domingo, 12 de fevereiro de 2012

O Padre quer conversar


 "Veja aquele rapaz despudorado ferindo nossa moral cristã" disse um dos freis da tirinha.
  "Você desrespeitou a igreja e o papa" disse-me o pároco da minha comunidade, por telefone.
  Se houver comparações, pode-se afirmar que eu me passei por aquele jovem que feriu a fé por meio de uma tirinha que une crítica e humor ácido à igreja e aos pudores da religião.
Sol tapado com a peneira se formos tentar amenizar os escândalos que acontecem nas sacristias e confessionários ao redor do mundo. Escândalos quando comparados à cegueira de alguns pais da igreja que preferem não ver a que resolver. Em Levítico 22, no livro dos livros, a palavra usada é "abominação" e isso me faz lembrar o Abominável Homem das Neves. Será que essa lenda na verdade não fala de um homem das montanhas de Aspen, que oferecia comida e abrigo aos turistas masculinos em troca de satisfação sexual?
  Há duas semanas o padre da comunidade onde participo me chamou para uma conversa. 'Tem que ser pessoalmente' disse enfadonho do outro lado da linha.
Adiantou-me que queria satisfações de uma tirinha (anexa acima) que eu postei em minha página pessoal na rede social do momento. Uma tira(da) do cartunista Angeli, que mostra dois freis assistindo de suas cúpulas a Parada Gay acontecer nas avenidas defronte à capelinha.
  A tirinha é sutil, chega até ser bonitinha, mas em suas últimas falas, aflora a hipocrisia que a igreja tenta esconder e vez ou outra estoura em noticiários jornalísticos. Dá para tirar várias conclusões do quadrinho: desde a pedofilia, homossexualidade enrustida ou as duas vertentes juntas, fruto de repressão e celibato forçado.
 Aceitei conversar com o padre, embora eu entenda que não tinha de dar satisfações ao pároco que celebra as missas onde minha banda toca aos domingos. Senti-me pressionado no início, lembrei da palavra "Ditadura" várias vezes e de alguns dos personagens que sofreram represálias na época, mas logo lembrei que no ano de meu nascimento, em 85, era o fim da ditadura. Nasci livre desde então.
 Com palpitadas fortes, aceitei a conversa corretiva e sem delongas comecei a digestão dessa intimada santa, que ficou marcada para o domingo antes das dez da manhã.
  Não aguentei. No mesmo dia, ao passar em frente a igreja do Cristo Operário e notar que estava acesa, num salto dentro do ônibus, toquei o sinal e desci para tirar aquela história a limpo de uma vez por todas. Chamei o padre que veio me atender com um sorriso e um aperto franco de mão.
- Não aguentei padre, eu disse. Vim logo porque estou curioso interessado no que o senhor tem para me dizer.
- Sem grilo, ele disse. Só queria conversar, as pessoas estão falando, comentando sabe!?
  Confesso que a pressão dessa conversa das dez me deixara armado, com pedras e foices na mão, mas após o padre esfriar minha espinha, senti que pude raciocinar melhor sobre quais palavras usar quando fosse defender minha livre opinião sobre isso ou aquilo no domingo próximo. Naquele dia, não pode me atender e conversar a panos frios. Ficou para domingo mesmo.
No dia, minha banda estava escalada para tocar na missa das dez e exatamente às nove e vinte da manhã, enquanto arrumávamos os equipamentos da banda, em sua batina branca, o padre passou e me chamou para a sacristia. Deu ordem aos ministros para que ninguém entrasse ou atrapalhasse nossa conversa. A porta do céu estaria fechada, pois os anjos estariam trabalhando. Olhos arregalados dos outros serventes de branco.
  A conversa foi sutil. Há mais de dez anos nós nos conhecemos e temos profundo respeito um pelo outro. Cada um em suas condições. Ele começou falando, dizendo que um terceiro mostrou a tirinha para ele, visto que ele não tem perfil na rede. Disse que como padre, ele tinha o direito de me alertar sobre esse comportamento fora da igreja, pois querendo ou não eu era um agente de pastoral em sua paróquia, ou seja, trabalhava cantando, atuando e editando o jornal paroquial.
