Acho a morte bela. Desculpe, mas é bela.
Ninguém explica e minhas afirmações sobre tal, não querem afirmar que ela não tenha me feito chorar e perder meus sensos, porém, a morte realmente é bela por não haver como confrontá-la.
Neste final de semana, um primo de longe morreu. O telefone tocou no início da madrugada e um frio gelou minha espinha. Mamãe atendeu e recebeu a notícia de que o ‘Negrinho’ tinha morrido. Infarto, daqueles que levam fulminante.
Antes de me dizer quem havia falecido, ouvi apenas um sujeito indeterminado em suas palavras e esses segundos em saber quem havia partido, me fez branco. Era um primo de longe, do interior, de quarenta e poucos. A imagem que me veio, ao saber que ele era agora o morto, era dele balançando uma válvula de privada entre as pernas, fazendo graça, arreganhando um de seus dentes podre. Poucas lembranças, mas como toda morte, fez lembrar, deu uma saudade e me fez olhar o antebraço e me auto-afirmar que não somos ‘nada’ de nada.
Motivos para encontrar beleza na morte é notar essas situações que cercam o fato. Lembrar, sentir saudade imediata, uma dor que se mistura com um platônico sentido de perda.
Pela fé religiosa, para algum lugar se vai. “Descansou”. Não há como acabar ali, numas que durou. No caso do primo, restaram lembranças, embora a família que compartilhava o banheiro com Negrinho estaria agora chorando e questionando os ventos. Para os que acreditam apenas em átomos, não há corredores, mas também não se acaba ali. A morte não é o fim para ambos os modos.
Contaram que o mais novo disse em chacota: “Meu pai morreu” e a tia ralhou dizendo para não dizer essas coisas. Era verdade, o pai estava morto em casa e ele disse isso antes de saber do destino. Histórias que aparecem e que ninguém desmente.
A notícia rodou por telefone e nosso cotidiano quase mudou. Minha mãe cogitou viajar para prestar os tributos convencionais, mas logo mediu seu convívio ultimato e desistiu alegando falta de dinheiro. Outro pormenor resultado do apego é o querer estar perto. Quando há distância de tempo, uma prece responde a ausência física.
Tenho lembranças amargas da morte. De um amigo, uma afilhada, um desconhecido e do avô. Ambos com proeminências individuais.
Desde o telefonema choroso, dizendo que o amigo se foi de maneira brutal, até a notícia de que o corpo da prima já estava no instituto de análises para doações.
O avô foi antes da primeira comunhão, quando toda a minha roupa branca já era alugada. Uma tia segunda da família veio avisar pelo vão do portão e as risadas dadas há pouco, agora eram lágrimas. Rimos horas com fotos, depois choramos durante anos.
Tenho uma imagem desse dia, quando fomos todos aos cortejos do velho, morto por uma pancreatite crônica. A imagem é a de um nascer do sol. Saímos de madrugada, depois de fazer malas tristes e partir para a cidade morta. A família toda pesada, com lágrimas quentes e silêncio no banco de trás. Ao cruzarmos o último trecho da rodovia antes de entrar na cidade, eu, sonolento, olhei para fora do carro lá na frente e vi um sol amarelinho, com belos raios e fiquei feliz rapidamente. Não pude compartilhar, só observei quieto. Tenho essa imagem nítida em minha mente e queria parar ali, sem ter que estar numa cerimônia relutante.
Do amigo, um dia à tarde após passar no açougue, lembrei que seu corpo descansava ali por perto. Resolvi ir, sentar e olhar para sua foto. Era muito bonito, de terno e camisa passada, sério em preto e branco. Chorei e quis abraçá-lo. Ele estava ali, embaixo.
As etapas da morte são todas de sofrimento. Desde quando se sabe que alguém amado se foi, até o momento de compartilhar essa notícia. Ver a pessoa. Sentir. Conformar-se dolorosamente. Ficar ali. Esquecer, tomar um café, observar a lua. Lembrar, chorar, cair em si.
Fechar, cortejar. Sair, voltar e sentar no sofá da sala. Perder-se nos pensamentos e notar que esteve olhando para uma parte branca da parede sem sentido nítido. Tentar dormir, acordar no outro dia após uma noite cheia de sonhos de mentira, no qual a pessoa estava vívida, alegre, em frente.
Levantar após horas de ensaio. Chorar mais, buscar no quintal. Olhar a pia cheia de louças e querer espatifar um copo na parede. Não adiantaria.
Essa é a parte, o triste gosto da morte.
Os anos passam e a conformidade é como um mar no qual antes parecia um abismo que hoje já se navega em águas mais profundas. Olha para trás e chora num choro mais conformado. Ainda há tristeza e uma etapa de superação humana que nunca terá fim.
Uma outra imagem me vem à cabeça quando vejo alguém que chora por outro que foi embora na morte. Imagino essas duas pessoas um dia se reencontrando. Sabendo que houve a morte, lembrando e dizendo que ‘eu chorei tanto, mas tanto, quando você foi embora’ e a outra pessoa rindo e dizendo que tudo passou e agora estão juntos novamente. É bonito, mas não sei como é.
Como seria esse reencontro? Imaginando sem pragmatismos religiosos ou qualquer sentido que o valha, mas apenas pelo sentido de poder. Pensando como uma situação normal, cotidiana, no qual se marca num lugar, de boas lembranças e ali haja o encontro, o re.
A morte me inspira escrever, pensar, sonhar e me encantar sem poder afirmar.
Um dia, ao visitar um cemitério humilde, passei pela ala dos anjos, de crianças mortas. Vi diversos túmulos com brinquedos coloridos, trens e cata-vento. Ali, crianças. E em um dos túmulos, talvez o mais humilde, havia apenas pedras brancas e brinquedos fincados na terra fofa e isso me entristeceu. Desse jazigo, podem-se tirar muitos pensamentos, como eu tive os meus. Inexplicáveis. Uma ida que dói nos outros, que faz levar esses plásticos coloridos a dormirem sobre o sereno da noite numa cova rasa. Ficaram ali, com o menino.
Peço desculpas por tentar escrever sobre a morte. Tudo o que falam sobre ela é ensaio.
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