domingo, 29 de julho de 2012

Quem me viu, quem me vê

Um conhecido de décadas me chamou pelo bate-papo do Facebook, perguntando se podia 'me marcar' em algumas fotos antigas, na época em que eu cursava mecânica no Senai. Antes de responder, um turbilhão de lembranças invadiu minha cabeça e tentei buscar na memória quais imagens ainda permaneciam vivas em mim, de uma época que eu pouco quero me lembrar.
Hoje sou cinegrafista e editor de vídeos. Trabalho com reportagens audiovisuais e tenho muito orgulho da minha profissão. Porém, tenho ainda mais orgulho do caminho que trilhei para conseguir operar câmeras de vídeo ao invés de torno ou fresadora.
Meu pai trabalhava em uma indústria metalúrgica, em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, a terra do Lula. Aliás, voltando um pouco mais para trás, minha família veio do chão de fábrica, trabalhando em grandes indústrias de metalurgia como a Mercedes, Volks e GM. A lembrança que guardo do meu avô paterno, por exemplo, é de um velho brincalhão vestido num macacão azul com o logotipo da Mercedes Benz do Brasil, uma estrela de cinco pontas.
A família seguiu esse rumo. Meus tios, primos e meu pai trabalham com graxa, ferro e botas de couro. Este último que ajudou minha mãe à me colocar no mundo, foi o pivô que me empurrou ao mesmo trabalho do ex-presidente do Brasil.
Minha turma no Senai. Meados de 2001, acho. Eu rindo ao lado da Aline
Eu nunca quis, confesso. Sempre achei um trabalho sujo, literalmente falando. Sempre gostei de escrever (voilá), fazer teatro ou fantoches na casa da vó. Meu pai nunca me incentivou, embora ele ache estranho até hoje essa coisa de câmera, microfone e ilha de edição. Olhando para trás e para a criação que ele teve, apesar de não ter chego ainda aos cinquenta, percebo que a culpa não é dele, mas do modo de criação (ante)passada.
Entrei no Senai com 14 anos. Meu pai, trabalhava numa empresa chamada Irbas, ainda em São Bernardo. Prometeu que, se eu passasse no Senai, a empresa iria me fornecer estágio remunerado e isso seria 'bom para mim'. Fiz a prova e não tive muita certeza de que iria passar. O teste era cheio de números, exatas e nada de humanas.
Lembro-me de, na época, ver um comercial de lentes de contato na televisão e pela primeira vez ter a opotunidade de abandonar os óculos (que eu tanto odeio até hoje) e comprá-las com o meu dinheiro. Fiquei provisoriamente feliz e pela primeira vez quis passar nessa prova e começar ter minha vida assalariada.
Passei. E em terceiro lugar! Numa sala de exatos trinta e dois adolescentes sonhadores. Minha família ficou em êxtase e eu também fiquei feliz, até ir para a primeira aula dos próximos dois anos do curso de Mecânica de Usinagem.
As aulas mudavam conforme o semestre e as matérias variavam em álgebra, física, química e as aulas práticas. Não demorou muito para eu perceber que não queria seguir aquela carreira e desejei não ter passado naquela prova.
Ao contrário disso, meu pai estava satisfeito com o primogênito dele. Ao menos uma vez na vida eu pude corresponder ao futuro que ele imaginou ser o certo para mim.
Minhas aulas eram de apenas quatro horas diárias, sem finais de semana. Eu estudava à tarde, das 13h às 17h e ainda ganhava dois salários mínimos. Para um quatorze anos como eu, estava ótimo. Quer dizer, não estava.
As aulas começaram me intrigar. Eu não queria desistir e tirar dos meus pais o gosto de me ver 'subindo' na vida. Tudo o que eu tinha que fazer era estudar álgebra, aprender a desbastar, alisar e sangrar peças no torno mecânico, além de aprender a trabalhar com paquímetro.
Aquela brincadeira estava me deixando irritado e mais distante de fazer o que eu realmente queria: estudar cinema. Sim, eu queria estudar CI-NE-MA, enquanto aprendia as funções das ferramentas de corte para aço inoxidável 1090.
Eduardo Veroneze, eu com cara de empregada e Everton, me abraçando
Para se ter uma base, passando na prova, eu havia ganhado o curso completo de Mecânica. Dois anos!
Muita gente da minha sala tinha um brilho nos olhos. Alguns de famílias bem simples, outros com pais engenheiros, mas a maioria com sonhos se desenrolando e se concretizando naqueles primeiros passos fornecidos pelos professores do Senai.
Para mim, tudo estava ruim, mas ficaria pior: o estágio na empresa!
Como parte do contrato, eu teria que, nas férias, passar quatro horas estagiando numa empresa metalúrgica de verdade: na Irbas, onde papai trabalhava.
No primeiro dia lá, eu fui colocado numa bancada para limar (sabem o que é isso?) umas peças chamadas de 'cachorrinho'. Limar consistia em tirar as rebarbas (sabem o que é isso?²) da peça com uma lima.
Meu pai apresentou-me aos chefes modelos e dizia que era pra os velhotes 'cuidarem bem de mim', seguidos de risadas e muito barulho das máquinas ao redor.
