quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Vista para o céu

Parte I

Era de se esperar que os hotéis estivessem lotados em época de festas de fim de ano ou qualquer outro tipo de feriado religioso, ainda mais no Brasil onde reside a fé católica em sua grande parcela de crentes. A praia foi descartada antes mesmo de ser cogitada. O campo parecia monótono demais para constar como destino de um casal que procura férias agitadas. Vacas e os outros animais provenientes dele poderiam entreter os filhos, mas como o casal não tinha filhos e ainda não planejavam um, o mato não chamou tanto a atenção.
Surgiu uma colônia, dessas onde as atividades são programadas e quase sempre não agradam tanto. São mais interessantes no folhetim de anúncio do que na realidade. Veio também a idéia de um cruzeiro e isso agradou os dois, tanto ele quanto ela, mas o orçamento não correspondia à ideia. Até estudaram o passeio num navio gigante, viram fotos de vistas maravilhosas, mas sabiam que um cruzeiro, sete dias num cruzeiro, era muito caro, mesmo fora de temporada e com a moeda nacional valorizada.
Acabaram numa cidadela cheia de crianças correndo pelas ruas, armazéns e gente sentada na varanda de casa. A mulher esbravejou quando viu folhas secas pelo chão, mas o marido tentou encontrar um motivo para ficarem.

- Pode ser interessante, disse em voz baixa.

Quase não tinham pousadas na cidade, nem mesmo hotéis vagabundos. À cada pessoa que perguntavam, eram mirados dos pés a cabeça e com um sorriso sem vergonha no rosto, as pessoas diziam não saber se havia, ou não, um hotel nas proximidades.
Avistaram uma casa grande, dessas com aspecto medieval e imaginaram ser um bordel, visto pelas meninas de saia curta e blusa sem manga, recostadas na porta. O marido, educadamente se apresentou a uma delas e percebeu que aquele tipo de educação era desnecessária naquele lugar. Perguntou se era um hotel e antes mesmo de terminar, a mulherzinha apontou para o balcão e olhou a esposa da cintura para baixo.
Era um hotel, efetivamente um hotel e organizado, mas de baixo escalão. A senhora gorda da recepção os atendeu com educação, mas com uma simpatia surrada, de gente do mato que trata todo mundo como velhos conhecidos. Isso irritou um pouco o marido, mas a esposa observava as outras portas do lugar.
Enquanto a gorda falava dos aposentos, o marido ouviu um gemido agudo de mulher e um ranger de cama, vindo de perto. Sua mulher certamente ouviu, mas parecia se encantar com os corredores do casarão. Havia quartos vagos, mas o homem não quis ficar. Mais do que rápido, tirou sua mulher dali com certa vergonha de tê-la levado àquele lugar. Uma imagem de um puteiro vagabundo rondou sua mente e não quis compartilhar seus desejos sexuais com a esposa. Saíram e a mulher da porta continuou a olhar a esposa caminhando pela rua da frente.
O dia já encerrava seu trajeto, a noite debruçava-se sobre as montanhas, mas não havia chegado ainda aos telhadinhos. Sabiam o caminho da rodoviária e o próximo ônibus sairia em meia hora, mas não souberam explicar porque não foram embora daquele lugar vazio de interessantes destinos.

Parte II

A fome causou um oco principalmente na barriga do marido. A esposa queria “fazer xixi” e era assim que descrevia sua vontade. Pararam num boteco de nome “Vintém” e a mulher esqueceu por um instante das reclamações caseiras do banheiro sujo e logo entrou no cubículo de pisos brancos para derramar sua ânsia física da urina e da vontade de estar em casa. O marido estava incomodado com a situação, porém jamais pensou em reclamar, pois foi ele quem teve a ideia de entrar num ônibus qualquer e seguir viagem para Itatinga. Foram quase três horas de viagem e ele, nesse tempo, conseguiu convencer a esposa que seria curioso descer numa cidade pequena, desdobrar suas esquinas e depois dormir num lugarzinho aconchegante. No fundo, lá fundo de sua mente, quase se certificou haver hotéis em Itatinga, mas começou a se preocupar quando viu as lojinhas fecharem suas portas e nenhum rastro de algum lugar decente para deitar a cachola.
Enquanto pedia uma coxinha de frango, viu a esposa sair do banheiro, desajeitada com o vestido e com o lugar. Ela passou por ele, parou na porta do Vintém e acendeu um cigarro. Ele detestava quando ela fumava e lembrou da promessa em parar, mas ali, noite, num boteco, não quis incomodá-la ou não quis incomodar a si mesmo.
Os passos dos dois estavam cansados e quando pensaram ir para a rodoviária e pular no próximo ônibus de volta para a cidade, viram escrito numa placa de madeira em frente a um sobrado: ‘Quartos disponíveis’
Sem pensar, o marido bateu palmas e o som delas ecoou no quintal, que no escuro parecia pequeno, mas o som provou o contrário. Do fundo, de bermudas jeans e chinelos, saiu um mulato, magro e de sorriso largo.