  Após minutos em defesa da igreja, de cuidados nas atitudes e formalidades, foi minha vez. Entendi sua posição e entendi que se preocupava com a publicação daquela tirinha por alguém que serve em sua paróquia. Porém, usei o argumento da individualidade. Publiquei isso em minha página pessoal, somente. Não foi uma opinião profissional, em nada que fosse da igreja. Sempre publico textos, vídeos, fotos interessantes e nunca levaram isso a ele, até encontrarem uma brecha para atacar. Este terceiro, oculto, está entre meus 'amigos', um contato que me adicionou e denunciou-me como 'o despudorado'. Usei o termo mesquinho para definir essa tal pessoa que teve o trabalho de printar a página, entrar em contato com o padre e mostrar o que eu publiquei.
- Não vamos julgar a pessoa, ele disse.
Concordei, mas julguei sim, a atitude. Mesquinha. Atitude de quem precisa de um tanque cheio de roupa para lavar ou um mato para carpir. Porém, apesar de tudo, percebi que sobre essas pessoas é que nos fazemos mais fortes e nos entendemos mais humanos. Sem querer, esse abominável-mesquinho-denunciador-de-homossexuais-on-line propiciou uma conversa com o padre que se fosse por mim, nunca iria acontecer.
Um tema desse não é falado pela igreja, não é discutido. É abafado. (Abafa!)
Esse foi um dos pontos altos da conversa. Quando eu citei que a igreja não se pronuncia sobre a homossexualidade, quando não fala qual o caminho que gays, lésbicas e trans devem seguir quando se propõe a seguir determinada religião, também não se pode definir regras apenas baseando-se na Bíblia para atacar, queimar em praça pública ou apedrejar. Porém, o padre, me mostrou toda sua sabedoria quando ao ver esses argumentos, respondeu por si: 'Eu não sei'
Deu um suspiro e assumiu que tal tema não é apenas tabu, mas sim ignorância, no melhor sentido da palavra, de não saber mesmo, não ter argumentos para explicar (se é que tem explicação) a homossexualidade e suas vertentes. Ele podia usar de argumentos do Catecismo, dizer que é um afronte ao Criador e que há um inferno esperando pelos homem que deitam com homens e vice-versa (rs). Mas, não. Ele admitiu que a igreja é ausente nesse sentido. Percebi que estava conversando com um Homem e não com um padre fanático.
Argumentei que, enquanto a comunidade eclesiástica está nessa dúvida, muitos homossexuais estão se suicidando, impedidos de serem aceitos por um Deus, ou pela igreja propriamente dita. Lembrei de uma entrevista que fiz com Marcelo Gil, da ONG ABCD'S, que luta pelos direitos homossexuais na região do ABC Paulista,  no qual ele me contou um caso que me chocou: 'Pai e mãe quebraram as pernas da filha de 16 anos, quando descobriram que ela era lésbica.' Com as pernas quebradas, a adolescente não poderia sair de casa.
...
Sugeri que sem pré-conceitos, para que ele se informasse, para poder falar, ajudar mais e notar que há ministros, padres, bispos, agentes de pastoral homossexuais e que acreditam ser a fuga o melhor dos caminhos para essa doença sexual, que nada tem em patologia.
Lembrei de uma homilia feita por ele, logo após a liberação da União Homoafetiva do Supremo Tribunal de Justiça, no qual ele leu uma carta do Bispo de nossa diocese, direcionada mais aos héteros como um manual para o tratamento de pessoas homossexuais.
A carta, era cheia de dedos, assim como ele, o padre, estava em seu discurso no altar. Minha avaliação, sem julgamentos, era de que ele estava perdido, escolhendo palavras e sem desfecho concreto para encerrar a conversa.
- Não queria ofender ninguém, argumentou.
  Sei que não, mas mais uma vez é provado que, a igreja não sabe o que dizer.
  A conversa chegou num ponto (já faltavam dez minutos para começar a missa) que, as opiniões eram claramente adversas e jamais iríamos chegar num consenso. Ele como padre, eu como eu.
- Não concordo, porém respeito.
"...olha, um arco-íris termina na capela"
Foi o que sugeri como encerramento do papo santo.
O padre não desmistificou sua opinião. Era aquilo e pronto. Eu também.
Com algumas palavras, ele definiu que o tempo cura e responde tudo.
Terminamos a conversa. Saímos da sacristia sob olhos atentos e famintos por informações. Arrumei meu microfone e no decorrer da missa, cantei o Glória e o Entoemos, enquanto ele consagrou a hóstia e proferiu o perdão dos pecados. Na homilia desse domingo, proferiu as seguintes palavras:
- Conversando com um amigo eu disse que o tempo cura e responde perguntas que só Deus tem as respostas.
Meu amigo me cutucou com a perna e notou que ele falava de mim.Identificou-me como 'amigo' e isso já pode ser um grande começo.

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