Eu, de uniforme cinza, ninfo e com o logotipo da Irbas estampado no bolso à direita da minha camisa. Eu não imaginaria que, além dos dois anos de curso no Senai, eu trabalharia ali na Irbas mais outros três longos e depressivos anos, até ter dinheiro o suficiente para poder custear minha faculdade, mais tarde de rádio e TV.
No último ano de Senai, tive uma disciplina chamada "Redação para currículos" no qual eu pude mostrar um pouco dos meus dotes de escritor (pff) Foi a única matéria que eu consegui alcançar nota 100 em todos os exames. Nos demais, chegava no máximo ao 75. Lembro até do nome da professorinha dessa disciplina: Clementina, que adorava meus textos e dava pulinhos de alegria quando pedia para eu lê-los em sala.
Eu não era o único sonhador-anti nessa história. Um amigo, chamado Rodrigo, dividia a sala comigo, tinha o sonho de fazer artes cênicas e viver do teatro. Éramos o refúgio um do outro quando nos encontrávamos no refeitório para maldizer as aulas de informática e oficinas chatas, trocando ideias sobre peças teatrais, filmes e sonhos futuros.
Mais tarde reencontraria Rodrigo em outro trabalho, veja só.
No último semestre, isso em meados dos anos 2001, teve um processo seletivo para o curso de Ferramentaria, um curso caríssimo e em alta no mercado da época. Só os masters faziam esse curso, ou porquê tinham dinheiro para bancar e provavelmente se dariam bem num futuro promissor, ou porquê conseguiam passa na prova dificílima. Quase igual ao curso de "Publicidade" hoje em dia (rs). Todos da sala prestaram, inclusive eu, porém eu estava cagando para este curso e queria era terminar logo tudo aquilo. Para a alegria geral do papai e dos meus encarregados (vulgo chefes) eu passei, em último lugar. Pergunte se eu fiz: Não! Dessa vez eu me dei ao luxo de seguir o que eu achei certo. Meu pai esbravejou, disse que eu estava perdendo uma oportundade única e mimimi. 
Não consigo esquecer o último dia no Senai. Foi um dia quase sem aulas. Eu que sempre fui um aluno quieto e ranzinza, naquele dia estava saltitando pelos corredores. Eu não acreditava que estava acabando.
Quando saí pela portaria 1, junto com Rodrigo, olhei para trás e dei uma espiada lá dentro sentindo um forte alívio na alma por sair de lá. Porém, a empresa que mantinha meu estágio, resolveu me contratar.
Se eu for contar quantas vezes eu chorei, quantas vezes eu não quis ir trabalhar, quantas vezes eu entrei em depressão sozinho por causa do meu emprego, eu iria levar dias e entrar em depressão novamente. Resumindo, eu trabalhei mais três anos na Irbas, em horários alternados. Ora das duas às dez, ora das seis às duas. Segunda à sábado. Não sabia o que era pior. Quando eu entrava às seis da manhã, acordava quatro e meia da madrugada e às seis já estava em frente à maquina, de uniforme sujo, lente de contato e com muita coragem no rosto.
No horário de almoço, eu sempre sentava na calçada da empresa sozinho e lia o jornal do sindicato dos metalúrgicos. Um dia, vi uma notícia que me fez ir ao banheiro e chorar: em um acidente na Mercedes, um jovem de dezenove anos havia perdido o antebraço numa dessas fresadoras fodonas de cortar ferr, exatamente a mesma máquina que eu trabalhava lá. Não queria estar ali, mas numa ligação rápida para minha mãe ela pediu para eu aguentar que tudo iria passar logo. Mãe.
Foram tempos difíceis. Minha vontade de estudar cinema agora se fortaleceu, mas eu resolvi que iria começar fazendo Rádio e TV antes de estudar tal curso, pois ainda não tinha dinheiro/mercado para cursar Polanski, Hitchcock ou Von Trier.
Em casa, meu pai sonhava com Engenharia Mecânica, Mecatrônica ou qualquer área que me tornasse um engenheiro rico e cheio de subordinados. Cheguei a prestar um desses cursos, mas mais uma vez não cursei.
A guerra estava pronta. Meu pai se negou a me ajudar caso eu escolhesse essas 'porcarias de televisão, cinema e teatro'.
"Quer ser famoso, caraio?" dizia.
Senti que teria que pagar minha própria faculdade e custear todas as despesas caso eu escolhesse ir atrás do que eu realmente queria. E foi o que eu fiz.
Tive que trabalhar dois anos na Irbas para que o meu salário chegasse ao valor exato da mensalidade do curso em uma faculdade nem tão conceituada.
Quando eu passei a ganhar setecentos reais, prestei o vestibular e passei.
Ainda trabalhei um ano na Irbas estudando RTV. O primeiro ano inteiro eu paguei do meu bolso e até dinheiro de Avon minha mãe teve que arrecadar para poder interar algumas mensalidades.
Meu pai jamais levantou um centavo do dinheiro dele para me ajudar, porém o mínimo que ele fez foi parar de rogar pragas na profissão que eu havia escolhido.
No segundo ano, consegui uma bolsa 100% na universidade e abandonei de vez a metalúrgica. Repeti a cena do Senai. Eram duas da tarde, olhei para o páteo da Irbas e uma alma velha morria ali.

