Esse texto foi escrito e já foi publicado no meu finado blog passado. Gosto muito dele! Estive nesse barzinho perto da cidade onde eu moro e de lá nasceu essa crônica. Faz um tempo já, mas todo seu conteúdo ainda é muito verdadeiro e torna-se, aqui, poético. Espero que gostem.
O Inferno Necessário
De Daniel Pires
O Clima era pesado. Quem não era acostumado poderia até estranhar o ambiente e seus pertences. Lugar pequeno, esfumaçado pelos cigarros de maço, prostituta, “viados” e acorrentados, enfurnados em um inferninho agradável, ao som do samba e da cuíca. Bundas, abraços e línguas. Cerveja, brincos e topetes.
Luz verde, apenas duas lâmpadas acesas, meia-luz.
Era domingo. Um dia não tão comum para uma balada de fim de noite. As pessoas dali pareciam não se preocupar com o dia seguinte, com o trabalho, com o stress. Nem sabia se trabalhavam, não as conhecia. A animação era intensa quando lotavam o pequeno espaço situado no centro da grande cidade, que já dormia. De fora não diriam que adentro havia alegria. Havia sacanagem, libertinagem, menos alegria. Engano de quem pensa assim sem entrar e conferir.
O mal está no coração, no ato e no desejo e não na presença. Lembrei-me das noitadas em busca de aventuras, do prazer e do amor. Um engano sórdido pensar encontrar um sentido nas caladas da madrugada.
Quem estava ali queria beijo, palavras de momento e não importavam-se com a cinza segunda. Hoje pareço mais maduro.
Não queria estar, apenas ver. Nem notado queria ser, diferente de antes.
Ao olhar para aquelas vidas, tão vazias de si mesmo refleti sobre a minha. Estudo, trabalho, namoro com cheiro. Ali, dança, noite e coleguismo. Refletindo, me peguei na dúvida. Será que realmente suas vidas que são vazias?
Após duas latas de líquido gelado, meu corpo reclamou.
Passei entre as vidas. Sentia o cheiro de algumas, sentia o corpo de algumas. Não estava totalmente presente, apenas de passagem. No banheiro, o cheiro da urina, o piso sujo e a pia sem torneira.
“Apague a luz quando sair, obrigada” estava escrito com caneta borrão em papel branco com linhas, sobre o interruptor. Minha boba mente universitária corrigiu o lembrete. “Obrigado”.
- Por nada, respondi a mim mesmo.
O samba ficou mais alto, os pés mais rápidos juntos com a cintura. Todos dançavam.
No balcão, meio copo de cerveja esquecida. A negrinha recolhia e cantava o samba. Na porta um homem alto de barba por fazer. Tinha o meu nome, eu ouvi. Ele escreveu.
No outro lado, um homem bebia e trocava beijos com sua morena maquiada e com talco. Não, não era um homem. Era mulher, de bigode, camisa e jeans. Vi os seios, reconheci como mulher. Mesmo assim, continuava revezando entre o copo e a morena.
Ao fundo, de peruca longa, batom e salto nos pés pintados, um homem bebia e tragava. A mão com veias saltadas não negava que era um homem que procurava talvez sexo ou programa, ou dinheiro, ou nada. Não escondia seu sexo no rosto com maquiagem. Era o que era.
Ao lado, um casal de homem e mulher de verdade trocava carícias e cerveja também.
Como a natureza é sábia, pensei. Não dá ao homem o que ele quer e sim o faz buscar.
Uns querendo ser homens, outras querendo ser mulheres. No mesmo espaço, na mesma vida. Tudo poderia ser trocado. O sexo, a vontade e a cerveja. Mas não! Que graça teria se não houvesse a diversidade? Que graça teria se todos fossem o que querem? Eram de verdade sendo o que eram e o que quiserem ser.
A busca completa o homem, mesmo que leve a vida toda ou mesmo que não haja sentido nessa busca. Tem que se buscar.
Precisamos passar pelo inferno e refletir sobre ele. Participar do seu samba e rir sem motivo algum. A segunda é só amanhã, talvez ela nem chegue.
Imaginei comigo se eu estivesse com meu machismo atuante, não estaria ali, pois aquelas pessoas de barba e saia estariam me incomodando. Mas incomodando por quê? Não me fizeram mal algum. Estavam pagando seus consumos e não era em mim que depositavam seus beijos. Quantas pessoas politicamente e religiosamente “corretas” estariam naquele domingo que já dormia, fechadas sobre portas e janelas de aço, chorando pela amargura de uma vida sem graça e totalmente monótona.
Quantas pessoas julgam-se viver nas nuvens quando preparam suas próprias forcas.
E o samba continuava, o cavaco chorava e a alegria dos bigodes enternecia-se. A prostituta não queria sexo hoje, trabalho só amanhã.
O lugar agora tornou-se grande. As vidas interessantes e o inferno necessário.
Muito bom Daniel!
ResponderExcluirA vida é sempre um inferno necessário... E no fim, só há inferno praqueles que não dançam o samba...
A cena me lembrou o primeiro capítulo do meu livro, embora o som que "mascarasse" o inferno de lá fosse o jazz.
Parabéns pelo texto!