- Boa noite, viajantes, saiu da boca do mulato.

- Procuramos um quarto para dois, dessa vez a esposa, meiga e firme.

- Esqueci de tirar a placa, desculpem-me, não há mais quartos vagos! Todos estão ocupados.

E emendando a fala, disse que em um estava uma mãe com a filha adulta, noutro, dois jovens estudantes, no fundo uma mulher e seu amante e no último um padre velho e ranzinza. A mulher interviu dizendo que iriam embora pela manhã e tentou ressuscitar no mulato a lembrança de outro possível quarto vago. O mulato pensou e agora se podia ver seu cavanhaque, mas não todo seu rosto. Caminhou lentamente e continuou sua explicação:

- Atrás da minha casa tem um lago, um lindo lago!

E novamente emendando a fala, disse que cobrava quantias diferentes para cada hóspede de sua casa. O marido levantou o pescoço para notar se realmente aquele sobrado possuía tamanho para abrigar umas dez ou quinze pessoas, e no escuro mais escuro da noite, percebeu que realmente havia um oco, um vazio atrás do terreno e ali podia mesmo ter um lago. O escuro não o deixou notar nada. Apenas supôs.
Voltou a prestar atenção no menino. Agora explicava que cada janela de sua casa tinha uma vista diferente para o lago e por isso cobrava mais caro para as vistas mais privilegiadas.
A mulher interviu novamente e agora, já sem paciência, agradeceu e deu as costas para o jeans e os chinelos de cavanhaque. O marido prestava atenção na conversa e por um instante, um instante bem miúdo, imaginou o lago que podia enfeitar a varanda daquela casa. E logo atropelou esse pensamento provocante com outro pensamento, mais instigante ainda, de como seria ter em casa, um lago. Um maravilhoso lago, mas logo estava sendo puxado pela mulher, que não imaginava lago, nem maravilhoso, nem nada. O homem, ainda atento, mas lutando para não contrariar a mulher, ouviu a voz do menino atrás do portão:

- Tem um quarto... Com vista para o céu, e seu rosto se iluminou.

Parte III

Esta última fala foi um motivo, ou mais um motivo, para causar na mulher o desejo de estar em casa e poder degolar o marido que outrora a convenceu ser ‘interessante’ essa viagem para uma cidade desconhecida e pequena. A característica pequena, nas palavras do marido, soava como um adjetivo, uma qualidade e quase que inconsciente, essa sensação agradável na palavra pequena, transmitiu à esposa uma curiosidade de estar nessa cidade, pequena. Esse encantamento que o marido tinha causado nela há algumas horas, era o mesmo que aquele cavanhaque de rosto iluminado estava causando em seu marido, agora. Ainda mais pelas circunstâncias do momento, de não ter onde passar a noite e descansar. Embora a cidade não parecesse oferecer perigo, não quis arriscar e ficar ali discutindo se ficaria ou não num quarto “com vista para o céu”, soltou essas palavras quase que remedando seu autor.
Ficou ainda mais nervosa quando mensurou a ousadia de um molambo em oferecer um quarto com vista para o céu. O que não era comum. Ofereciam-se quartos com vista para o mar, ou para montanhas, campos verdes e vastas ramagens de flores, mas para o céu? E por mais excêntrico que fosse, poderia ter vista para um abandonado campo de concentração, de antigas guerras, ou mesmo o simples lago atrás da casa, que ele jurava existir. Quem queria ver o céu? Podia vê-lo dali de onde estava e não precisava pagar estadia num quarto para ver nuvens e possivelmente um pássaro voando entre elas.

- Vamos passar a noite no quarto! Disse o marido.

A mulher não acreditou nas palavras dele e o estranhou por um instante. O menino retirou a placa do portão e colocou os chinelos na calçada, enquanto o marido já abria a carteira para acertar a noitada no quarto com vista para o céu.
Sem poder esbravejar mais, pois o marido já estava inteiro dentro da casa, a mulher esperou entrarem no quarto para assim finalmente degolar o marido, com palavras e juramentos de separação. Sabia que não era capaz, mas naquele momento era. O menino não pegou o dinheiro ainda e ocupou-se com as malas dos dois. Foi a frente deles e explicava cauteloso sobre o quarto.