...tempo para respirar (e refletir)

Parece contos de fadas. E é.
Escrevi este texto para comprovar o tanto de memórias que me vieram à cabeça quando vi essas fotos do Senai de uma época que foi de aprendizado e muita luta, mas que não sinto nenhuma saudade.
Me formei em Rádio e TV em 2009 e nunca fiquei desempregado, sempre trabalhando na área. Graças à Deus, à mim, à minha mãe e à pessoas que me ajudaram (e me ajudam) muito nessa caminhada.
Tudo é aprendizado. No Senai, na Irbas... Vi realmente pelo suor e pelos machucados nas mãos, que a vida tem que ter uma época amarga para podermos reconhecer o que se tornará fruto doce mais tarde. Fiz amigos na empresa e por incrível que pareça, saí de lá por um pedido meu. Foi foda e tenho muito orgulho disso.
Acabou e não quero mais trabalhar com essa área. Os dias de amanhã são escuros, mas podemos clareá-los com nossas esperanças.
Desculpe-me por um texto tão grande e com erros de ortografia, mas não tive tempo para editar o passado.


A prova de que mesmo na metalúrgica eu já ensaiava meus passos no cinema

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Desova

Capítulo 1

Desligou.
Furiosa com a aquisição que tinha feito no início do ano, Berenice agora estava também triste por não conseguir ir morar no apartamento novo e bateu com força o telefone no gancho encerrando a conversa com o agente de vendas.
Tivera muitos problemas com o novo imóvel antes mesmo de obtê-lo e resolveu tomar um chá para acalmar os ânimos antes de dormir.
Levantou repentina da poltrona da sala e, soltando baforadas pelas ventas, dirigiu-se até a cozinha. Do outro canto da sala o marido levantou os olhos e perguntou se estava tudo bem.
- Não! Respondeu
O homem ouvia o tilintar dos talheres e das xícaras na cozinha. A mulher estava realmente atormentada com a demora para a entrega do apartamento que havia financiado há anos. Desde o réveillon, Berenice teve a promessa de pegar as chaves e se mudar para a Rua Maranhão, onde o novo edifício estava sendo construído, mas as obras atrasaram e os preços foram remanejados.
-Burocracia dos infernos, dizia consigo mesma. Nesse país tudo é demorado.
O marido, que trabalha indiretamente com vendas imobiliárias foi tentar acalmá-la, dizendo que o processo é realmente demorado e que os prazos sempre são prorrogados por questões orçamentárias e de ordens maiores. Até a obra ser finalizada ainda demorariam meses e o prazo máximo de entrega ainda não tinha sido rompido.
Os planos de Berenice e o marido era de se mudar até o carnaval daquele ano. Porém, estavam já próximos do feriado de todos os santos e nada havia realmente se concretizado. O casal esperava ansioso para a mudança e a mulher havia feito planos meticulosos para o novo apartamento. Um condomínio que deveria ser entregue pronto para colocar mobílias e abrigar novas famílias.
Apesar da compra singela, o imóvel custou caro e uma entrada de sessenta mil havia sido paga à vista. As prestações seriam parceladas sem acréscimo durante os próximos oito anos e o casal pretendia levar uma vida menos agitada do que vinham levando nos últimos meses com as preocupações no trabalho e ainda mais, com a demora para a entrega do que seria 'um novo lar'.
O marido entendia as aflições da esposa, mas entendia também que preocupações além da conta iriam acabar com o início de um novo ciclo naquele apartamento que tinham comprado juntos. Berenice estava prestes a se aposentar e o marido ainda teria que trabalhar mais uns cinco anos para poder se beneficiar do dinheiro do governo. Enquanto isso, resolveram vender a casa onde moravam para comprar um novo espaço onde poderiam ter um pouco mais de privacidade e sossego quando os dias brandos da terceira idade acercassem os dois.
Aquela noite estava quente. Berenice não quis alongar muito o papo com o marido, pois sabia que no outro dia teria que enfrentar novamente o agente. Preferiu deitar e tentar esquecer o assunto do apartamento. O marido permaneceu na sala, assistindo a um filme policial que logo acabaria. Havia perdido um terço da história conversando com a mulher na cozinha, mas logo entreteu-se novamente com os carros explodindo na televisão. Quando acordou, uma mulher sensual na tv, tirava parte da roupa em um piscina de águas bem azuis. Os olhos pesados do homem rapidamente correram sobre a sala vazia e deveras silenciosa.
Levantou-se, calçou os chinelos de pêlo e desligando a tv ouviu a respiração forte da mulher no quarto. Berenice sempre roncava quando tinha dormido ansiosa. O terço de madeira jogado na cama tornou-se uma arma caso a mulher se debruçasse sobre ele.
Serenamente, o marido tirou o acessório das mãos da esposa e o colocou na cômoda ao lado. Beijou sua testa e ela abriu os olhos assustada.
-Acalme-se, disse ele. Você dormiu rezando novamente. Boa noite.
Com um sorriso pequeno, Berenice fechou os olhos e só acordou no outro dia, com o telefone tocando insistentemente na sala.
Correndo, pisou no chão frio e fechou os olhos com os raios de sol que invadiam o lugar.
-Alô?
-Senhora Berenice, tenho novidades.
Berenice ouvia atentamente a voz rouca do vendedor do outro lado da linha, este que cuidava do caso de seu apartamento e que tinha prometido que no início do ano, as chaves estariam nas mãos do casal.
O marido ainda deitado, ouvia as respostas monossilábicas da esposa vindas da sala. Quando ela 'conversava' usando aquelas expressões, era sinal de que não estava acreditando no que o seu locutor estava tentando convencer-lhe.
-Obrigada, vou pensar e te retorno. E desligou.
Foi até a cozinha e acendeu o fogo para esquentar água. Gostava de café preparado no coador. Ouviu a voz do marido desejando-lhe 'bom dia' encostado na porta e com um sorriso fraco, respondeu o cumprimento.
-Quem era?
- O Jorge! Veio com outras lorotas...
Enquanto colocava água quente no coador de papel, explicou que outros problemas iriam afetar ainda mais a entrega do apartamento e que Jorge, o vendedor, tinha apresentado uma nova opção para o casal que queria um vida 'confortável e tranquila'.
Ao invéns do apartamento, Jorge queria vender-lhes uma antiga casa num local afastado da cidade.

