quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Coletivo

Sentou. Conseguiu sentar e regozijou-se por apertar o passo e dar uns empurrãozinhos enquanto entrava naquele coletivo. Empurrões pequenos, que podia subtender-se que outros a tivessem empurrado antes. Suspirou e soltou pesadamente o ar. Arrumou o cabelo -, mania de mulher, ajeitou a bolsa no colo e jogou os pés entrelaçados para baixo do banco.
Seu olhar descuidado mirou a mão de um homem, que tinha a unha do dedão deveras enferrujada, emputrecida, feia. Voltou o olhar para o chão e novamente apertou a bolsa. Sentiu a garrafa de água, vazia, fazer volume dentro da bolsa. Ficou assim durante alguns minutos e o pensamento voou ao trabalho, que precisa de novas rotinas, um pouso no curso que pensa em fazer, no Dom Casmurro que precisa terminar de ler. Ouvia os murmúrios de conversas desinteressadas, o balançar do ônibus e o reflexo dos ferros repletos de mãos cansadas. As mãos dizem muito de alguém.
Novamente, seu olhar sem cuidados, saiu do vão enternecido de efêmeras memórias e viu, sem querer, um semblante conhecido entre as tantas feições daquela tarde pós trabalho. Era seu amor, ou seu amor do passado, ou que deveria estar e ser do passado, ou que nada de amor, ou... Baixou a cabeça repentinamente enquanto sentiu um frio descer da nuca para a espinha.
O homem da unha enferrujada, emputrecida, feia, mirou seu susto. Ela viu, segurando num desses ferros de reflexos, um dos poucos que amou durante sua vida. O coração acelerou, ficou desajeitada no banco, enquanto sua mente trazia como numa roleta russa, ele beijando-a no parque, ela apenas de calcinha sobre o corpo dele, a cesta de doces, os chinelos nos pés arredondados dele, o curso que fazia na faculdade e que já tinha terminado. Sua boa memória a irritou um pouco.
Estava bonito, apesar do cansaço e da barba, estava bonito. Pelo pouco que conseguiu olhar sem que ele a percebesse ali. Sua nuca inclinou-se tanto a ponto do queixo encostar no peito. Percebeu isso quando o ônibus pulou e a cabeça deu um tranco para cima e depois para baixo. Sentiu dor, mas não sentiu.
A mente agora aterrissou e pousou num campo seco, num deserto onde não havia mais parque nem chinelos. Era como se, um mar de terra a engolisse e ela não pudesse saber onde está. Ao mesmo tempo, neste deserto, tinha flores e flores coloridas, mas com um cheiro insuportável. Os olhos eram agradados pela beleza e o olfato invadido pela sensação de envenenamento.
Estranhou. Ele nunca pegava ônibus, mas imaginou que mais uma vez estava sem carro, visto pela última vez, quando as rodas travaram e isso serviu de pretexto para que os dois viessem abraçados no banco de trás do coletivo. Coletivo este, que agora leva ambos, ele e ela e que assiste o destino sorrir ao ver os dois corações dentro de um mesmo espaço, com outras pessoas sem poderem se amar.
Deixou o cabelo cair sobre o ombro e cobrir parte de seu rosto, para que, este, fosse uma incógnita para aquele que um dia ela amou e sorriu para revelar toda sua beleza.

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