sábado, 17 de dezembro de 2011

Eu posso voar...

...foi o que o menino disse enquanto pintava, dias após começar no segundo ano do primário. De calças ralas, blusa surrada e pés sujos num chinelo de pano, continuava pintando a casa-sapato.
Tia Nininha sorriu ao ouvir estas palavras, que soaram de maneira doce, desse menino que vira há algumas horas brincar lá fora, no pátio. A moça, recém-formada no magistério, lembrou das aulas de psicologia aplicada à educação e sem titubear lançou:
- e como aprendeu?
- A voar? perguntou, quase interrompendo Nininha
- Sim; a voar
- Não disse que sabia
Fingindo esquecer a colocação, desviou o olhar; com um sorriso mais simpático que verdadeiro, pegou na mão do menino e incentivou-o a entreter-se com sua atividade e com outros pensamentos.
- Vai, pinta!
Outro aluno pegou um lápis colorido e retomou sua obra. Antes, ouvia a conversa da professora com o menino.
Do desenho, o cheiro do álcool de mimeógrafo agradava a professora nova. Nininha sentiu os joelhos estalarem. Soltou um 'uff' ao esticar as pernas e levantar. Viu Sandra, linda, de pele parecida com cera, moldada cuidadosamente com a luz do fogo e mãos cautelosas. Segurava três lápis coloridos. Um verde, outro azul bem claro e um rosa. A mão esquerda coloria o sapato em forma de casa, de laranja. Apesar da cor forte, a menina sabia a força a ser aplicada no desenho, fazendo com que a pintura se tornasse suave.
- Lindo, Sandrinha
- É da cor da minha casa, fessorinha
Como as crianças são cheias de atenção, pensou Nininha. Refletia o quanto esses fatos, de trabalhar e perceber os pequenos, a impulsionaram em sua decisão. Talvez, possa ser de forma inconsciente, mas de alguma maneira, que o que já está feito, serve de modelo a ser seguido por quem chega mais tarde.
Ao mesmo tempo, ao pensar nessas protuberâncias, remeteu também toda sua reflexão ao curso de psico-aplicada e a ênfase na educação, que seria completa somente com essas trocas patéticas nas salas de aula. Engrandeceu-se rapidamente e pousou as mãos nos cabelos da Sandra, que retribuiu com um olhar branquinho.
Apesar de ser uma quinta-feira, de inverno, o dia estava quente.
- Terminei professora! Disse Sandra.
Indo até a menina, Nininha perguntou quem mais havia terminado. Ouviu uma negativa em coro. Não apressou-os.
- Quero todos bem bonitões
- O meu está lindo professora. Bonitão, disse a menina prodígio. E realmente estava. A pintura da menina estava demasiadamente enfeitada e com uma coloração em degrade. As cores eram o chamariz da casa, do desenho e nenhum retoque estava faltando.
- professora! Era o menino que sabia voar – terminei!
E entregou o papel com a casa-sapato, pintada em tons de cores ocres.


Segurando com o braço um calhamaço de papeis e abrindo a porta do apartamento com outra mão, Nininha entrou em casa. Nina, por si. Usava o diminutivo apenas com os alunos do primeiro grau e limitava-se a Nina com amigos mais próximos ou com parentes menos conhecidos.
Morava com mais duas amigas, colegas diria. Repartiam o aluguel e algumas angústias. Após despejar as folhas desenhadas sobre a mesa, jogou a bolsa na mesinha de centro de sala e deitou parte do corpo no braço do sofá, coisa que sua mãe odiaria se pudesse vê-la e dar represálias.
Eram tantos desenhos, tantas casas-sapato para olhar e elogiar um a um. Os pequenuchos gostavam de ver a caneta vermelha dando-lhes confiança de um bom trabalho e algumas florzinhas desenhadas junto às letras. Nininha gosta, Nininha quer ver bonito.
A noite estava quente. Olhou pela janela e viu ao longe a torre da Paulista brilhar em cores vivas e cintilar uma a uma, para cima para baixo. Desde que veio de Taubaté, sentia-se importante ao olhar para o centrão e sentir-se parte dele. Embora trabalhasse em região metropolitana, afastada do centro, fazia o mais importante dessa história de superação que era morar ali. Ter uma casa no terceiro andar do Paraíso que permitisse ver a cidade acesa e livre para ela.
Uma de suas conquistas interiores era ter um namorado, coisa que até agora não conseguiu conquistar nesta grande metrópole de galinhas urbanas. Era dessas que inconscientemente acreditava que o homem que a faria feliz viria depois de uma catraca eletrônica e um dia cheio. Sentaria ao teu lado no metrô, roçaria a perna peluda na sua, ambas escondidas em calças jeans. Jamais considerou besteira essas particularidades amorosas que a faziam ensaiar um encontro platônico que talvez nunca conseguisse concretizar.
Durou apenas alguns segundos, o olhar parado para fora; logo Nina virou o dorso cansado e estalou os dedos das mãos inclinando-as para trás. Estafada estava, mas ainda queria sentar e viajar no desenho dos alunos da tarde.
As crianças! Ah, lembrou das crianças e rememorou a inocência contida naqueles aluninhos tão cheios de problemas familiares banais. Crianças da cidade, com tantos compromissos e aulas de inglês, mas que na sala de aula deixavam transparecer um pouco do que realmente ainda são.
Pegou um desenho nas mãos, o primeiro do monte de sulfites. A casa alegre era verde, com plantas pintadas até o céu. Galhos que se uniam aos pássaros traçados com giz de cera preto, enormes, com duas asas. Os pássaros eram asas; o desenho era a visão daquela criança; Henrique era o que estava escrito no verso da folha.
Pegou outro. A casa era preta. Preta e borrada em traços longos feitos com lápis esgarçados pela força do autor. Outra casa, rosa agora, com bordas.
A quinta casa era marrom. O quintal cinza e as nuvens beges. Era do menino. No canto da folha, um pássaro, dando outros horizontes para a casa em forma de bota. O detalhe era que o pássaro estava morto, embora estivesse em pé com um buraco enorme que abria seu peito. As asas, escancaradas, pareciam estar diante de um predador faminto.
O pássaro estava morto,  embora estivesse com as asas abertas e ereto em seu corpo de ave rapina.

continua...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Dia 5

Foi o dia do meu aniversário. Quer dizer, é ainda, sempre será. Pode ser que um dia quando todos os meus amigos e antepassados estiverem ultrapassados, essa data possa ser esquecida quando configurada à mim. Porém, pelo que consta, são minhas bodas anuais individuais enquanto eu exista ou até que alguém, depois de eu ter virado pó, se lembre de mim.
No caso, ontem, vinte e seis largas primaveras; passei um dia corrido, mas com pequenos presentes ocultos. Não teve parabéns, mas teve bolo, de abacaxi. Fui trabalhar e consegui evitar que mil dólares fossem descontados da minha folha de pagamento. Estive fora de casa, por motivos maiores, porém comemorei o dia com pessoas no trem, táxi e numa sala técnica de produtos eletrônicos.
Muita gente me parabenizou, ganhei abraços de gente nova, amigos recentes e pessoas importantes em sentimento. Mensagens escritas pelo celular, telefonemas, presença e colegas que sabem do seu aniversário pela rede social, bombou.
Agrego meu aniversário ao Natal, uma data que eu considero deveras bonita, enfeitada e cheia de reciprocidades gratuitas. É engraçado pois, sempre nessa data, no comecinho de dezembro as ruas estão ainda sendo iluminadas pelas luzinhas pisca e meu aniversário me traz um pouco desse clima que se aloja nas ruas, começando a se iluminar. Eu não me imagino fazendo aniversário no meio do ano, sem ver essas luzes que de alguma maneira anseiam por melhoras. Já me acostumei com aniversário pré-natal.
Quando eu tinha nove, dez, catorze anos, essa já era a data das férias. Sempre aplicado e nerd cdf, saía em férias antes dos outros da sala e viajava para o interior da cidade. Lá ficava até fevereiro e sempre chorava quando tinha que voltar. Na ida eu também chorava, mas depois não queria ver os prédios daqui novamente. Nessa data, de dia meu, sempre me coloco à refletir, me empolgar com novos planos, correr nu nas ruas, ter um novo amor; em contraponto, problemas familiares, conflitos existenciais, retórica não convincente me trazem lembranças nem tão docinhas. Faço uma análise pessoal e vejo que estou perto dos trinta e nem um livro publiquei ainda. Antecipadamente me desespero, mas logo percebo que há tempo para muita coisa ainda. Inclusive para isso.
Sempre olho no espelho. Sempre. Não é um ritual, mas guardo um pouco da minha imagem, de como estou com certa idade. Coisas de homem. No ano passado, tive um aniversário de rei. Participei de um evento que reuniu centenas de jovens e no fim do evento, TODOS cantaram parabéns e gritaram por eu fazer vinte e cinco anos. Porém, o que mais me tocou, foi chegar em casa e ter amigos de anos, de cuecas e banhos me esperando com um bolinho e uma vela micha sobre ele. Chorei.
Nasci às 10h40 da manhã e nesse horário sempre me volto para o sol. Eu gosto de ficar quieto, de bruços sobre essa data minha, só percebendo quem vai lembrar; quem vai dizer que a saga de Sagitário está aberta e lembrar 'Pô o Dani faz aniversário esse mês'. É lindo e gratificante isso. Tenho marcado várias datas de aniversário na minha cabeça. De amigos, família e curiosamente de pessoas que pouco tenho contato, mas que por algum motivo fixou-me a data desse nascimento alheio. Curioso também são as pessoas que fazem aniversário no mesmo dia que eu. Elas sempre lembram e, me lembram, do meu aniversário.
Não sou muito ligado em astrologia, embora eu identifique em outros sagitarianos, pontos de personalidade idênticos aos meus. É comum chover no dia 5 de dezembro. Minha mãe me contou que quando nasci, choveu e posso afirmar que tenho grande sensibilidade com a chuva. Serena, torrencial, firme ou garoa, ela me encanta.
Confesso que essa etapa no dia do aniversário, de atender telefonemas, ler milhares de mensagens de paz, saúde e mimimi me cansam um pouco, porém resgatam que há pessoas, há quem olha, te vê, lembra e tira um pouco do seu tempo para ligar, enviar mensagem e... lembrar de você apenas.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A sala de Deus e o Diabo