Parte II

Antes ainda de sair para trabalhar, Berenice ligou para a irmã para saber como estava a mãe. A demência fraca que a atacara há uns dois anos, fazia com que a velha ficasse quieta e singelamente sorridente enquanto assistia aos demais com seus afazeres de casa.
-Está na mesma Berê, hoje ainda até que comeu um pouco, disse a irmã pelo telefone.
-Pois bem, talvez eu ainda passe aí lá pelas oito. Vou ver uma casa que me foi oferecida em troca do apartamento.
Desde o início, Berenice e o marido entraram em comum acordo que, morar em uma casa era a decisão mais sã a se tomar tratando-se do descanso que gostariam de ter dali para frente. Escadas, elevadores, vizinhos próximos e barulhentos eram os percalços negativos que morar em um apartamento traria, caso decidissem por isso, mas os preços para se ter uma nova casa eram bem maiores comparados a um apartamento mediano que poderia aconchegar bem o velho casal. Agora, com essa notícia de uma possível casa fora dos entornos da cidade, o desejo em obter um imóvel só para eles estava prestes a se realizar.
Os dois saíram juntos e a mulher foi dirigindo. Sempre, quando entravam no carro, Berenice questionava a passividade do marido. Em famílias tradicionais e socialmente corretas, é o marido que toma as decisões de grandes mudanças, escolhe a cor da casa e consequentemente dirige o automóvel num eventual festejo em família. Ali não. Ela sempre fora o alicerce da casa, tomando as decisões que, numa sociedade machista, eram designadas ao sexo masculino.
O homem é um bom marido. Trabalha com vendas imobiliárias, mas nunca chegou a ter uma carreira, com promoções e altos cargos. Tivera um ou dois empregos na vida e neste terceiro está até hoje, porém naquele dia, decidiu não ir ao trabalho para acompanhar a esposa na escolha daquela casa que talvez seria em breve seu novo lar.
-Como é a casa?
-Não sei. Jorge apenas adiantou que era grande e isso me preocupa um pouco.
As preocupações de Berenice eram muitas. Grandes casas, além do trabalho para limpar, manter a ordem e segurança seriam outros desafios. Sabia que para pequenos ajustes podia contar com o marido, mas como ambos trabalham fora, cogitou em pensamento ter uma empregada para lavar as roupas e preparar a comida. Casas em geral, chamam mais a atenção do que apartamentos. Embora houvesse na cidade um surto de arrastões em condomínios, o índice de invasores em residências era ainda maior. Percebeu que estava fazendo planos como se já tivesse aceito ficar com a nova oferta do vendedor.
Comentou com o marido, que não se lembrava de dizer à Jorge que seu real desejo era mesmo ter uma casa. Seu pensamento foi dando-lhe asas ao pensar que, essa casa poderia um dia ser alugada e eles poderiam viver em outro lugar, com o que ganhariam dali e de suas aposentadorias.
- Qual é a rua?
- Não é rua, é uma avenida. Respondeu o marido com o guia nas mãos. Avenida Anuás
Berenice dirigia por ruas com pequenos sobrados. A maioria deles com placas de venda ou prontas para alugar. Lembrou-se que Jorge falou bem da vizinhança e arredores, e realmente aquela rua era visivelmente bem cuidada, porém um tanto deserta.
-É para entrar por um beco, que dá de frente pra casa, disse Berenice enquanto passou por uma lombada.
-Ali, apontou o marido. Deve ser ali, com o indicador direito apontava para um beco murado por duas grandes casas.
Berenice estranhou o acesso à uma avenida ser feito por um beco. Avenidas geralmente são repletas de comércios, pontos de ônibus e pessoas. Fez meia volta e apontou o carro em direção àquele caminho que mais parecia um túnel no meio da cidade. Logo que adentrou o veículo, avistou um enorme sobrado que parecia ter sido construído simetricamente no fim daquele extenso beco que dava acesso à Avenida Anuás.
-Será que é aquela casa?
Teve certeza quando viu Jorge acenar ao longe, pequeno e franzino que era, ao lado daquele enorme casarão.

