segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Quando algo se quebra

Quando algo se quebra, os cacos vão longe na vida. Pedaços nítidos, farelos de vidro se escondem embaixo da mesa.
Dia desses tive que quebrar o vidro da janela dos fundos para poder entrar em casa. A porta emperrou com um pedaço de chave e tive que abrir o trinco da janelona de trás. O interior era terra de ouro.
O vidro do quadradinho espatifou sobre a pia e forrou o chão de cacos grandes e farelos de vidraça, mínimos, quase invisíveis. Notados somente quando entram no pé e incham o dedo mínimo. Alojam-se inteiros e silenciosos; e precisa de cautela pra tirar, pra não inflamar.
Quando pequeno, quebrava copos e termômetros na pressa do leite. Caquinhos que antes me ajudavam a beber, agora eram amontoados todos num canto perto da porta da cozinha, que há pouco não abria. Nos termômetros, a lenda do mercúrio que fazia morrer rápido se pisasse nos caquinhos mágicos.  Quebrar um desses em casa era penitência de dias sem andar descalço.
Pelos copos, havia impressão de ter cacos no quarto, na cama, no banheiro. Mesmo depois que a mãe varria pro canto do quintal e jogava junto com a sujeira da pia, parecia sentir os farrapos de vidro roçando o casco do pé e o dorso na cama.
Quando algo se quebra, um novo nasce. Em alguns dias de ausência do copo quebrado, logo depois aparecia outro de liquidação, novinho, que não tinha propostas de terminar como o anterior. Vinha com um amontoado de papel dentro, para amortecer a queda do caminhão de transporte que acabava no escorredor.
Quebrar chama a atenção. Faz barulho, som que espalha.
Sempre achei curioso o copo que um dia é copo e depois vira caco. Um dia nos beija e no outro nos corta os lábios.
Tento imaginar como seria beber num copo que já é caco. Não trincado, mas os próprios pedacinhos de lâmina de vidro. Beber e deixar ver escorrer.
Algumas coisas na vida são como os copos. Caem da mesa, se quebram num acidente que não dá para segurar. Derrama algo que tinha dentro, chama a atenção. Faz um barulho que se espalha. Um oco alto primeiro e depois mínimos tons agudos espalhando a dor. Quando se encontra com o chão, alguns cacos são grandes, visíveis cortantes. Esses a gente varre. Com cuidado, cata com a mão e não corta. Os pequenos, pouco notados, cortam depois, quando entram, ficam no pé e nos lembram daquele uno que quebrou e parecia já ter partido sem mais. Inflamam, são pequenos visíveis que brilham se observados com cautela de lince. Nítido que não dá para pegar, nem com cuidado dos grandes. Devem ser varridos com vassoura de pêlo, pois piaçava não pega, não joga pra fora da nossa cozinha.
Depois dos cacos, renovação. Outro copo é colocado no escorredor; mesmo sabendo que um dia possa virar caco, a gente beija, seca e coloca para escorrer.
Quando algo se quebra, os cacos vão longe. E os maiores são os menos perigosos.

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