Deus e o Diabo moram em uma mesma sala. Estreita, pequena, mas que os comporta inteiramente em suas necessidades.
Deus e o Diabo moram em uma mesma sala, compartilhando suas vidas numa convivência fraterna, mesmo distante em imaginários e pragmatismos universais. Gostam dos mesmos livros, com pequenas divergências entre autores; Usam dos mesmos talheres e opinam diariamente sobre a cor da parede da sala, com um tom amarelado fosco, com mesclas azuis bem claras que vão do chão até parte do teto, coberto de escamas. É assim a parede da sala onde mora Deus e o Diabo.
Tudo se tem na sala e tudo se encontra lá; e aí que se dão suas virtudes em serem, ambos, cultuados por toda a humanidade de fé.
De lá, da sala estreita, eles notam os humanos, manipulam os seus dias e ora ou outra, trocam gracejos sobre as peripécias de alguns pouco experientes.
Da janela frontal, próximo ao candelabro de cera, se vê um jardim florido, com crisântemos e margaridas, onde as estações revezam entre os meses. Deus escolhe o inverno e o Diabo anuncia o verão. Na primavera, o Diabo prepara as flores para que Deus possa murchá-las e derrubá-las pelo gramado dando-as outro destino. Vida.
Ambos moram na sala, dormem na sala e comem na sala. Preferem alimentos ricos em fibras e que não ataque o intestino. Evitam gorduras e condimentos.
Diariamente, ajudam um ao outro no trabalho diário e sempre que possível, lavam o chão com água e sabão.
As telas coloridas da sala reportam ao cotidiano dos homens os seus atributos diários. Deus prefere os sinais, os passos e a fala. O Diabo, o sorriso, o olhar e o pensamento. Ambos se completam, trocam repentinamente de nome e gostam de enganar os que se julgam inteligentes. Respeitam os sábios, mas não os ignoram em suas artimanhas.
Deus e o Diabo moram em uma mesma sala. Ambos não têm sobrenome e há de usarem muitos nomes quando se fadigam de seus arautos pessoais. Cada um tem seus amigos e ora ou outra, numa tarde de domingo ou terça, aparecem na sala quase sempre sem muitas expectativas. Tomam uma cerveja, falam de Sócrates, ciência e sexo. Acabam por haver amigos em comum, muito dispersos, de longa data.
Moram no atraso, na janela entreaberta e nos parênteses familiares. Trabalham duro nas intrigas de família, no nascimento da criança e nas salas de aula do ensino médio.
Um não vive sem o outro. Inventaram o amor, o ódio e a saudade. Alguns desses foram tidos como conseqüências rudimentares de ausência, mas vivem a experimentar outros diversos atos intrínsecos da alma.
Deus e o Diabo moram em uma mesma sala. Assistem seriados, invejam os autores e quase nunca saem para se divertir.
Fazem com que os homens que buscam de seus santos refúgios, imaginem entender um pouco da vida de ambos, que moram em um mesmo lugar e se alargam de dar atenção aos que nele se refugiam. Não é de costume misturar trabalho e vida particular.
Seus vizinhos teimam em taxá-los. Em dizer que um é mau e outro bom. Ambos, Deus e o Diabo são amigos e só dão-se a existir quando é lhes dado permissão. Não deixam vir às margens da virtude quem é quem nessa relação.
Por ora aparecem calúnias a respeito de Deus e o Diabo. Assuntos absurdos, de ordem categórica e audaz. Eles não respondem às essas miudezas ignorantes e continuam pagando suas contas.
A casa tem mais cômodos, mas os dois dividem suas diferentes manias numa mesma sala. Uns dizem que Deus mora em cima e o Diabo em baixo. A sala é o lugar onde moram e ainda não há interesse em mudar.

domingo, 20 de novembro de 2011

Todos querem ser Britney Spears

Era no quintal de casa, na sala, com fitas VHS. A minha adolescência foi forrada de pop americano, de N’Sync, Aguilera, BSB e Britney Spears, mas com essa última tive um caso de amor.
Apesar dos pesares, sempre gostei das lôras: Xuxa, Eliana, Britney. Era difícil assumir que gostava dela. Na escola sofria o que hoje tacham de bullying, mas gostava mesmo dela e não era por modinha. Era mais forte do que eu. O primeiro videoclipe, eu vi em pedaços num programa da Xuxa e depois comecei uma verdadeira saga para encontrá-lo na MTV. Ficava acordado até tarde, gravava programas inteiros e nada de passarem o maldito “Baby... one more time”. Passavam o novo clipe, da praia, mas esse eu não queria, embora essa foi a primeira coreografia que eu me meti a aprender, sozinho. Era estranho, pois até então eu gostava de artistas nacionais (como “É o tchan!”) e dançava nas festinhas de família. E o sinal de estranhamento apitava, nos outros.
Eu tinha quinze anos, não tinha internet, mas tinha a MTV, que era o santo canal que pegava no 32 sintonizado pelo vídeo cassete. Lembro-me de ter aprendido isso na escola que até então eu imaginava que a emetevê era só para quem tinha o luxo das TV’s por assinatura. Ah, tinha um amigo, o Galvano, que compartilhava comigo das aparições de Britney na tevê e no bulliyng supranatural da escola. (Quem mandou gostar de pop!?)
Consegui o clipe, mas metade dele, que eu gravei quando passou no TOP 10 E.U.A, e passava aos finais de semana. Quando vi a apresentadora anunciar o primeiro lugar, tive tempo de pular do sofá, procurar o VHS na pilha de fitas, enfiar no vídeo cassete, encontrar um lugar para gravar, pois tinha outros clipes lá e eu não podia gravar por cima, apertar o REC, que demorava uns infindáveis três segundos para obedecer. O vídeo cassete fazia um barulho, fazia outro da fita rodando e aí aparecia a bolinha vermelha piscando no visor. Gravei da parte que ela sai do corredor da escola e depois dali via essa metade clipe todo dia. Por telefone, já contava para Galvano que consegui o clipe. Trocávamos longos telefonemas quando ela aparecia ou quando anunciavam que a princesinha iria cortar o cabelo ou gravar um novo clipe. Novo clipe? Meu Deus! Quando o anúncio era esse, tudo tinha um novo sentido na vida. Lembro quando estreou “(You drive me) Crazy” e nós comentávamos coreografia, música remixada para o clipe e cabelo. Compramos o CD, que tinha uma rosa estampada nele. Tudo parecia ser para o público feminino e/ou para os afeminados. Ou para os dois.
O fato era: Britney já tinha entrado em casa e dançado comigo na sala de casa. Era minha melhor amiga, aquela que eu achava perfeita e ai de quem falasse algo contra. Os shows que ela apresentava, remixados e com coreografias puta-foda. Os tempos mudaram.
Eu JAMAIS poderia dizer na escola que gostava de Britney. Tinha gente que me olhava com repulsa quando eu dizia que ela era linda, que eu adorava as músicas e que queria dançar igual. O povo ria. Ri até hoje na verdade.
Além do Galvano, tinha o Lopes, que foi outro dos meus amigos que eu conheci quando toquei “Oops!... I did it again” numa festa de quinze anos e o vi correr pro meio do quintal-pista e perguntar: “Nossa, você gosta?” e nasceu uma amizade que durou anos. Um dia subindo a rua de casa, ele me disse que conheceu um pessoal de São Paulo que dançava Britney. Um grupo de Guarulhos, longe pácaralho. E todo sábado a gente ia para lá, quando passamos a dançar no grupo oficial de Sampão. Puta meu! Era uma realização dançar Britney. A gente dançava oops, dançava crazy e fomos sabe onde? Na MTV, dançar num programa que chamava “Em busca da fama”, que tinha o Max Fivelinha e o Levy como apresentandores. Quanta gente, quanta coreografia, quanta bichona. Dançamos num palco móvel, um grupo de oito pessoas num espaço crítico. Esse programa foi visto por T-O-D-A a escola onde eu estudava. E agora eu tive que enfrentar radicalmente xingamentos verbais entre outros insultos. Eu (tentava) me convencer que aquilo não me atingia e tinha que fazer pose para dizer que estava tudo bem. Não estava. Eu gostava mesmo dela e das músicas dela, mas o povo queria era xingar, tirar sarro, bichinhas enrustidas.
Saí do cover antigo e entrei num grupo de dança profissional, que dançavam todo tipo de pop americano e eu ensinei Britney, ‘Me against the music’. O grupo era mais maduro que o passado, porém fiquei pouco tempo nele. Deu para dançar em eventos, em cima de caminhões, em showmícios, no Porteira dos Pampas, mas percebi que era eu quem realmente tinha mudado. Meio Sandy sabe?
Os tempos mudaram, novamente. Britney começou uma série de escândalos raspando a cabeça, tendo filhos e sendo vista sem calcinha. Confesso que isso não me afetou, porém eu já com meus vinte e poucos comecei me interessar por Norah, Yael, Corinne, sem forçar. Aos poucos fui esquecendo Britney. Hoje, suas músicas não têm o mesmo impacto no meu set-list, embora eu ainda ouça as nostálgicas no meu quarto.
Britney também mudou. Hoje não dança mais como antes e como sempre aceitei seus playbacks, dançando era o que importava. Percebo que hoje ela é uma artista cansada, do tipo ‘não quero mais ser famosa’ porém para os Galvanos, Pires e Lopes de hoje ela ta linda, canta muito e ahazza no palco. Esses dias comentando com Galvano na rede social, que faz séculos que não o vejo, ele me disse que ia ao show em São Paulo, pois eu ‘tava ligado’ o quanto ela fez parte de sua adolescência. E eu sei mesmo. Isso é o que importa.
Na época do Rock In Rio, eu ouvi a transmissão ao vivo pela Jovem Pan e gravei em fita cassete. Me dava um frio na barriga saber que eu não estava lá. Minha mãe não deixou. Eu conheço um menino do bairro, que ADORA a Britney e tem seus dezesseis anos. Os amigos dizem que ele sou eu, uma espécie de cria, meu filho. Quando olho para ele, com todo o brilho no olhar por uma artista já meio cansada, percebo que para ele não, ela é a mesma Britney de antes. Ela ta em forma, no auge, linda como sempre. São outros olhos que vêem isso e aí ta o segredo todo.
Fui ao show em São Paulo, claro, mas vi uma loira meio insatisfeita com tudo. Fiz até uma matéria sobre e alguns fãs criticaram e defenderam-a com unhas e purpurina. Lá, no show, vi atrás de mim um menino magrinho, com uma câmera na mão. Chorava e cantava todas, inclusive as de dez anos atrás e meu senso crítico nem ousou condená-lo, pois toda magia que me cercava, o cerca hoje além de outros milhares por aí.
Todos temos que ter um ídolo. Falando hoje, do jeito que falo sobre Britney Spears, parece que nunca gostei, mas antes de muito fã de quinze hoje, eu fui um fã com mais de vinte e cinco.
É engraçado, falar de Britney, adolescência e de hoje. Tudo muda bastante.