Parte III

Era enorme. Até sótão tinha.
- Deviam usar para guardar coisas velhas, disse Jorge.
Berenice havia gostado, mas suas preocupações com tamanho agora tornaram-se concretas quando caminhou entre os dois andares da casa e até perdeu-se do marido entre o quarto de hóspedes e o dormitório principal no segundo andar. 
A cozinha era mediana, no estilo antigo de construções não era tão grande. Embora não houvesse um fogão a lenha, havia uma estrutura no canto que pareceu ser reformada recentemente pela família que viveu ali.
A porta principal da casa revelava um corredor com dois espelhos do estilo penteadeira, um em frente ao outro. Só no fim estava a sala, com duas janelas que davam para a varanda dos fundos em um desenho oval. Era como se a casa tivesse sido construída após àquele corredor, que tinha o chão todo forrado por madeira maciça e as paredes com um papel de parede cor ocre. O acesso ao segundo andar dava-se por uma escada íngreme, com doze degraus. O corrimão também era de madeira e precisava de uma mão de tinta. Na parte superior, dois quartos, um banheiro em cada um deles. Uma área vazia, que ficava exatamente acima do corredor principal da casa, chamou a atenção do casal.
Jorge contou-lhes que a casa pertenceu a uma familia rica no início do século XX. Os Martin vieram de Sevilha, na Espanha e construíram o casarão para morar com os oito filhos. A casa não abrigou-os durante muito tempo e foi vendida após a morte do patrono Odilon Martin, quando sua família resolveu voltar à sua terra natal. Ficou abandonada quase trinta anos e depois fora novamente vendida para uma família do sul do Brasil.
- Eles nem chegaram a morar aqui, apenas compraram o imóvel e deixaram-o às moscas., explicou Jorge.
O marido de Berenice havia gostado do lugar, mas não palpitou muito sobre ficarem com a casa, pois achou estranho aquele grande descampado dar lugar apenas à uma estrutura daquele tamanho e, ao mesmo tempo, teve certo receio de morar em um lugar um tanto afastado da cidade.
Na verdade, o que separava o casarão da cidade, era o beco. A impressão era de que a casa fora construída exatamente no centro daquele círculo fechado com quadras de gramado. O chão era árido, sem cor. Não tinha grama verde e só depois de algumas quadras, dava para notar as primeiras residências.
Após a visita informal, o vendedor informou que o valor bruto daquela casa chegaria à cem mil reais. Que o tempo de abandono e o local afastado desfavoreciam o valor. Jorge ofereceu-lhes a casa em uma pechincha e disse que poderiam ficar muito bem ali, caso fosse sossego o que procuravam.
- Você é um charlatão Jorge, disse Berenice em tom de chacota. Conseguiu me convencer a morar novamente numa casa.
Todos riram e entenderam que a casa estava finalmente vendida.

O processo de mudança não fora tão fácil. As escrituras precisaram ser revistas com cautela antes que Berenice e o marido pudessem se mudar para o novo endereço. Ainda restavam oito anos para que o preço do apartamento fosse totalmente quitado e o acordo para a compra da nova casa foi mantido com o mesmo valor.
Há uma semana antes de se mudarem, a irmã de Berenice ligou dizendo que a mãe havia tido um surto durante a noite.
- Ela acordou e ficou chamando por você Berê.
- Será que foi o remédio?
- Pode ser, naquela noite disse que você estava novamente tramando das suas e custou a dormir de novo, disse a irmã. Levei um susto com ela sentada na cama na madrugada!
A mãe de Berenice sempre foi uma mulher muito sozinha. O pai faleceu logo que mudaram-se para a capital e ela teve que cuidar das duas filhas. Aos quarenta e seis anos teve um derrame e ficou com algumas sequelas. A velha consegue andar, mas com dificuldade e ora ou outra retira da mente alguma memória antiga e trata aquele pensamento como se estivesse acontecendo nos dias de hoje.
Em um dos surtos, a velha levantou à noite, arrumou-se e saiu de casa. Foi encontrada num terreno baldio, a quatro quarteirões de casa, sentada na porta de uma padaria fechada, às sete da manhã. Alegou ter ido trabalhar no campo, mas perdeu-se no caminho. Berenice foi buscá-la após um vizinho reconhecer e ligar para que alguém a ajudasse. Descobriram desde então, que a mãe estava com lapsos na memória e precisaria de cuidados especiais.
As irmãs revesam nos cuidados com a mãe. Berenice cuida no período de um ano e a irmã em outro. Recentemente a mãe estava com a irmã há quase quatro anos. Tinha se acostumado bem naquela casa térrea e até cuidava das samambaias da filha mais nova enquanto esta estava no trabalho. A mãe não ficava sozinha. Uma moça de nome Juliana, cuidava dela e ganhava por isso.
Num acordo amigável, as irmãs concordavam que a mãe só iria para casa de Berê quando quisesse. Caso contrário, ficaria com a caçula até quando pudesse.
Berenice como primogênita, ainda mantinha essa conduta de também cuidar da irmã, sempre comprando comida e roupas. Professora quase aposentada, mantinha em si uma postura maternal com a própria mãe e consequentemente com a irmã.
No dia da mudança, Berenice contratou uma empresa para cuidar dos móveis. O marido não pode acompanhar todo o processo naquele dia, pois estava prestes a fechar uma grande venda a um de seus clientes. A irmã foi acompanhar a mudança e até conseguiu se divertir no meio daquela bagunça com Berenice. As duas rememoraram juntas a primeira grande mudança que fizeram com os pais, em sessenta e três. Brincavam entre os móveis acumulados no canto da sala daquela casa que fora dos pais. A mãe, na época, brigava com as meninas por elas correrem entre os quadros e as mobílias ainda não posicionadas na nova casa. O pai, sempre muito sério, apenas dava ordem aos carregadores para que tomassem o máximo cuidado com as cômodas e espelhos.
- Fico feliz por você Berê
- Eu também. Estou me dando uma oportunidade de tentar uma vida mais calma.
Ainda faltava os móveis do quarto, que seriam entregues após uma semana. A cama era grande demais e foi preciso desmontá-la para que pudesse ser levada.
Ao levar uma cadeira para a sala de estar, a irmã de Berenice percebeu que o chão do corredor principal estava molhado nos cantos. Mostrou à irmã e perceberam que havia uma infiltração naquelas paredes escuras.
- Era só o que me faltava, disse Berenice. Vou ligar para o Jorge.
E quando pegou o telefone, percebeu que haviam quatro ligações perdidas da casa da irmã. 
- Nossa, acho que Juliana quer falar com a gente.
Ao ligar novamente, a ajudante atendeu.
- Oi Berê, aqui é a Juliana, babá da sua mãe. Pode falar?
- Aconteceu alguma coisa?
- Não. Na verdade sim, mas nada demais. É sua mãe...
Tapando o bocal do telefone, Berenice gesticulou para a irmã que a mãe parecia estar dando trabalho. Instigou Juliana a contar o que houve e ficou confusa com a voz suave da moça do outro lado da linha:
- Sua mãe disse que quer ir morar com você agora.

