Um texto com um pouco de melancolia e ao mesmo tempo simples, de pensamentos sem vozes, entre duas palavras.
- Oi? Disse deste lado da linha.
Havia ensaiado durante meses essa ligação. O número discado foi decorado e percebeu que não havia esquecido, pois não tinha sequer um papel ao lado com algo anotado. O coração aflito o fez lembrar naquele desgastado teclado numérico, quantas vezes tinha discado o mesmo número em anos anteriores e em outros demasiados aparelhos, quando ainda os sentimentos se encontravam em um mesmo almejo. Ligava de um orelhão público, com adesivos prostitutos colados ao pé do ouvido. O aparelho azul não tinha lábios vermelhos, mas dele surtiria a voz do ex companheiro que iria responder seus anseios, mesmo com palavras ocres, o timbre o bastava. Bem próximo do azul que o aproximava da voz longe em outras circunstâncias.
Aquilo que chamavam de relacionamento, de aliança no dedo e oculto dos parentes próximos, terminou logo depois de uma traição boba, que partiu de um dos lados. Estava cansado da falta de tempo e se emaranhou em outros braços, antes mesmo de encerrar o gosto do outro. Braços que eram mais frios do que a causa do término. Lembrou-se rapidamente das canções que embalaram o relacionamento, dos momentos de água salgada e do sexo que faziam enquanto os pais viajavam. Eram adolescentes de coração bobo, mas haviam amado verdadeiramente um ao outro, embora isso tenha acontecido em momentos distintos enquanto estavam juntos. Brigavam, calavam-se e beijavam-se no final. Lembrou também da viagem e do sexo que fizeram ao entrar na casa do destino antes mesmo de desfazer toda a bagagem.
Questionou-se como tudo aquilo podia ter acabado na intensidade do gosto que tinham um pelo outro. Ficou imaginando o que o outro pensava enquanto segurava o telefone ao ouvir seu singelo cumprimento feito de duas vogais. Não se deu conta que o fato de ter novamente ligado, fôra um processo de determinação e uma batalha contra o próprio orgulho. Discou em uma tacada só e entregou aos ventos aquele momento. Tantas outras ligações já tinha feito naquele orelhão para outros amores e para este também, mas não no momento que vivia agora. Viajou também pelo cheiro de saliva seca na pele, de outros sexos que esbarrou pelo caminho, todos para se convencer que era capaz de amar um outro alguém e caso um dia pudesse, contaria todas as aventuras que teve como prova de esquecimento, mas não. O outro estava na linha e havia sentido quem estava novamente o procurando.
Este outro poderia ter ido embora como prometera certa vez ou estar aquecido em outro coração ou se esquecido de tais momentos que o fizeram novamente procurar o passado atrás de uma seqüência numérica. O outro poderia também tê-lo esquecido e jogado todas as lembranças fora, menos uma foto que guardava apenas para se juntar aos demais casos que tivera durante seus dias devaneios. Ou não, podia ter tudo muito bem guardado na esperança de um dia retornar a amar a voz que estava do outro lado da linha. Teve raiva de si mesmo por
dois ou três segundos, pois não deveria ter tirado um tempo de sua vida tão corrida para aparecer em outra que dele correu tão cedo.
Imaginou o motivo daquela ligação, que não hesitou para atender, pois imaginou ser sua mãe perguntando do rodo que esqueceu atrás da porta da cozinha. Mas não, era um amor passado que novamente entrou em sua vida por um momento pequeno. Franziu os pêlos da sobrancelha, tentou transmitir calma e se fazer de desentendido, mas um sorrateiro sorriso surtiu de sua boca e imediatamente ficou feliz por não poder ser visto pelo telefone. Poderia passar pelo tom da voz o sentimento que julgasse necessário. Por ter recebido essa ligação embora também tivesse vontade de saber como o outro estava, tinha o poder sobre aquele momento. Ou não. Talvez por ter sido ele que encerrou a união há dois anos, tinha mais dúvidas sobre si do que aquele que deixou chorando na estação.
Ambos não sabiam o que falar e nem como agir, mesmo que não precisassem se mover. Alguns pensamentos se encontraram ali, as músicas, a chuva e quase instantaneamente puderam ler naquele segundo em silêncio que ainda tinham muito que ser um ao outro. Os dias o afastaram, o trabalho havia mudado e talvez agora pudessem dedicar um pedaço de tempo. Talvez estivessem mais maduros, mais determinados a amarem-se e tudo ficou tão perto. Moravam ainda em suas cidades de início, pois o número discado foi o mesmo. Um deles julgou lembrar-se das brigas para suscitar maturidade e não deixar que aquele minuto se tornasse doce demais e pudesse agir com a razão, como não fizera várias vezes em tempos remotos o que resultou em lágrimas que poderiam muito bem ter sido evitadas. Nem sequer tinham caído em si pelo nervosismo de um ouvir a voz do outro. Voltaram ao aparelho azul e o passado foi ligeiramente esquecido para que pudessem dar continuidade a uma conversa banal e ao mesmo tempo, interessante. Estavam presos ao momento e próximos em suas vozes, em coração, mas não juntos. Podia ser uma ligação qualquer, uma proximidade boba ou um rumo que se retornaria, quem sabe... Ou apenas mais uma das tantas conversas que fizeram durante seus vinte e alguns anos.
- Oi, respondeu o outro.
Acho phoda esse texto! Já te falei, né? rs
ResponderExcluirFalou agora!
ResponderExcluirSimplesmente DEMAIS. O texto mais completo que já li dentro deste assunto. Show de Bola
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