sábado, 22 de outubro de 2011

Dois Filhos

Bem de madrugada, um deles resolveu ir embora. Não de uma hora para outra, pois já tinha antecipado que queria viver de bens um pouco longe dali, onde crescera.
Essa história já foi contada um dia, em forma de parábola e justamente por se encaixar no perfil de um mais novo e conhecer a história, o garoto pediu um pouco de dinheiro ao pai e juntando com o que tinha guardado, partiu.
Foi embora.
Como último zelo, o pai acordou de madrugada e preparou um café para o moço e o deu um beijo na testa.
O moço garantiu que já tinha um emprego na cidade e o pai confiou. Deixou. Aceitou aquela partida como um fardo que a vida iria, um dia, colocar sobre seus ombros. Pensou agüentar conseqüentemente, balbuciou contrariedades em alguns momentos, mas confiou nos dezenove anos daquele moço queimado de sol, vendo que o semblante já tinha sumido na colina.
Aquela colina era caminho de trabalho e as pegadas do filho na areia ficariam ali por apenas alguns segundos.
O filho foi e o pai, ficou.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O Hospital 2 - História

Dê Play, deixe rolar enquanto lê o post abaixo
Cientistas estrangeiros produziram em laboratório uma droga que seria capaz de curar algumas doenças crônicas. Essa substância foi testada previamente em animais de pequeno porte e o resultado foi positivo. Alguns com lesões na coluna voltaram a andar, outros com infecções generalizadas no cérebro, apresentaram melhoras. A equipe científica americana negou que a droga pudesse curar doenças como o câncer ou até mesmo linfomas menores, porém em contraponto, o governo europeu anunciou que a droga era altamente eficaz e também permitiu que testes fossem realizados nos países. Até então essa droga não fora testada em humanos, apenas em animais como cães, gatos e em convencionais ratos de laboratório. A droga chegou ao Brasil no fim dos anos 90 e foi levada à testes em um hospital no interior do estado de São Paulo. Lá, ela seria estudada com mais afinco e possivelmente testada em animais maiores. A droga, até então benéfica em animais, foi cotada para ser aplicada em humanos, porém o governo não podia admitir que isso fosse feito, para zelar pela integridade da população local. Conta-se que um paciente em estado terminal, ofereceu-se como cobaia. A família quis intervir, mas como o homem sabia que ia morrer, ainda em sã consciência, deu o veredito e autorizou a aplicação da droga em seu corpo. Testes foram realizados e o homem que sofria com um câncer no cérebro, teve acesso a uma dose mínima da droga. A droga aplicada nele, foi aplicada com teste, porém nenhum resultado poderia ser previsto nesse caso em específico. Na noite do primeiro dia de experiência, o homem cobaia entrou em coma profundo, o que preocupou os médicos. Foi colhido sangue, saliva e vários exames foram realizados no homem, que não apresentava mais sinais vitais. No dia seguinte, foi constatado que o tumor aumentara e as chances de sobrevivência do homem seriam mínimas. Ao final do segundo, pela manhã, o homem faleceu e os testes com as drogas foram suspensos. Durante sua autópsia, o médico legista, percebeu vibrações anormais no corpo do homem. O corpo começou a tremer, sacudir os pés e os ombros. O mais estranho de tudo isso, foi que o homem, estava totalmente aberto e sem alguns órgãos. Até que, para surpresa do médico, o homem, deitado na mesa obituária, abriu os olhos. O governo da cidade resolveu interditar o Hospital Central, por denúncias que envolveriam canibalismo e mortes violentas. Conta-se na pequena cidade, que unidades secretas do governo americano pediram que O Hospital fosse lacrado de fora a fora e que todos que estivessem dentro da unidade fossem mortos lá mesmo, para não espalhar os estranhos sintomas da droga em teste. Foi organizada então a "Operação Branca", autorizada pelo governo para 'limpar' o local do incidente. Estima-se que no dia da operação, mais de cinquenta pessoas estavam no local e até hoje não se sabe onde nem o que aconteceu com essas pessoas, que jamais saíram do hospital. Nem mesmo os agentes que realizavam a operação conseguiram sair. O governo não se pronunciou sobre o caso e abandonou o edifício. O Hospital foi aberto novamente quase dez anos depois, exatamente no dia 26 de fevereiro de 2011, para vistoria de autoridades no local. Alguns moradores da cidadezinha foram até O Hospital interditado e relataram cenas horríveis e até fantasiosas sobre o local. O Hospital será reaberto no dia 24 de setembro de 2001 e o governo promete que vai esclarecer fatos como o desaparecimento de médicos, pacientes e agentes federais.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Estadão – o fim das impressões

Sim, eu saí do Estadão. A história é longa, mas divertida. Diria estressante também, mas com um bom enredo. Com vilões, mocinhos e bruxas.
Para quem não leu os meus primeiros posts sobre os primeiros trinta dias ou sobre o primeiro ano pode aproveitar e ler antes de continuar, mas se não interessar, continue lendo sem clicar em nada.
Não dava mais – esse é meu jargão quando alguém me pergunta o motivo da minha saída de uma empresa de comunicação como o Big Estate. Antes de começar a explicar a mesma história sobre minha saída, inicio com “Não dava mais”. O ciclo se fechou antecipadamente, na verdade por algumas situações que eu julgo que poderiam (e não poderiam) serem remediadas.
Mudou muita coisa lá. Foram muitas demissões, mudanças de cargo, hierarquias atualizadas e gente ganhando menos e trabalhando bem mais. Saíram gestores grandes, editores velhos-de-casa e até novatos que não tiveram tempo de feder por lá.
Eu vi toda essa mudança de gestão, todo esse circo de números humanos que eram despejados para fora daquela imensa redação. Meu (ex)chefe foi junto e deixou a TV que ele criou para outros criarem. Outra no caso. E assim tudo foi sendo deixado.
Para quem não sabe, eu não era efetivado, era apenas “colaborador”, palavra essa que eu passei a detestar desde quando comecei a trabalhar como um. Em nada me diferenciava dos outros funcionários, só na contratação. Horários loucos e madrugadas acordado era o que me aproximava dos repórteres uni-duni-tê. Outra coisa que existia lá eram essas denominações jornalísticas. Hierarquia de ‘repórter um, dois, três, quatro, sub-editor, editor, editor-chefe...’ e por aí vai. Na TV, seriamos sempre técnicos, nada de ideias mirabolantes.
Creio que esse fator técnico foi o que mais me motivou a sair. Não poder criar, palpitar. Era engolido pelo mar de jornalistas que visavam conteúdo de impresso no vídeo. E para explicar que vídeo não é papel? Isso rende outro post.
Na parte que me cabia, as coisas foram ficando insustentáveis. Muito trabalho para uma equipe que se reduzia e era mais e mais pressionada a produzir conteúdo sem conteúdo. Vídeos bem elaborados, enquadramentos pensados, foco, primeiro e segundo planos, tudo isso era regalia desnecessária.
Matérias pedidas, encomendadas, notícias quentes apenas naquele momento. Tudo era vídeo. Vídeo bunda, que não passava de dez ou doze cliques. Nessas horas me lembrava dos vídeos de carro que eu fazia e que viravam comentário na redação, além dos cinqüenta e tantos mil cliques que o vídeo tinha no portal do msn. Ora ou outra eu tentava respirar produzindo um vídeo mais elaborado, com planos diferentes, tentando desafogar essa imensidão de notícias populares. Até produzi com alguns amigos, um especial sobre São Paulo Assombrada. Não foi publicado.
Falavam em HD, HD e tudo foi indo abaixo em alta definição. Eu comecei estranhar muito a gestão atual e esse foi o motivo mor para minha saída.
Indo direto ao clímax, numa quinta cinzenta, cheguei à redação decidido ir embora. E fui mesmo. Passei no RH, na Sônia secretária e anunciei que “Não dava mais”. Fiz toda a burocracia na salinha de recursos humanos mas aaanteess: pedi cinco minutos com a chefona da última sala. A sala dela ficava em frente de toda aquela enorme redação. Uma sala rebaixada, com um degrau na porta e uma parede de vidro, com uma aura de: sou foda. E devia ser mesmo, pois meus cinco minutos viraram quarenta. Lá eu vomitei toda minha insatisfação com a gestão da TV, com a falta de compromisso com o funcionário em não registrar e blá blá blá. Sei que ela me ouviu e com feição de piedade pegou na minha mão e disse: “Fica, vai ter bolo” “Fica vai melhorar, eu quero que você fique” E isso me animou e me emocionou. Não, eu não chorei, mas senti que ela me ouviu, pela primeira vez ali dentro.
Pediu que eu tirasse uma espécie de férias. Alegou que todoprofissional precisa disso, ela inclusive. Pediu para eu ficar em casa e descansar. Duas semanas. Eu não queria descansar. Queria conversar e ir embora, mas dei um voto de confiança. Resumindo: Voltei depois de uma semana e meia. Uma semana e meia de angústia imaginando o momento da volta: Eu poderia ser humilhado no meio da redação, poderia voltar vestido de mulher, ou nu ou mesmo dançar Beyoncé na mesa do editor. Eles poderiam me armar uma emboscada ou nem falar nada. Podiam me matar com uma espada de esgrima, ou me exaltar com uma estátua, por eu ter tido coragem de representar a classe ou sei lá o quê. Isso me rendeu noites acordado, discussões sozinho e muita tristeza, de verdade.
Voltei. Com poucas palavras, mas voltei. O editor me chamou na salinha usada para reuniões do iPad e disse que não precisaria mais de mim. Minha alma riu e viu como é importante ter o gostinho de mandar o caboclo embora. Eu havia pedido e me demitido uma semana antes, mas não deixaram. Quiseram que eu voltasse para pegar um pedaço do bolo. Quando voltei, saí.
Fiquei nervosotristefelizaliviadosementendercabrerolevelivre e dei um passo em falso quando sai da sala do tablet, tamanha era minha confusão. Antes de sair fiquei uns dois segundos olhando para o chão e logo quando levantei a cabeça vi as pessoas trabalhando maquinalmente e normalmente em seus computadores. Talvez correndo para fechar suas matérias e ir para casa. E para mim, aquele mundo já não fazia mais barulho.
Fui então ao cortejo fúnebre da despedida. Perguntas do bio ‘para onde você vai?’ ou ‘você pediu ou te mandaram?’ eram comuns. Além de alguns mais solícitos que anotavam meus contatos em um papel qualquer, para me indicar sei lá onde e depois me davam um abraço desejando sorte. E foi assim amigos.
Chega de carros com logotipo, quartas madrugadas e cafés com fichinha. Porém, estou aliviado, ‘não dava mais’ mesmo! Eu acho que até demorei para sair de lá. Preciso de algo melhor e portfólio/capacidade tenho para isso. Sem demagogias.
Às vezes, acho que não deveria ter voltado. Podia ter sumido, dito que não queria mais e simplesmente fazer da minha imagem um vulto que foi embora. Mas voltei e não me arrependo disso, nem que tenha sido para apenas dar meia volta, sentir o cheiro daquele papel amontoado e ir embora de vez.