Parte IV


- Pronto, pronto, disse Berenice empurrando a cadeira de rodas da mãe. Agora está em nossa nova casa.
A velha olhou para os arredores do casarão e não articulou sequer uma palavra. A sala mostrava-se aconchegante, com pequenos raios de sol invadindo as janelas e o sofá velho que viera da casa velha, ocupando o centro.
Tinha marcado a mudança para sábado, pois poderia arrumar os demais cômodos durante os outros dias, visto que tinha tirado uma semana de folga na escola onde dava aulas. O marido chegaria depois das três da tarde e já sabia que a sogra iria novamente ficar hospedada com ele e a esposa. Não concordou prontamente quando Berenice resolveu trazer a velha logo nos primeiros dias na nova casa, mas achou melhor que os ares de uma nova vida pudessem também ajudá-los a recuperar qualquer lembrança boa em sua nova anfitriã. Mudanças de ares sempre são positivas, quando o cotidiano demora para responder.
A irmã de Berê ajudou trazendo as poucas roupas da velha. Grandes vestidos floridos, calções íntimos e bermudas largas. A mãe não gostava de roupas que lhe apertassem o busto.
No almoço, as três reuniram-se em volta da mesa e convidaram também Juliana, para conhecer o seu novo destino de trabalho. A moça magra, com aparência cansada, sempre foi muito atenciosa com a idosa. O caminho para o casarão não seria tão simples. A empregada teria que pegar duas conduções a mais para chegar à nova casa e Berenice marcou o almoço para acertar com a moça se ela continuaria ou não cuidando da mãe.
Juliana topou, mas por um período curto de experiência, afinal a senhorinha já tinha se acostumado com a sua imagem e com o modo com que ela tratava suas roupas.
A noite foi caindo. Berenice se deu conta de que não haviam postes de iluminação nos arredores de sua casa. Olhando pela janela da frente, percebeu um feixe laranja de luz que revelava apenas o beco que dava para o grande quintal da casa.
- Nem tinha percebido isso. Olha o breu que ficou isso aqui, resmungou para o marido que arrumava alguns sapatos velhos embaixo da escada.
- Jorge deveria ter falado que não tinha iluminação pública por aqui, retrucou o marido indo também à janela observar a escuridão ao redor da casa. Nossa... que escuridão, reclamou.
Berenice tentou não pensar de maneira negativa no assunto. Talvez, pelo tempo que a casa ficou desabitada, a prefeitura optou por não iluminar seus arredores para não chamar tanto a atenção. Propositalmente, seria esse o motivo para que nenhuma família desabrigada tomasse posse do lugar.
-A mocinha vai dormir aqui hoje? perguntou o marido.
- Vai
Sob uma luz fraca do abajur, Juliana arrumava a velha na cama. O segundo andar ainda estava semivazio e ambas ficariam num quarto pequeno próximo à cozinha no andar térreo, para que não precisassem subir ou descer escadas. A família que morou na casa, usava o quarto para receber hóspedes,  amigos ou parentes mais próximos. Depois, o quartinho ficou desabitado, servindo como um quarto de costura ou para guardar mantimentos.
Antes de subir para dormir, Berenice passou no quarto onde estava a mãe acompanhada de Juliana e desejou boas-noites. A moça acenou e viu a cabeça da velha virar para olhar a filha, mas sem nada dizer. No dia seguinte, passariam o domingo em casa, com a promessa de um belo almoço feito por Berenice e Juliana.
Já no quarto, o marido de Berenice lia um jornal antigo que encontrou embaixo das escadas. A mulher, ainda ajeitando alguns pertences no guarda-roupa, viu aquele papel velho nas mãos do marido e questionou o que era.
- Achei aqui em casa. É um jornal antigo.
- Deixa ver, disse a esposa colocando os óculos.
A manchete estampava conflitos acentuados com a questão do café no Brasil. Setores agrícolas manifestavam-se contra o governo da época e a imprensa sofria com a censura, sem poder denunciar mandantes e golpistas do governo. A imagem de um homem segurando uma bandeira confundia-se com as letras minúsculas da reportagem. Ambos agora estavam entretidos com aquele calhamaço sujo e, ao que tudo indicava, era um jornal de esquerda. Berenice logo deu de ombros e foi colocar outra roupa para dormir. Ao apagar a luz do corredor, teve a sensação de ver alguém em pé no primeiro degrau da escada. Olhou fixamente para o cômodo abaixo de seu quarto e seus olhos desenharam na escuridão o que poderia ser o ombro de um homem em pé. Acendeu a luz que pouco clareou os degraus e lá embaixo, continuou vendo aquele semblante encarando-a. Berenice apertou os olhos e chamou por Juliana. A moça respondeu do quarto, perguntando se ela precisava de alguma coisa.
- Não, só para desejar boa noite.
Percebeu que Juliana tinha acendido a luz e vinha até a escada, onde parecia que alguém a observava há pouco.
- Precisa de alguma coisa Berenice? E seu rosto se iluminou com a luz da sala.
- Não Juliana, não precisava ter levantado.
Juliana abaixou a cabeça e apagou novamente a luz da sala. Agora Berenice não viu mais nada.
Foi se deitar ao lado do marido, que já dormia pesadamente.