- É um quarto com apenas um colchão, de solteiro. Terão que dormir apertados. Se for para apenas dormir, não precisarão de mais nada.

A mulher quis falar, mas apenas um grunhido oco saiu de sua boca, como desabafo misturado com raiva. Passaram por um corredor comprido e novos quartos iam surgindo conforme adentravam a casa, que se revelava maior que suas estruturas exteriores. A porta de um dos quartos estava semi-aberta e a esposa pôde ver um velho sentado aos pés da cama recitando o terço. Viu a janela e o breu fora dela.
O menino parou ante um quarto no fundo do corredor. Pegou uma única chave pendurada ao lado da porta, num desses ganchos improvisados e a abriu com apenas um toque. No quarto, escuridão. O menino entrou, sumiu lá dentro e ao acender a luz, o quarto revelou-se miúdo e com um esqueleto de cavanhaque e chinelos, no centro dele.

- Este é o quarto, apresentou o esqueleto, movendo satisfeito o braço direito.

Era miúdo mesmo, pequeno a tal ponto de, o menino sair para que os dois pudessem entrar. A mulher entrou e com uma volta ao redor de si mesma, viu o quarto inteiro e depois a cara do marido, encarando o assoalho, com mais medo dela do que de dormir naquele chão frio. O menino disse que no outro dia, pela manhã, acertariam a quantia da pernoite e desejou um bom sono aos dois. Antes de sair recomendou:

- Acordem antes de o sol nascer! Sei que estão cansados, mas bem cedo, abram a janela e observem o céu.

E saiu novamente satisfeito com o aluguel daquele quarto. O marido fechou a porta e nem sequer olhou para a mulher. Havia cobertores e apenas um travesseiro sobre o colchão. O homem tirou os sapatos e arrumou as malas no canto do quarto, ao par do colchão. Ela chorou e não conseguiu degolá-lo.
Em pouco tempo, ambos estavam deitados e abraçados no colchão que incrivelmente os abrigou bem, mesmo eles dormindo frente a frente num colchão único, de gente solteira. A mulher, agora mais calma, lembrou-se dum trecho de um livro que lera na faculdade, cujo escritor português narrava a história de um casal que embarcou no mar em busca de uma ilha desconhecida e acabaram esquecendo-se de cotar o céu como fonte de perigo para suas jornadas. Lembraram do mar e esqueceram-se do céu. Logo refletiu como os poetas e escritores dão valor ao céu que está sobre nossas cabeças, todos os dias, mas que nunca, ou quase nunca, ninguém pára para admirá-lo, ou pensar sobre ele. Não era poeta e nem pretendia ser, mas nesse momento o céu aguçou sua vontade de encará-lo. O céu, aquele mesmo de sempre, lá em cima, que se podia ver sem pagar.
Reparou que o marido caíra no sono e já dormia. Foi até a janela e com os dedos miúdos como o quarto, girou a pequena manivela que separava seus olhos da vista do céu.
Escuridão foi o que viu e dessa vez ninguém estava ali para acendê-lo como fizera o esqueleto há pouco, com o quarto. Lembrou do lago e tentou vê-lo também. Um fardo de frio tocou seu peito e entrou no quartinho. Novamente olhou para cima e nem uma estrela sequer encontrou.
Entristeceu-se por, a pouco rejeitar a vista para o céu e preferir ver o que se podia tocar, como as flores ou o mar. Neste momento, entendeu um pouco sua alma de poeta e algumas palavras do menino magro, de rosto iluminado, que falava tão bondoso, dessa tal vista.
Fechou a janela e ansiosamente foi se deitar para poder dormir e no outro dia esperar a aurora e novamente poder ver o céu.

FIM

3 comentários:

  1. Às vezes é preciso conhecermos a escuridão para valorizarmos a luz.
    Muito bom! Taí um texto que dosa bem a simplicidade com sofisticação (e o que poderia ser mais sofisticado que o simples?). Cheio daquela poesia que nos toca e faz com que olhemos para vida como um poeta: vendo a beleza que emerge nos pequenos detalhes.
    Esperemos a aurora...

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  2. A aurora é um dos mais belos momentos (diários) que não percebemos. Ia tentar falar, ou descrevê-la, mas desisti. Obrigado pelo comentário.

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  3. Eu não tenho um comentário tão poético quanto o da menina ali de cima, mas só queria deixar registrado que li o texto e gostei muito! Parabéns, Daniel!
    Vê se aparece no trem... Bjos!

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