domingo, 7 de agosto de 2011

Cardiologista

Fui ao cardiologista. Novo, com duas décadas e mais alguns momentos de alegria, fui ao médico do coração. Fui para ele me examinar, para sentir que meu coração esteja em estado perfeito, fora da concentração de velhas doenças de ancestrais familiares. Fora a pressão alta ou a alta identidade que ando perdendo cada dia um pouco.
Ele era um velho ancião, de cabelos grisalhos, mas nitidamente lúcido. Não era desses velhos sem humor ou de lucidez pálida. Era um médico do coração.
- Tem alguma coisa errada com meu coração, eu disse
E ele olhou e viu que minha pele não era de quarenta e sim da metade. Soltou um sorrisinho de canto de boca e perguntou meu nome. Eu disse.
- Nome bíblico, sabia?
Sim, sempre soube, desde quando minha mãe me contou. Ficou surpreso comigo ali, sentado em sua frente, me preocupando com o coração.
Imaginou que eu tivesse um histórico familiar de cardíacos, daqueles que morrem de sopetão. Até que não, eu não tinha. Apesar de uma tia distante que morreu em frente ao fogão de lenha, de infarto ligeiro. Além de cair sobre as panelas que por sorte estavam frias, morreu sozinha em casa, mas sem tanto teatro. O coração parou por uma veia grossa que resolveu estourar no intervalo da novela, que tinha título com coração. Nem sequer mencionei essa tia. Ele colocou o aparelho no meu peito, sentiu as batidas e apertou minha nuca.
- Fuma?
- Não
- Bebe?
- Smirnoff
Riu.
As demais perguntas foram também de respostas rápidas. O exame não durou tanto tempo. O máximo que fiquei foi sem camisa. Alegou que meu coração estava bem e perguntou das dores. Respirei fundo antes de responder e falar sobre elas, eu disse que as dores eram o motivo de eu estar ali. Ficou sério enquanto tirava o estetoscópio das orelhas.
- Dores? Que tipo?
- De todo tipo. Sempre vêm à noite.
Pediu para que eu explicasse melhor e de que lado era essa dor. Exemplifiquei colocando a mão direita sobre o peito e disse que não tinha momentos para senti-las, mas elas sempre vinham quando o céu escurecia e principalmente quando eu via os postes de luz se acender. Contei que as ruas ficavam vazias aos poucos e o céu bonito de estrelas e as dores vinham a partir daí. Silenciosa, quieta e quando eu percebia, todo meu peito estava cheio de dores fortes.
Perguntou se essas dores eram constantes, ao mesmo tempo em que estranhava tais dores virem sempre à noite e pelos motivos que expliquei. Postes e lua no céu não são motivos para dores no coração.
Eu insisti que são. E reais.
Puxou uma prescrição médica, uma folha branca a ser preenchida e disse que tudo isso podem ser neuroses da mente. Problemas da psique não explicados, pelo menos por ele. Nada físico ou necessariamente no miocárdio. Não pude, nem consegui contestar.
Disse meu nome bíblico e destacou a folha devidamente preenchida. Nela não continha tantas letras e nem menos carimbo de assinaturas. Havia apenas uma palavra, que era facilmente traduzida como dores e sofrimento que um dia passam.
‘Amor’ era o que estava escrito, em uma língua que eu ainda não consegui entender.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Adeus

Enquanto um deles dobrava as roupas que estavam sobre a cama, o outro, sentado na beira do sofá perguntou:

- E agora? Por que está zelando por essas roupas que você não usa faz tempo?
- Vou usá-las de novo. E vou para casa
- Aqui é a sua casa
- Não mais...

Um breve silêncio ecoou na sala, foi quebrado por um ‘hum’ do outro que se mexeu no sofá.

- Você me ama?
- Sim, e o silêncio voltou e foi quebrado novamente, sempre vou te amar... pra sempre mesmo.

Os olhares se cruzaram

- E você? Me ama?
- Sim! soou seco, mas verdadeiro.
- Por isso vou embora.
- Entendo. E já sabe para onde vai?

Deu de ombros e virou para pegar os chinelos.

- Pra casa da minha mãe

O olhar do outro estava na mesma beira onde estava sentado.

- Sua mãe? Ela está um pouco velha!
- Vou cuidar dela. Você vai me visitar?
- Sim, às quartas e sextas. Caso queira podemos marcar para sair aos sábados.
- Claro!
- Você vai me esperar?
- Sim, com bolo!

O olhar baixou enquanto a mala era fechada.

- Adeus Eduardo!
- Gosto de bolo de laranja
- Eu sei

E um beijo curto antes de sair fez com que continuassem a se amar. Com gosto de laranja.

domingo, 17 de julho de 2011

Tristeza de supermercado


Sempre achei supermercado um lugar triste. Não sei. Ou é culpa das altas prateleiras, ou das tampas de maionese amontoadas ou simplesmente a minha vida amorosa que anda tropeçando em ilusórias coincidências e enxerga tristeza até no supermercado.
É um sentimento guardado, escondido, que não fala e não age. Sentimento de solidão que desabrocha automático quando vou ao supermercado, acompanhar a mãe ou um amigo que quer comprar pão. Pão de forma.
Assim como não se deve ir ao shopping quando está solteiro, não se deve ir ao supermercado.
As filas da carne, as geladeiras frias e até as gôndolas de chocolate são tristes. Creio que deva haver uma explicação nisso tudo, por trás dessa melancolia escondida nessa ilha das flores. Mercadinhos são mais aconchegantes que os grandes magazines, mas carregam sua tristeza pertinente comumente. São tristes, solitários e quem está ali, não está.
As pessoas vão ao mercadinho de chinelos, bermuda e blusa de alça e lá passa a ser uma enorme dispensa de casa, vazia. Creio que o espírito de família ronda esses lugares e quase sempre me imagino velho, maduro, comprando pão para levar para casa e comer numa mesa forrada. Acho supermercado triste. Deve ser por isso.
Observo o teto, a cobertura metálica e tudo ali é vazio, ao contrário dos corredores de sorvete e cebolas. Ainda mais se for domingo. O mercado passa a ser um lugar quase que depressivo.
Sugeriria aos casais iniciantes que marcassem um encontro no supermercado, não sempre, mas de ora ou outra para passear entre os corredores horti-fruti e de congelados. Seria um passeio agradável e decisivo, um tanto estranho, mas que um dia, no casamento formatado, teriam que ‘passear’ obrigados por esses lugares. Um teste de futurologia amorosa, sem compromisso.
Já fui ao supermercado com mãe, amigos e amores. E sempre achei triste.

domingo, 19 de junho de 2011

O amor e a parede

Parte 1 de 1000 – e com capítulos possivelmente consequentes

Entre as regras para se encontrar o amor, há uma parede.
Conversando com alguns amigos atuais e depois de emprestar o ombro para outros em ocasiões mais antigas, tenho alguns parágrafos a perder, para falar do amor, mas não do amor efetivamente, mas de uma distância de alguns metros que separa o início ao tortuoso, e delicioso, caminho até um relacionamento a dois. Viés caricato para o amor, um itinerário afável e longínquo.
Relacionamento que se chama o outro de bebê, fala com voz enfeitada e se presenteia com ursinhos pode ser considerado uma paixonite aguda, frio na barriga que se não souber levar, estraga. Amor mesmo é mais maduro, mas os ursos fazem parte.
Ontem, um dos amigos chorou no meu ombro, disse que a tampa da sua panela estava tapando outras bocas por aí, uma boca morena. Outra flor das minhas, anteontem, reclamava dos emails encaminhados a ela pelo sujeito que foi embora e não deixou rastros de voltar, embora tenha voltado conseguinte. Hoje, teve a história das mãos que se entrelaçaram e nem sequer houve beijos para a situação se tornar mais perfumada. Mesmo que fossem beijos vagabundos, mas que houvesse beijos, pô. Não houve. Têm também as minhas lembranças, as mais doloridas dos dias de músicas dedilhadas no violão, quando eu chorei, reergui e depois caí feio de novo e ainda assim, depois me levantei cheio de ranços e ascos contra o amor. Nessas horas eu via a parede concreta, cinza, levantada em minha frente.
Tem muito a contar, não só de mim, mas de outros além, que andam com uma parede dura em sua frente, sem notar o aroma do amor atrás dela. Mas o que adianta? Mesmo com todas as provas concretas contra ou a favor do amor, ele nunca será o culpado. O culpado seremos sempre todos nós que engatilhamos regras ao que se aplica na vida, daquele tipo de ‘ligo ou não ligo?’. Uma frase sábia que certa vez ouvi durante o expediente: Tem vontade de ligar? Liga cacete!
Parece simples, mas não é. Na verdade é, mas preferimos complicar. Tem ego, medo, frio e regrinhas nesse meio. De relacionamentos antigos conturbados até àquelas que novamente retornaram às bexigas esvoaçantes desse tal sentimento. Se a uns ele se aplica em forma de fogo, outros ele nem sequer aquece. Esse é o amor.
Tem vezes que eu me canso do trabalho, dos dias e de horas perdidas em porta de balada. E tem horas que tudo o que me irrita, passa a me agradar. Estranho isso, um sentimento bipolar, que anda junto. Porém, remoendo um pouco mais percebo que quando há um alguém que se ouve a voz além da parede, parece que podemos ver e sentir esse alguém, sem que haja parede alguma separando um e outro.E os problemas... que problemas?
Ai nota-se que, apesar de, a parede continuar ali, não conseguimos notá-la.
Não posso afirmar que há benefícios em não se ver uma parede, pois podemos – literalmente – quebrar a cara. Parece clichê, mas quebro a cara constantemente nessa tal parede entre eu e o outro. Desde as provas de amor até o amor provado no momento de escassez dele mesmo, o tom da voz que há por trás da parede vai dizer se é viável ou não enfiar o nariz no tijolo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Estadão – (agora) um ano de impressões