Continua...

domingo, 8 de julho de 2012

O quarto de Camila

"Essa história é verídica. Os fatos nela narrados aconteceram comigo e eu ainda tenho pretensões de voltar ao quarto, gravar algumas imagens em vídeo e tirar fotografias. O que me falta é coragem."

Conto em 1ª Pessoa
Parte I

No dia em que escrevi esta crônica, tive algumas revelações que me deixaram ainda mais curioso e confuso.
Numa noite de pizzas, fui convidado por um bando de mulheres amigas para jogar conversas fora e dançar no Wii. A festinha foi marcada numa sexta-feira, na casa de Camila, uma das minhas conhecidas que estava ansiosa para mostrar seu closet recheado de roupas e sapatos, além do seu quarto de dormir, com uma cama de chão e flores no papel de parede.
Chegamos, levando alegria uns aos outros, comemorando um final de semana que ainda nem havia chegado. A companhia das meninas me agrada muito e quando estamos juntos, esquecemos de nossas preocupações. São amigas há tempos e sempre que podemos, nos juntamos para brindar um suco, uma cerveja ou uma vodka, celebrando a saúde, jovialidade e o sexo, já não tão constante em nossas vidas quanto antes.
Neste dia, estávamos em sete pessoas. Conversávamos sobre trabalho, vida e muitas risadas enchiam a sala da casa. Camila mora numa casa aconchegante e alta. Por morar em rua de ladeira, o casa fica no alto, com uma escada de vinte e três degraus para chegar até a sala.
Da frente da casa, notam-se duas janelas, uma simetricamente perfeita acima da outra. A primeira janela, de vidro temperado e sem cortinas, revela a sala. Na janela de cima, o quarto que fora dos pais, hoje sem ninguém é fechada por vigas de aço.
Antes de as pizzas chegarem, Camila chamou-me para subir e ver o closet de roupas e também para ver como estava o andar superior da casa após a reforma que havia lhe custado caro. Estava animada com os resultados e logo subimos aos risinhos e gracejos para ver seu novo ninho.
Mostrou-me o embutido todo trabalhado em madeira envernizada, com cheiro de novo. As roupas organizadas davam um ar sofisticado ao desenho do móvel. Sapatos de várias cores, vestidos e toalhas dobradas como num hotel de luxo. O chão amadeirado, aquecia o local, tornando-o ainda mais aconchegante. O quarto com uma enorme cama, forrada com um lençol branco e uma grande televisão. Ela estava feliz com seu relacionamento que dava ares de casamento. Com tudo novo.
A escada ficava bem no meio do corredor entre o closet e o quarto dos pais. Uma porta agora separava um do outro.
Antes de descer, perguntei do quarto fechado por outra porta, bem em nossa frente, que era exatamente o quarto que durante anos abrigou os pais de Camila.
- Ah, aqui é o quarto dos meus pais, Dani, ela disse.
Eu sabia e já havia entrado ali, mas naquele dia, quis entrar novamente e rever o quarto semi vazio. Ela abriu, entrei ainda comentando sobre as novidades amadeiradas de fora e logo parei. 
Ao entrar, senti uma sensação estranha. Vi o pequeno banheiro de cor marrom, a cama de casal também forrada, essa com um lençol de babados, um crucifixo pendurado sobre a cama, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ao lado e um rack, vazio.
A sensação foi de peso nos olhos. Confesso que, já havia sentido essa estranha impressão de peso nas pálpebras em outras ocasiões e lugares, mas nesse dia, remeti esse estranhamento a um 'ar pesado' dentro daquele quarto.
- Nossa Camila, senti um ar pesado aqui, disse.
Ela estranhou e me perguntou se, esse 'ar' era bom ou ruim. Disse não saber, e não sei até hoje. Desconhecia, mas avancei para dentro do quarto, ainda escuro e a sensação intensificou-se. Ela riu de maneira acanhada e eu saí do quarto rindo também, mas para não deixá-la apreensiva.
Lá embaixo, as demais pessoas riam e conversavam sobre outras coisas.
Camila olhou para uma das meninas e disse que 'o Dani sentiu algo estranho no quarto dos pais'. Confirmei e a amiga disse que eu 'já ia começar' com minhas assombrações.
A pizza chegou. O assunto foi momentaneamente esquecido e nos entretemos com outras risadas e histórias. Até que, Camila perguntou para uma das amigas:
- Conto pra ele?
A amiga deu de ombros e respondeu:
- Você que sabe.

