Todo ano, quando o Dia dos Pais se aproxima, uma incógnita
sentimental me invade de uma maneira muito peculiar. Eu não sei se digo que amo
meu pai, ou se digo que um dia tentei amá-lo.
Um abismo. É assim que eu mensuro a distância do afeto
familiar que há entre eu e a parte masculina que participou de minha criação, meu
pai de sangue. Quem me conhece bem, sabe que eu não tenho uma relação de bons afetos com
ele, embora esta relação seja de muita proximidade.
Cresci num ambiente onde sempre vi minha mãe reclamar das
ausências e irresponsabilidades daquele que era para ser o macho-alfa da casa,
o homem. Macho este, que tem a mesma inicial que a minha no primeiro nome: a
letra ‘D’.
D sempre foi
ausente. Presente-ausente. Eu como primogênito, sempre tive a figura materna
como principal fonte de força e resistência dentro do lar.
Das coisas que me lembro de D, guardo muitas lembranças. Talvez
tantas delas eu não teria caso tivéssemos uma relação de cumplicidade.
Um dia, chamei D para passarmos o dia dos pais juntos. Havia
muito tempo que não o via. Agendei nosso encontro por telefone e disse que iria vê-lo no
domingo. O primeiro dia da semana era a
data exata em que ele acordava cedo, colocava o lixo na rua, rondava a cozinha
e saía pelo bairro embebedando-se, voltando no meio da tarde com os olhos
pesados e pernas cambaleantes. Dormia o resto do dia e à noite, após o jantar,
cruzava as pernas na sala assistindo TV e pouco participava do ambiente
familiar.
Pedi para que D não bebesse naquele domingo. Ele me
perguntou aonde iríamos e preferi não responder. Minha mãe, tão dele cansada que
vivia, adiantou-me que o marido não iria e que faria normalmente seu ritual dominical.
Preferi confiar e mantive meu convite.
Nem mesmo eu sabia o motivo daquele passeio. Não havia
ensaiado nada, nem uma fala, nem um abraço e confesso que, sentia-me nervoso ao
tê-lo sóbrio comigo, num domingo, caso aceitasse o convite. Não comprei nenhum
presente, apenas encomendei um passeio de barco num grande lago no centro da
cidade.
No dia marcado, cheguei cedo em casa. Senti o mesmo cheiro
da minha antiga casa naquele bairro que vivi durante anos. O dia ensaiava-se
radiante de sol, que desde aquele momento, invadia a sala da casa com raios amarelados, lugar onde eu ainda
possuía uma cópia da chave. Logo que entrei, minha mãe desceu as escadas, ainda
de pijamas e cumprimentou-me alegremente. Senti o doce aroma de mãe quando a
abracei.
- Seu pai já saiu. Eu te falei... disse ela dando de ombros
e virando-se.
Abaixei minha cabeça e fiquei confuso por um momento.
Normalmente, naquela hora ele ainda estaria em casa com seus chinelos
arrastando-se pela cozinha.
Senti um furor momentâneo e joguei-o às valas em meu
pensamento, mas mantive minha compostura. Em silêncio, desmarquei o passeio e
já maquinava um jeito de ligar ao homem do barco e pedir um desconto pelo serviço
não prestado.
Minha mãe preparava o café na cozinha e já chamava para comer pão de centeio.
Enquanto conversávamos sobre trabalho e as contas da casa,
ouvi um barulho no portão. Era D.
Entrou com os cabelos molhados, incrivelmente penteados e disse
meio acanhado:
- Vamos?
Estava sóbrio.
O parque estava movimentado. Era nítido que algumas famílias
resolveram passar o dia dos pais numa churrascaria ou compartilhando comida e
avarezas dentro de casa.
No caminho, D não perguntou aonde iríamos. Só questionou o motivo de eu
querer falar com ele. Deve ter imaginado milhares de coisas e talvez, a mais
óbvia delas, que eu iria novamente cobrá-lo sobre algum tratamento anônimo que
possivelmente, deveria ajudá-lo numa abstinência cotidiana.
Andamos pelo parque. Conversamos sobre trabalho, sobre
nossos salários e como estava o apartamento onde eu morava. O sol refletido em
seu rosto me fez perceber que, ao lado do olho esquerdo, havia uma pequena
cicatriz. Perguntei o que foi e ele respondeu imediatamente: caí.