Nem parece, mas passou um ano. Um ano que trabalho no jornal O Estado de S. Paulo. Não posso dizer que passou rápido, foi um tempo de aprendizado e diversas impressões. Estas, variadas, assim como os dias e os ânimos de trabalhar em um dos maiores jornais do país.
É engraçado. Lembro-me que quando entrei na empresa, exatamente no dia três de maio de 2010, sentia um cheiro no corredor de acesso à redação principal. Não sei explicar. Era um cheiro de papel, ou de muito papel amontoado, ou minha mente que traduzia ser papel, o cheiro.
Era um aroma. Com o tempo esse cheiro foi passando, esvaindo-se entre as tarefas do dia-a-dia, mas impressionantemente, às vezes, durante a correria, eu sinto esse cheiro novamente e esse aroma antigo, me leva àqueles dias atrás, dias de insegurança, de medo de ir ao banheiro e querendo mostrar muito serviço. Dias também de extrema felicidade por trabalhar em uma mega-empresa, na Globo dos jornais impressos. Digo isso com uma modéstia verdadeira.
Hoje já me acostumei a trabalhar em um grande veículo, mas confesso que muita coisa ainda me assusta, quando percebo a repercussão que meu trabalho toma quando o nome Estadão vem junto com o resultado. Para minha área, (que não é o jornalismo) trabalhar aqui pode não significar grande coisa, já que o vídeo não é prioridade. Embora com a convergência de mídias, o vídeo está tomando grandes proporções, tem jornalista velho de casa que não se importa com a imagem, mas com as palavras. Cada um com sua importância.
Minha auto-estima profissional deu um salto, positivo. Vi repórteres consagrados elogiando minhas produções, mesmo eles não sabendo quem eu sou e quem fez determinado vídeo. Outra confissão é achar que todo mundo que vai trabalhar com você, numa empresa de nome, é super profissional. E não. Como em qualquer outro lugar, tem gente que eu não sei como conseguiu fazer uma faculdade.
Passei por boas experiências nesse tempo. Viajei pela primeira vez de avião, para Salvador. Vou para casa de motorista, e vou trabalhar de táxi também, às vezes. Andei de helicóptero sobre o Tietê, conheci o Maluf, Arnaldo Antunes, fui à casa do Dinho Ouro Preto, abracei o Cauby Peixoto, andei na tucson da Globo, fui ao show da Corinne Bailey Rae, da Norah Jones, Lauryn Hill, tudo de graça e na área para convidados. Fui ao SPFW, vi a Christina Aguilera bem de perto, Paris Hilton, fui ao Salão do Automóvel, andei de Porsche, Audi, dirigi vários carros caríssimos, inclusive um Camaro vermelho na Lapa. Vi muita gente entrar e sair da empresa. Até pessoas com anos de casa, gente grande, como meu chefe, que foi mandado embora. Ele, que me entrevistou, despediu-se rapidamente numa quarta-feira e foi embora. Gravei muitas horas de vídeo, tive muita dor de cabeça, me estressei demais com algumas pessoas. Discuti feio. Fiz ótimas amizades, fiquei sabendo de muita fofoca de corredor, me assustei com o tamanho do refeitório e já quis ir para outro emprego. Trabalhei vinte e duas horas ininterruptas e me acostumei a trabalhar aos domingos. Tenho uma mesa só minha.
Você deve estar se perguntando, o motivo de se escrever sobre um ano numa empresa. Só um workaholic faria tal proeza. Porém, meus motivos são simples: orgulho e isso de mim mesmo. Acho saudável e necessário, para entender melhor os caminhos que permeiam nossos dias. Não sei quanto tempo ainda estarei no Estadão, mas espero que esse cheiro que eu sinto pelo corredor, esse aroma de novidade, ande comigo em qualquer outro corredor que a vida escolher e querer tornar velho e cheio de monotonias.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Uma lua que passa

Pode ser também chamada de fase; para os mais crentes, provação, seja divina, ou uma tentação, se for demonizada. Embora toda tentação do Diabo venha a ser uma provação de Deus, de maneira a provar se o ouro é num todo reluzente. E se realmente é ouro, visto pelo ditado que o desmitifica.
Nota-se que Deus trabalha em conjunto com o Diabo (sim, já tenho uma outra crônica sobre isso) e também utilizam de outros astros para completar o sentido místico da vida. Mesmo aos céticos, que não botam confiança nessas questões de aura, há de convir que em determinados momentos a lua que passa varre nossas expectativas para longe e nos faz buscá-las em outros campos. Situações, por vez, brandas como falta de dinheiro, tempo no namoro ou afastamento de um amigo, ou até situações mais medonhas e, por assim dizer, mais graves, como uma doença, a morte de alguém querido ou uma notícia triste de fim de jornada no trabalho.
O motivo dessa escrita é levar a uma reflexão que, de uma maneira ou de outra, em algumas fases da vida, alguns tempos dela, levam a confirmar que os ares trabalham para que pessoas em comum tenham problemas semelhantes e então passem a provocar mudanças em suas vidas. Por esse lado, pode ser benéfico.
No trabalho, é grande a quantidade de pessoas estafadas, querendo ir embora, abandonar, chutar o pau. Casais em crise e viagens canceladas pela falta de dinheiro. Reclamações, desânimo para procurar um amor, o salário que não paga a boêmia. Contas para pagar, demora do ônibus, falta de carro, sexo precário e até os filmes de comédia perdem a graça.
‘É uma lua que passa’ ouvi certa vez. E entendi que essa lua vem sem nomeações e condutas, e se aloja. Estaciona por um tempo e as menores espinhas se tornam grandes furúnculos. Inferno astral, raiva dos deuses, tentação, provação, avareza, dia-do-diogo. É uma lua que passa.

quinta-feira, 10 de março de 2011

O Jardim

Sem nenhuma notificação de ser um jardim, de plantas, grama e flores, estas para enfeitar, ali notava-se a ausência de qualquer indício em haver árvores frutíferas ou apenas de longas caudas. Uma brisa leve ultrapassava a entrada desse lugar, fechado com um portão de grades ferrosas e trepadeiras valentes que se engranfinhavam pela fachada. Daí, talvez, viesse a sugestão de ser um jardim, pelas trepadeiras, aquele lugar fechado todos os dias.
As plantas frontais eram altas e nada se via além do portão verde, nem os ferros, sustento do portão, aliás, o portão. Toda primavera, pessoas de todas as idades escolhidas no tempo de cada ramagem, ultrapassavam o portão para dentro. Um jardim amplo, deveras iluminado, de onde saía uma brisa, leve como o ar, pacífica, ninguém saía, só entrava. Antes das flores voltarem à vida, antes de o sol esfriar um pouco, aos poucos, gente se amontoava por ali e acabavam com o mistério, porém não podiam voltar os que estavam dentro, para contar como era. Quem ficava de fora, não conseguia enxergar para dentro do portão escancarado, nem ver o que havia lá, no chão ou acima dele. Quando o portão se abria, via-se apenas o rosto das pessoas que entravam e o seu contentamento e por mais aberto que os ferros trepadeiros estivessem, no momento da entrada, quem ficava de fora fixava o olhar no olhar do outro e nada mais conseguia ver além disso. A cada entrada da multidão escolhida, os curiosos de fora se encantavam com a beleza dos sorrisos de quem ia e alguns até queriam entrar também, mas ainda não era a lua certa.
Viam-se as despedidas momentâneas na beira do portão, com lágrimas, conformidades e alguns com dor, apenas alguns, pois o lugar era lindo, ou deveria ser quando abria repentino seus gradis. Era um portão ferroso, alto, mas com algumas pequenas flores entre as trepadeiras que o cobria, quase impossíveis de notar. Nem todos entravam no início da estação, mas uma lista, escrita à mão, era colocada sem atrasos a cada nova estação e ali estavam escritos os nomes de quem entraria no tempo certo de colheita. Uns entravam cedo, outros mais tarde, mas todos um dia se encontravam nesse ambiente, que parecia um jardim, belo e imenso, sem indícios de flores, grama verde ou árvores de caudas longas.
A única coisa que passeava daqui para lá e de lá para cá, sem avisos, era a brisa. E nada mais.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Hospital – impressões de ontem, hoje


Lembro-me quando viajava para casa da minha avó, em férias, e lá montava ‘circo’ – assim como ela mencionava – e cobrava para crianças da rua entrar.
Na época, tinha entre nove e onze anos. Nos fundos da casa da vó, havia uma varanda a céu aberto cheia de trambolhos e mistérios. Lona, cadeiras velhas, caixas de roupa, banheiro vazio e uma máquina de lavar azul, eram algumas coisas que tomavam o lugar e aguçavam minha curiosidade/imaginação. Ali eu montava sobre a telha uma espécie de toldo com uma lona laranja e apagava toda a luz, esperando ansiosamente o anoitecer. Desenhava no chão, com carvão, o caminho a ser feito embaixo da lona. Montava monstros com roupas velhas e dividia o lugar em duas alas, como num labirinto.
Vez ou outra, eu comprava uma lâmpada colorida, quase sempre vermelha e essa era a única a iluminar aquela varanda, que agora era uma Casa do Monstro, que me orgulhava. Fazia uma divulgação boca a boca na rua e a noite lotava de crianças com cinqüenta centavos na mão. Faziam fila e a fila também me dava orgulho, não sei explicar. Entravam e não levavam quase muito susto, mas sempre tinha alguém que chorava.
Fiz isso muitas vezes e em algumas delas, fiz - a casa - numa casa dos fundos que estava para ser alugada, uma espécie de Casa Maldita.
No último sábado, depois de anos – e muitos – vi se concretizar “O Hospital” um evento que relembra a Casa do Monstro que eu fazia quando criança. Agora, adulto fisicamente, contei com ajuda de amigos para produzir essa atração. Ainda mais por acontecer durante uma festa paroquial, de igreja, ao lado dela. Como misturar o que é Santo com o Terror, que não é nada santo?
Sei que os jovens vibravam cada vez que os monstros saíam na porta d'O Hospital. Ocupamos um espaço ainda a ser inaugurado (será a casa do padre) e ainda em construção. Montamos a iluminação, com fumaça, luzes que piscam e fechamos paredes com lona preta, formando um labirinto. Tivemos defuntos de lençol, guache vermelho em plásticos de açougue e trilha sonora de medo. Até uma tevê com uma câmera de vídeo foi colocada na entrada, simulando câmeras de segurança. Ficou tudo perfeito.
Entre a montagem e os ensaios de susto, lembrava da Casa do Monstro que montei na casa da vó antigamente. Na época tinha o sonho, a lona e era sozinho na produção. Hoje tenho amigos que abraçam a idéia, luzes diferentes em todos os ambientes e muita gente amontoada na rua querendo entrar. Uma coisa que não mudou daquele tempo para cá, quando se trata da montagem de casa dos monstros: o anseio em ver o céu escurecer, para poder dar luz à imaginação.

