrios pelos cotovelos.
Na noite em que resolvi escrever este conto, sentei sobre minha mesa no quarto e iniciei as lembranças das noites de mistério. Escrevi até o quarto capítulo e quando estava escrevendo este último, resolvi deixá-lo para ser finalizado no outro dia.
Quando acordei, senti uma dor cortante no pescoço. Ao olhar no espelho, vi marcas como se fossem feitas por um gato com unhas bem afiadas na parte da frente e no lado esquerdo do pescoço, que estava todo arranhado, consequência de uma coceira abrupta que me deu durante a madrugada. Ao passar os dedos nas marcas, lembrei da sensação de uma unha quebrada percorrer meu pescoço suavizando a coceira, mas ao mesmo tempo abrindo um longo ferimento até próximo do peito. Na minha lembrança, as unhas eram minhas e tamanha era a coceira. Conferi meus dedos e as unahs não eram afiadas e só com uma força enorme eu faria aquelas marcas em meu próprio pescoço. Lembrei-me de alguns flashs que tive ao abrir rapidamente os olhos na madrugada, enquanto coçava bem abaixo do meu queixo. No sonho, estava deitado numa cama de casal com uma parede enorme atrás de mim. Era uma parede branca, com rachaduras pequenas e sem janela..
As marcas eram feitas de baixo para cima, começavam no fim do peito e acabavam no queixo.
Contando isso para alguns amigos do trabalho e mostrando as marcas, disseram que eu havia ficado impressionado com a história de fantasma e feito os arranhões no pescoço. Fora os mais engraçados que me perguntavam se eu não tinha dormido com um terceiro personagem da história.
De tardezinha, logo no começo da noite, vi que Camila tinha me ligado várias vezes no celular, mas não consegui atender. Em uma mensagem de texto, me disse que queria fazer mais uma noite de pizzas em sua casa e se eu estava afim de participar. No fim da mensagem, tentando me aliviar sobre quaisquer pensamentos ruins sobre o quarto, escreveu:
- Para te provar que não há nada lá, fiz uma limpeza no quarto e tirei o crucifixo da parede. E hoje mesmo vou passar a dormir lá.
O quarto passaria a ser seu, desde então.

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