Um turbilhão de imagens veio à minha cabeça e percebi que
não deveria ter perguntado. D não estendeu a conversa e logo avistou um grande
lago.
- Está bonito, bem cuidado né!? Disse
- Tá
Começou a elogiar o prefeito da cidade e lembrou de um deles,
de candidatura passada, que havia sido assassinado há quase duas décadas. O assunto
foi parar em política e logo se lembrou da politicagem mal feita que resultou
em seu desemprego passado. D trabalhou durante anos em uma empresa e foi
mandado embora, fruto de seu desencadeamento alcoólico. A culpa, para ele, era do
chefe que participava de propinas na empresa.
Avistei o velho com quem eu tinha falado há uma semana e combinado o passeio. Paguei adiantado e queria apenas navegar em descanso sobre aquele lago. Queria a certeza que teria uma barco só para este momento.
Aproximei-me e cumprimentei-o formalmente. Após rápido aperto de mão, apresentei-o também
à D. Quando o homem pegou em sua mão, vi que as mãos de D eram bem mais
maltratadas e com aspecto mais envelhecido do que as mãos daquele homem velho.
Guardei mais lembranças.
O homem oferecia passeios de barco pelo lago. Meu pai
observava com desconfiança minhas atitudes. Não imaginava que eu iria querer
navegar num lago desconhecido como aquele. Pelo que me consta, D nunca havia
entrado em um barco sequer para conhecer. Muito menos eu.
Sugeri que entrássemos em um dos barcos. O filho mais novo
do velho acompanharia nosso passeio por aquela pequena imensidão verde-ocre.
O lago era grande, mas não se perdia a vista. Um pequeno
cais adentrava as águas da margem e os barcos ficavam enfileirados um ao lado
do outro, batendo-se os cascos. D olhou-me e eu o convidei para que pudéssemos
juntos, navegar pelo lago do centro.
D rejeitou com um sorriso acanhado e virando-se preferiu
olhar-me de longe, como sempre fez.
Entrei no barco e com meu colete salva-vidas estendi a mão e
chamei-o mais uma vez. Ele percebeu que era sério e com um olhar sereno
assentiu. Ligeiramente, pediu outro colete para o velho e entrou no barco também, que
balançou para os lados, fazendo-o rir.
Sentou em frente a mim e deu espaço para que o negro, filho
do velho, pudesse nos ajudar a remar. O menino alto foi em pé, no bico do
pequeno barco, enquanto eu e D adentrávamos juntos aquele imenso lago,
sentados num barquinho.
Olhei para as águas que agora eram nosso sustento. Olhei
também para os cabelos penteados do meu pai e vi uma inocência em seu olhar. O
vento batia leve em seu rosto e percebi pela primeira vez na vida, que éramos
homens e que havíamos desperdiçado tanto tempo buscando uma resposta para os
motivos que nos afastam.
Me bateu uma vontade de chorar e D percebeu isso. Olhou-me e não
soube o que fazer. Tudo o que ele temia era que eu o abraçasse e pedisse para
que ele fosse mais presente em minha vida. Queria pedir desculpas também, por
não ter sido quem ele queria que eu fosse. Cobrá-lo, para que ele fosse o que
eu queria. Despedir-me, apresentar-me novamente como filho. Aceitá-lo como pai.
Pendi a cabeça para o lado e vi a margem do lago bem ao
longe. O jovem negro alçava o horizonte com o olhar e eu agora olhava para o
chão. Quando chegamos ao meio do lago, pude perceber o quão imenso era aquela
reunião de águas. Pedi para pararmos. O jovem obedeceu.
D estava desconcertado. Eu também. O barco balançava de um
lado para o outro e nós agora já estávamos em alerta, mesmo em silêncio, de que
alguma cobrança iria surgir. Nossos olhares traziam nossas vidas afastadas.
O sol batia em seu rosto, um semblante cansado num corpo magro
e definhado por tantos anos de bar e solidão. Éramos dois agora, num barco a
balançar, no meio de um lago fundo.
- Gostou?
- Do quê? perguntou
- Do passeio...?
D sorriu e disse que estava com medo. Eu também estava. Percebi
neste momento, que somos assustadoramente iguais.
Vendo seu reflexo na água embaçado pelo sol, pedi ao jovem
alto que continuasse o percurso. No barulho do remo encostando-se à água, o
barquinho adiantou-se e continuamos a sacolejar sobre aquelas águas brandas de
um domingo à tarde em um singelo passeio de barco.
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