Veja o vídeo:

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O milagre dos bifes

"Jesus mandou que a multidão se sentasse no chão. Depois pegou os sete pães, agradeceu aos céus e partindo-os deu aos discípulos para que distribuíssem." Mc 8,6

Terça. Para alguns o dia mais entediante da semana, por ser o terceiro, após a segunda e, segundo dia de branco para quem folga aos domingos. A lua que tramita, não estava boa para muitos dos conhecidos, sequer para a vida financeira e às adjacentes situações a serem citadas; Trabalho, projetos, vida amorosa. Tudo estava num clima estranho, sem névoa de benevolências. Apenas um marasmo cotidiano sem dinheiro, sem paz e sem novos amores. Chato mesmo.
Tentava buscar em outras atitudes um motivo para se animar, alegrar um pouquinho o dia e tentar ver além do muro que cobria o momento daquela terça entediante. Terceiro dia entediante.
Ia e voltava do trabalho, até com pretensões de tomar um chopp num barzinho famoso da cidade e olhar aos arredores sortudos onde poderia encontrar alguém para beijar. Nada. Tinha estado em um lugar interessante no centro, na segunda, dia atípico para tal. Era um bar conhecido e com cara de pub americano, de paredes forradas a óleo de peroba e quadros antigos pendurados sobre ela. Não se animou com o clima e logo deixou o lugar.
No outro dia, na terça, quando aconteceu o milagre dos bifes, passou no caixa eletrônico para sacar uma grana e ter ânimo de dezoito reais no bolso. Viu a tela mais escura que o normal, imagem que a lente dos óculos de sol lhe proporcionava. Digitou a senha do cartão de débito e viu que nada mais tinha no chip, além de umas quirelas. Ficou puto, nervoso e quis descontar em alguém que não ofereça perigo.
Passou em outro caixa eletrônico para confirmar que não poderia sacar dinheiro algum. Confirmou.
Quis descontar na mãe, mas lembrou que ela estava em casa sem possível conexão via celular, que estava quebrado. Conseguiu falar com ela lá pelas seis, dezoito da noite, quando a raiva tinha sido abafada pelo esquecimento. Não foi rude, apenas informou o que aconteceu: que estava sem um puto, puto por aquela vida ter que ser tão cara.
Estava com pouco dinheiro para voltar para casa. Naquele dia quase não saiu da sala de trabalho, apenas de ora em ora para ir ao banheiro e comer um pedaço doce de bolo.
Marcou com a mãe às oito, na estação.
Quando entrou no carro, viu que ela estava nervosa por ver um filho puto e com raiva daquela vida que também era puta, mas que não a permitia falar assim, pela religião talvez. Entre a conversa e a troca mínima de farpas por gastarem demais sem ter, ela contou que na vasilha de casa, tinham quatro bifes para o jantar.
Disse que contou e os separou em pratos diferentes antes de matá-los na gordura quente. Distraiu-se com algum afazer e disse que no momento da fritura, pôs na frigideira cinco bifes. Um, a mais, havia aparecido entre os quatro abatidos.
O filho constatou que ela havia contado errado e que nenhum bife de boi poderia aparecer entre outros quatro. Lembrou, imediatamente, da passagem bíblica, que Jesus multiplica os pães e mata a fome de uma multidão. Para quem não acredita em Deus, isso soa de forma muito romântica. Há também quem acredite em milagres, mas jamais em Deus, ou em deus.
Mesmo crendo em algumas circunstâncias, o filho logo descartou a hipótese de uma multiplicação milagrosa. Milagre seria se aparecesse dinheiro no banco, mas a mãe afirmou que os quatro, agora eram cinco bifes. No filho, não passou a ideia de uma mentira, ainda mais em bifes que nada ajudariam naquela terça chata.
Quando sentou para jantar, viu dois bifes dentro da panela e a mãe reforçou que naquela terça-feira, um bife surgiu como milagre e dos cinco agora sobraram dois. Um pensamento sobrevoou sua cabeça, como uma brisa leve que bate em nosso rosto. Num dia pacato, de trabalho sem dinheiro e de lua que não brilha, um bife a mais ou outro a menos não importaria, se este não tivesse vindo de um milagre. Creu.

"E então os discípulos entregaram à multidão, pães com bife..." parafraseando

domingo, 30 de janeiro de 2011

'Causos'


Para quem quiser ler (e para, quem quiser, acreditar)

Quem me conhece sabe que sou totalmente ligado às questões sobrenaturais, ainda mais quando essas se dizem verdadeiras. Apesar do clichê do “Baseado em fatos reais”, essa propaganda para atrair turistas, ainda me atrai em determinada escala, até porque, algumas situações já aconteceram comigo.
Antes de entrar em meus relatos pessoais – e medonhos – venho destacar o que ainda me bota medo. O escuro não digo ser a base dos meus calafrios, embora nele possam acontecer muitas coisas que jamais poderão ser explicadas. Embora, quase todos os fatos que se seguem aconteceram no escuro.
Tenho muito medo de zumbis, esses seres cambaleantes, vagarosos e em estado de decomposição. Meu medo está neles, no fato de já terem morrido e voltarem para nos devorar. Não tenho tanto medo de sua mordida ou no real perigo que oferecem, mas em todo o processo que envolve um zumbi. É um cadáver, uma pessoa que já morreu, que podia estar dentro de um caixão ou embaixo de uma sepultura. Todo símbolo fúnebre acompanha este ser faminto por cérebro (ou carne humana). O meu grande medo é ver, um dia, alguém levantar do caixão ou mesmo abrir os olhos no velório, no seu velório. Por mais que haja alegria alheia pelo dito estar vivo, acho que eu correria gritando e chorando cemitério a fora. Falando neste lugar, o cemitério é um lugar mais misterioso do que medonho para mim. Gosto dele, claro que, não para passear num domingo de folga, mas não creio que lá moram meus maiores medos.
Os fantasmas são os maiores causadores de insônia. Ao contrário dos zumbis, eles podem existir. Não que zumbi não exista, eu não disse isso, mas são mais raros, visto pelos casos no Haiti, envolvendo toda a questão religiosa do vodu, seita proveniente do lugar. Porém, os ‘gasparzinhos’ podem ser uma realidade, pois já vi gente descrente ter medo, (como minha mãe, por exemplo, depois de assistir "Atividade Paranormal). É o desconhecido, envolve a morte e a alma que saiu do corpo, que vaga, que pede ajuda ou que aparece atrás das coisas. Outro quesito questionável é o porquê esses espectros adoram aparecer atrás das coisas? É atrás de armário, cortina, reflexo no espelho e principalmente atrás da porta do quarto, do nosso quarto, do seu quarto. Filmes com essa temática fazem sucesso, pois apresentam casos do desconhecido, daquilo que não possa ser realmente explicado.
Dúvida: um zumbi é um corpo sem espírito. Um fantasma, um espírito sem corpo. Então, enquanto o corpo cambaleia, o espírito desse mesmo corpo pode atormentar os vivos? Uma espécie de ‘conjunto sobrenatural’ onde espírito e corpo assombram em diferentes escalas?
Os extraterrestres também fazem muito marmanjo ter insônia. Outro fator desconhecido, de seres que possam viver em outros planetas – além da Terra – e com inteligência superior aos humanos. Naves e OVNI’s são vistos em todo o canto do mundo. Tem gente que não liga para fantasmas e zumbis, mas se borram quando o assunto é ET. Teve o caso do Et de Varginha, os “causos” inexplicáveis no triângulo das bermudas e outros Bilús que aparecem por aí. O cinema aproveita para criar situações diversas para nossos amigos Etevaldos.
Outras plataformas do medo tentam molhar as calças do povo, como bolhas assassinas, aranhas gigantes (embora eu mooorraa de medo de aranha de qualquer tamanho) seres do mar gigantescos, enfim.
Alguns casos aconteceram com este que vos escreve. Isso sem contar os amigos que me relataram outras situações de medo. Segue uma delas, que aconteceu comigo, justo comigo:

O causo do Raimundinho

“Esse é o caso que pode parecer engraçado hoje, mas quase me fez chorar de medo na época que aconteceu”

Em uma cidade do interior, chamada Avaré, onde costumo passar minhas férias e feriados, mora minha avó materna e outras tias. Meus pais tem casa lá também.
O cemitério da cidade é bem comportado, digamos. Bem cuidado pela prefeitura, com algumas esculturas e ficou mais visitado pela minha família desde quando meu avô passou a morar lá. Sepultado. Confesso que, este cemitério, me atrai mais pelas histórias e lendas que o rodeia do que pelas esculturas tumulares.
Raimundo é um menino que morreu antes mesmo de eu nascer. Ficou doente, faleceu e foi enterrado neste cemitério em um jazigo pequeno, reformado posteriormente com azulejos azuis e uma foto sua com roupa de criança do século 19. Aquelas roupas que incluem chapéu e bordados ondulados.
Sempre acompanhei as lendas e contos da cidade que incluem o túmulo dessa criança morta. Algumas mães aflitas com o comportamento de seus filhos pequenos, rogam à esse menino, pedindo ajuda, para que seus filhos deixem a mamadeira, ou o hábito da chupeta e até as fraldas. Ao alcançar essas ‘graças’, as mães deixavam no túmulo alguns doces e até as respectivas chupetas de seus filhos, como forma de gratidão. Claro que, para os mais materialistas, isso só daria mais trabalho aos zeladores do cemitério, que tinham de limpar toda essa oferenda. Para os mais espiritualistas, isso refletia uma forma material de gratidão e oferta ao menino morto.
Nos dias de finados, o cemitério ficava lotado, com missas e celebrações em oferecimento aos mortos. Lembro-me que, nessas datas, o túmulo do Raimundinho ficava repleto de doces, inclusive balas rosas de Yorgut que eu adorava, mas jamais tive coragem de pegar uma delas e comer. Chupetas coloridas também ficavam durante dias ao lado de velas, sobre o túmulo do menino. Com o passar do tempo, construíram uma mini capela in front ao túmulo do pequeno, que se hoje estivesse vivo, seria mais velho que eu. Essas explicações se deram para você entender essa lenda de cidade pequena.
Nunca fui atrás de mais relatos sobre o menino, embora meu irmão mais novo disse que ele morreu de uma doença contagiosa. (Talvez eu siga mais adiante nesse assunto na próxima vez que for para lá, eu disse Talvez!)
Eu e minha alma de cineasta, num belo dia, levei minha Handycam ao cemitério para gravar esse túmulo. Gravei as balas, as velas e inclusive a foto do Raimundo, sem diminutivos dessa vez. Acompanhado dos meus irmãos e alguns primos, me divertia fazendo imagens dessa lenda morta-viva dali. Dei até zoom na fotinho. Meu irmão brincou:

- Você não trouxe balas para o Raimundinho. Ele vai cobrar pela filmagem.

Tentei me desvencilhar dessa afirmação:

- Imagina, Raimundinho não faria isso.

Visto que certo calafrio me correu as pernas, fui me entreter com outro túmulo ou outro assunto. Não queria ser cobrado posteriormente.
Sei que nesse dia, consegui com exclusividade, imagens dum coveiro em uma desossada. Perguntei se ele não tinha medo da profissão e aquela famosa frase veio à tona: “Tem que ter medo é dos vivos, né fio” Não concordo muito com isso.
Naquele mesmo dia, após sairmos do cemitério, tomei banho (por higiene, não por superstição) e junto com minha mãe, fui visitar uma prima. Cristina, a prima, tem seis filhos e seis pais diferentes para cada um deles.
Um deles, o mais novinho me pediu para comprar doces. Comprei uma boa quantia de balas e distribuí entre eles. Ficamos um tempo lá e depois seguimos para minha casa. Neste dia, especificamente dormiram em casa apenas mamãe e eu. Ela no quarto dela e eu num quarto nos fundos, colchão no chão.
Dormi, acordei depois de algum tempo. Meia noite e quarenta e dois. Quase uma da madrugada. Ouvia algumas poucas pessoas conversando na rua e me virei para re-dormir. Dormi novamente, acordei. Duas da manhã agora. Olhei no celular e este iluminou todo o quarto. Uma pequena luz na escuridão, ilumina um quarto inteiro.
Fechei os olhos para retornar ao sono, mas todo sono se foi quando ouvia alguns barulhos ocos na parede, como se alguém batesse, parasse e depois batesse mais. Parecia correr, parecia caminhar na parede. Era um ruído contínuo, alternava na velocidade mas sempre voltava. Não parecia um gato no estuque, mas eu queria que fosse um gato no estuque. Era como alguém batendo na parede com as mãos fechadas. E com as mãos de lado.
Fiquei amedrontado e nenhum cachorro latia lá fora. De vez, acendia o celular para iluminar o quarto e corria com o neon sobre as paredes. (e o medo de ver alguém agachado aos pés do colchão) Fechava os olhos e o barulho tornava-se quase inaudível, mas no silêncio da noite, era audível, penosamente audível.
Levantei e fui ao quarto de mamãe, que dormia pesadamente. Chamei uma, duas e na terceira vez ela, assustada, perguntou o que eu queria. Perguntei quem morava nas casas do lado. Do lado do barulho, disse, morava um casal e no outro, baldio.
Até brinquei, tentando amenizar o momento, que o filho desse casal escolheu um horário péssimo para brincar. Mamãe em seu sono, disse que o casal não tinha filhos e mesmo que tivesse era impossível ele brincar, pois estavam viajando.
Meu medo aumentou, mas não até o momento que, em seu quase sono mamãe soltou: “Você fica filmando cemitério, as coisas vieram junto com a filmagem” Nessa hora Raimundinho e a foto dele, brilharam nitidamente em minha mente. O pavor me dominou.

- Dorme que passa, ela disse.

Dormir? Oi? Era o que eu mais queria naquele momento e enquanto eu ainda falava com ela, os murros na parede continuavam. Murros, passos, tapas, sei lá eu. Até incentivei-a a ouvir mas o que eu ouvi foi seu ronco fundo. Dormia.
Voltei para o colchão no chão, voltei para o neon do celular que agora acendia de minuto a minuto, menos que isso. Rezei, na esperança de afastar aquele medo. Tava com muito medo, tudo estava estranho e tive real vontade de chorar. Rezava e entre uma palavra do Pai-Nosso e Ave-Maria, balbuciei:

- Raimundinho, se for você: não levei bala ao seu túmulo, mas comprei aos filhos da Cristina.

Não sei se foi a oração, as balas ou a promessa íntima de apagar a gravação, mas logo após uns minutos, os sons pararam. Tudo cessou e o silêncio me trouxe mais medo, mas ao mesmo tempo um alívio. Senti que estava seguro e adormeci. Só lembrei-me disso quando acordei no outro dia e apaguei, sem dó, toda a gravação.

Conto mais votado:
"O porco na janela"

Essa situação se deu na mesma cidade do caso acima: Avaré. Eu e minha tia, Laís, antes de dormir, conversávamos no quarto. Ela numa cama de solteiro e eu em um colchão, no chão, ao lado. Era quase meia-noite.
Atrás da casa, havia uma outra casa, que fazia parte do mesmo terreno. Era uma casa alugada, de três cômodos.
Enquanto conversávamos, ouvimos o portão abrir e fechar. Passos avançaram no corredor. Passos lentos, de quem não estava com pressa e ousaria dizer, cambaleando.

- A mulher deve estar bêbada, sugeriu Laís.

Imaginamos quase que unânimes que era uma mulher, pois o barulho dos passos mais pareciam com o barulho de sapatos de salto. Passos lentos e descompromissados, naquela hora da noite.
Não demos tanta trela aos passos de salto e voltamos a conversar sobre outras coisas. Não me lembro como, mas acabamos caindo em assuntos que envolvem cemitério e pessoas já falecidas de nossa família. Passava da meia noite.
Inesperadamente, ouvimos bem próximo da janela do quarto, um grunhido alto, rápido e gradativamente grave. Paramos o assunto, paramos de imaginar e ficamos sem ação durante longos dois segundos.
Meu corpo pulou do colchão e ao sair, percebi que Laís não conseguia se levantar de tanto medo. Voltei ao quarto e apenas minha presença a fez levantar e correr para a cozinha.
Apavorados, corremos ao quarto de minha avó e dissemos que ouvimos um som parecido com o som que o porco emite quando está com fome.
Minha avó, como sempre, sugeriu que fôssemos dormir e ainda bronqueou com o fato de estarmos acordados até aquela hora.
Custou para voltarmos ao quarto, porém nada mais soou da janela.
Essa história me rendeu muitas piadas, em rodas de amigos, e vários títulos rondam sua veracidade. "O porco de salto", "O porco na janela" são os mais sutis.
Eu e Laís, quando nos encontramos, questionamos um ao outro o grunhido que ouvimos naquela noite.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Vista para o céu

Parte I

Era de se esperar que os hotéis estivessem lotados em época de festas de fim de ano ou qualquer outro tipo de feriado religioso, ainda mais no Brasil onde reside a fé católica em sua grande parcela de crentes. A praia foi descartada antes mesmo de ser cogitada. O campo parecia monótono demais para constar como destino de um casal que procura férias agitadas. Vacas e os outros animais provenientes dele poderiam entreter os filhos, mas como o casal não tinha filhos e ainda não planejavam um, o mato não chamou tanto a atenção.
Surgiu uma colônia, dessas onde as atividades são programadas e quase sempre não agradam tanto. São mais interessantes no folhetim de anúncio do que na realidade. Veio também a idéia de um cruzeiro e isso agradou os dois, tanto ele quanto ela, mas o orçamento não correspondia à ideia. Até estudaram o passeio num navio gigante, viram fotos de vistas maravilhosas, mas sabiam que um cruzeiro, sete dias num cruzeiro, era muito caro, mesmo fora de temporada e com a moeda nacional valorizada.
Acabaram numa cidadela cheia de crianças correndo pelas ruas, armazéns e gente sentada na varanda de casa. A mulher esbravejou quando viu folhas secas pelo chão, mas o marido tentou encontrar um motivo para ficarem.

- Pode ser interessante, disse em voz baixa.

Quase não tinham pousadas na cidade, nem mesmo hotéis vagabundos. À cada pessoa que perguntavam, eram mirados dos pés a cabeça e com um sorriso sem vergonha no rosto, as pessoas diziam não saber se havia, ou não, um hotel nas proximidades.
Avistaram uma casa grande, dessas com aspecto medieval e imaginaram ser um bordel, visto pelas meninas de saia curta e blusa sem manga, recostadas na porta. O marido, educadamente se apresentou a uma delas e percebeu que aquele tipo de educação era desnecessária naquele lugar. Perguntou se era um hotel e antes mesmo de terminar, a mulherzinha apontou para o balcão e olhou a esposa da cintura para baixo.
Era um hotel, efetivamente um hotel e organizado, mas de baixo escalão. A senhora gorda da recepção os atendeu com educação, mas com uma simpatia surrada, de gente do mato que trata todo mundo como velhos conhecidos. Isso irritou um pouco o marido, mas a esposa observava as outras portas do lugar.
Enquanto a gorda falava dos aposentos, o marido ouviu um gemido agudo de mulher e um ranger de cama, vindo de perto. Sua mulher certamente ouviu, mas parecia se encantar com os corredores do casarão. Havia quartos vagos, mas o homem não quis ficar. Mais do que rápido, tirou sua mulher dali com certa vergonha de tê-la levado àquele lugar. Uma imagem de um puteiro vagabundo rondou sua mente e não quis compartilhar seus desejos sexuais com a esposa. Saíram e a mulher da porta continuou a olhar a esposa caminhando pela rua da frente.
O dia já encerrava seu trajeto, a noite debruçava-se sobre as montanhas, mas não havia chegado ainda aos telhadinhos. Sabiam o caminho da rodoviária e o próximo ônibus sairia em meia hora, mas não souberam explicar porque não foram embora daquele lugar vazio de interessantes destinos.

Parte II

A fome causou um oco principalmente na barriga do marido. A esposa queria “fazer xixi” e era assim que descrevia sua vontade. Pararam num boteco de nome “Vintém” e a mulher esqueceu por um instante das reclamações caseiras do banheiro sujo e logo entrou no cubículo de pisos brancos para derramar sua ânsia física da urina e da vontade de estar em casa. O marido estava incomodado com a situação, porém jamais pensou em reclamar, pois foi ele quem teve a ideia de entrar num ônibus qualquer e seguir viagem para Itatinga. Foram quase três horas de viagem e ele, nesse tempo, conseguiu convencer a esposa que seria curioso descer numa cidade pequena, desdobrar suas esquinas e depois dormir num lugarzinho aconchegante. No fundo, lá fundo de sua mente, quase se certificou haver hotéis em Itatinga, mas começou a se preocupar quando viu as lojinhas fecharem suas portas e nenhum rastro de algum lugar decente para deitar a cachola.
Enquanto pedia uma coxinha de frango, viu a esposa sair do banheiro, desajeitada com o vestido e com o lugar. Ela passou por ele, parou na porta do Vintém e acendeu um cigarro. Ele detestava quando ela fumava e lembrou da promessa em parar, mas ali, noite, num boteco, não quis incomodá-la ou não quis incomodar a si mesmo.
Os passos dos dois estavam cansados e quando pensaram ir para a rodoviária e pular no próximo ônibus de volta para a cidade, viram escrito numa placa de madeira em frente a um sobrado: ‘Quartos disponíveis’
Sem pensar, o marido bateu palmas e o som delas ecoou no quintal, que no escuro parecia pequeno, mas o som provou o contrário. Do fundo, de bermudas jeans e chinelos, saiu um mulato, magro e de sorriso largo.

- Boa noite, viajantes, saiu da boca do mulato.

- Procuramos um quarto para dois, dessa vez a esposa, meiga e firme.

- Esqueci de tirar a placa, desculpem-me, não há mais quartos vagos! Todos estão ocupados.

E emendando a fala, disse que em um estava uma mãe com a filha adulta, noutro, dois jovens estudantes, no fundo uma mulher e seu amante e no último um padre velho e ranzinza. A mulher interviu dizendo que iriam embora pela manhã e tentou ressuscitar no mulato a lembrança de outro possível quarto vago. O mulato pensou e agora se podia ver seu cavanhaque, mas não todo seu rosto. Caminhou lentamente e continuou sua explicação:

- Atrás da minha casa tem um lago, um lindo lago!

E novamente emendando a fala, disse que cobrava quantias diferentes para cada hóspede de sua casa. O marido levantou o pescoço para notar se realmente aquele sobrado possuía tamanho para abrigar umas dez ou quinze pessoas, e no escuro mais escuro da noite, percebeu que realmente havia um oco, um vazio atrás do terreno e ali podia mesmo ter um lago. O escuro não o deixou notar nada. Apenas supôs.
Voltou a prestar atenção no menino. Agora explicava que cada janela de sua casa tinha uma vista diferente para o lago e por isso cobrava mais caro para as vistas mais privilegiadas.
A mulher interviu novamente e agora, já sem paciência, agradeceu e deu as costas para o jeans e os chinelos de cavanhaque. O marido prestava atenção na conversa e por um instante, um instante bem miúdo, imaginou o lago que podia enfeitar a varanda daquela casa. E logo atropelou esse pensamento provocante com outro pensamento, mais instigante ainda, de como seria ter em casa, um lago. Um maravilhoso lago, mas logo estava sendo puxado pela mulher, que não imaginava lago, nem maravilhoso, nem nada. O homem, ainda atento, mas lutando para não contrariar a mulher, ouviu a voz do menino atrás do portão:

- Tem um quarto... Com vista para o céu, e seu rosto se iluminou.

Parte III

Esta última fala foi um motivo, ou mais um motivo, para causar na mulher o desejo de estar em casa e poder degolar o marido que outrora a convenceu ser ‘interessante’ essa viagem para uma cidade desconhecida e pequena. A característica pequena, nas palavras do marido, soava como um adjetivo, uma qualidade e quase que inconsciente, essa sensação agradável na palavra pequena, transmitiu à esposa uma curiosidade de estar nessa cidade, pequena. Esse encantamento que o marido tinha causado nela há algumas horas, era o mesmo que aquele cavanhaque de rosto iluminado estava causando em seu marido, agora. Ainda mais pelas circunstâncias do momento, de não ter onde passar a noite e descansar. Embora a cidade não parecesse oferecer perigo, não quis arriscar e ficar ali discutindo se ficaria ou não num quarto “com vista para o céu”, soltou essas palavras quase que remedando seu autor.
Ficou ainda mais nervosa quando mensurou a ousadia de um molambo em oferecer um quarto com vista para o céu. O que não era comum. Ofereciam-se quartos com vista para o mar, ou para montanhas, campos verdes e vastas ramagens de flores, mas para o céu? E por mais excêntrico que fosse, poderia ter vista para um abandonado campo de concentração, de antigas guerras, ou mesmo o simples lago atrás da casa, que ele jurava existir. Quem queria ver o céu? Podia vê-lo dali de onde estava e não precisava pagar estadia num quarto para ver nuvens e possivelmente um pássaro voando entre elas.

- Vamos passar a noite no quarto! Disse o marido.

A mulher não acreditou nas palavras dele e o estranhou por um instante. O menino retirou a placa do portão e colocou os chinelos na calçada, enquanto o marido já abria a carteira para acertar a noitada no quarto com vista para o céu.
Sem poder esbravejar mais, pois o marido já estava inteiro dentro da casa, a mulher esperou entrarem no quarto para assim finalmente degolar o marido, com palavras e juramentos de separação. Sabia que não era capaz, mas naquele momento era. O menino não pegou o dinheiro ainda e ocupou-se com as malas dos dois. Foi a frente deles e explicava cauteloso sobre o quarto.

- É um quarto com apenas um colchão, de solteiro. Terão que dormir apertados. Se for para apenas dormir, não precisarão de mais nada.

A mulher quis falar, mas apenas um grunhido oco saiu de sua boca, como desabafo misturado com raiva. Passaram por um corredor comprido e novos quartos iam surgindo conforme adentravam a casa, que se revelava maior que suas estruturas exteriores. A porta de um dos quartos estava semi-aberta e a esposa pôde ver um velho sentado aos pés da cama recitando o terço. Viu a janela e o breu fora dela.
O menino parou ante um quarto no fundo do corredor. Pegou uma única chave pendurada ao lado da porta, num desses ganchos improvisados e a abriu com apenas um toque. No quarto, escuridão. O menino entrou, sumiu lá dentro e ao acender a luz, o quarto revelou-se miúdo e com um esqueleto de cavanhaque e chinelos, no centro dele.

- Este é o quarto, apresentou o esqueleto, movendo satisfeito o braço direito.

Era miúdo mesmo, pequeno a tal ponto de, o menino sair para que os dois pudessem entrar. A mulher entrou e com uma volta ao redor de si mesma, viu o quarto inteiro e depois a cara do marido, encarando o assoalho, com mais medo dela do que de dormir naquele chão frio. O menino disse que no outro dia, pela manhã, acertariam a quantia da pernoite e desejou um bom sono aos dois. Antes de sair recomendou:

- Acordem antes de o sol nascer! Sei que estão cansados, mas bem cedo, abram a janela e observem o céu.

E saiu novamente satisfeito com o aluguel daquele quarto. O marido fechou a porta e nem sequer olhou para a mulher. Havia cobertores e apenas um travesseiro sobre o colchão. O homem tirou os sapatos e arrumou as malas no canto do quarto, ao par do colchão. Ela chorou e não conseguiu degolá-lo.
Em pouco tempo, ambos estavam deitados e abraçados no colchão que incrivelmente os abrigou bem, mesmo eles dormindo frente a frente num colchão único, de gente solteira. A mulher, agora mais calma, lembrou-se dum trecho de um livro que lera na faculdade, cujo escritor português narrava a história de um casal que embarcou no mar em busca de uma ilha desconhecida e acabaram esquecendo-se de cotar o céu como fonte de perigo para suas jornadas. Lembraram do mar e esqueceram-se do céu. Logo refletiu como os poetas e escritores dão valor ao céu que está sobre nossas cabeças, todos os dias, mas que nunca, ou quase nunca, ninguém pára para admirá-lo, ou pensar sobre ele. Não era poeta e nem pretendia ser, mas nesse momento o céu aguçou sua vontade de encará-lo. O céu, aquele mesmo de sempre, lá em cima, que se podia ver sem pagar.
Reparou que o marido caíra no sono e já dormia. Foi até a janela e com os dedos miúdos como o quarto, girou a pequena manivela que separava seus olhos da vista do céu.
Escuridão foi o que viu e dessa vez ninguém estava ali para acendê-lo como fizera o esqueleto há pouco, com o quarto. Lembrou do lago e tentou vê-lo também. Um fardo de frio tocou seu peito e entrou no quartinho. Novamente olhou para cima e nem uma estrela sequer encontrou.
Entristeceu-se por, a pouco rejeitar a vista para o céu e preferir ver o que se podia tocar, como as flores ou o mar. Neste momento, entendeu um pouco sua alma de poeta e algumas palavras do menino magro, de rosto iluminado, que falava tão bondoso, dessa tal vista.
Fechou a janela e ansiosamente foi se deitar para poder dormir e no outro dia esperar a aurora e novamente poder ver o céu.

FIM