Parte II

Silêncio. Todos entreolharam-se e eu explodi:
- Ah, agora vai ter que contar!
Camila largou o pedaço de pizza e pegou o copo com Coca. Enquanto tomava um gole, contou que a irmã mais velha, hoje casada, deu uma festa na casa para amigos, há uns dez anos. Os pais haviam viajado e ela aproveitou para reunir os mais conhecidos e beber ao som de música alta.
Um amigo, que era Pai de Santo, não foi convidado, mas mesmo assim foi até a casa. Proibido de entrar, esbravejou e rogou pragas aos festejos. Tentaram acalmá-lo, dizendo que não era necessário aquele circo todo. Já que fazia tanta questão, deixaram-no entrar. Podia entrar e beber também, dado a desculpa de que não o acharam antes para fazer o convite. Uma briga passada seria o motivo para não tê-lo convidado, mas esse fator não fora mencionado.
O homem negou e disse que não queria entrar naquela casa amaldiçoada. Foi embora desejando que a festa tivesse seu ar desagradável. 
Camila continuou contando, que tarde da noite, um casalzinho que se atracava no sofá, resolveu subir para o quarto dos pais e ficarem sozinhos lá durante um tempo. E foram.
Conta-se que, após trinta ou quarenta minutos, a moça no quarto, começou a gritar pedindo ajuda e implorando por socorro.
Os mais sóbrios subiram e viram-na encostada na parede ao lado da cama, com a cabeça coberta pelos braços, enquanto o namorado revirava os olhos na cama e pendia os braços para trás. A voz que saía do moço era rouca e ameaçadora, com palavras indecifráveis. 
Camila nessa época era adolescente e achou tudo engraçado. Só percebeu a seriedade da situação quando a irmã a trancou em seu quarto, hoje mobiliado com cama de chão e flores na parede.
Ficaram lá e só depois do fim da algazarra, Camila foi saber que uma outra participante da festa, chamada Andréa, também foi ao socorro do casal e começou a praguejar e revirar os olhos assim como o rapaz fazia há pouco, deitado na cama. Ela era loira, de cabelos compridos, e ao tentar ajudar os jovens, sentiu um forte impacto e sentou-se repentinamente na cama dizendo obscenidades em um tom gutural.
Todos assustaram-se e correram para o andar de baixo dizendo que Andréa agora estava possessa, dominada por uma força maior. Antes de tomarem qualquer decisão, lembraram-se que, os pais dela eram frequentadores de uma capela do Sagrado Coração desde a sua fundação. Rezavam o terço e cantavam nas missas e talvez poderiam intervir nessa força oculta, que agora parecia ter-se apoderado da filha deles. Ligaram imediatamente e esperavam ansiosos.
Andréa ficou sozinha no quarto. Ora ou outra urrava como um animal e soltava palavras chulas.
Esbravejava, mas não levantava dos pés da cama. Os braços pendiam sobre as pernas e a cabeça dava trancos repetidos para o lado esquerdo com violência.
O casal agora estava na sala, embaraçados com o acontecido. O moço dizia não lembrar de muita coisa, só de estar olhando para o teto do quarto e ter visto um crucifixo na parede, depois acordara no chão com as pessoas ao seu lado. Viu Andréa contorcer-se e parecer ser jogada na cama, virando o tronco para frente, parando finalmente sentada. Confuso, foi levado para baixo enquanto a dona da festa e os mais conhecidos de Andréa tentavam inutilmente alguma comunicação verbal com ela. Foi quando as palavras foram cuspidas no ar e todos, amedontrados, desceram, a fim de não despertar o que quer que fosse em Andréa.
Então emudeceu. Os gritos cessaram assim que ela foi deixada sozinha no quarto escuro, ainda na cama, imóvel.
Camila ouviu de seu quarto fechado, os urros de Andréa no fim do corredor, mas não ousava sair. Percebeu quando os gritos cessaram e logo jurou ouvir passos de alguém no corredor. Assustada, encolheu-se na beliche de cima e ali ficou.
Os pais de Andréa chegaram, confusos e munidos de uma bíblia e um terço da ordem bizantina.
Em seu silêncio, Camila perguntou-se o que estava acontecendo e se Andréa não estava brincando com todos e não se deu conta de que apenas ela e Andréa estavam no segundo andar da casa. Ouviu a voz do pai da loira subindo as escadas. A mãe chamou a filha de longe e os urros recomeçaram.
Uma porta bateu forte, abafando os gritos. Era a porta do quarto dos pais que batera com violência. Camila, de bruços na cama, com os ouvidos próximos à parede, ouviu ao longe a voz rouca dizer:
- Quem chamou vocês aqui?

Parte III

Camila contou que estava apavorada e com vontade de chorar. Os gritos que haviam parado, retomaram com mais força. Andréa agora falava palavrões contra seus pais e dizia que algo como 'não vou devolver, não vou devolver...'
Todos os demais estavam na parte de baixo da casa, alguns ouvindo o show de horrores da sala, outros na rua, falando na calçada. Camila ouvia do quarto apenas algumas palavras das pessoas lá embaixo.
Silêncio novamente. As vozes agora também ficaram quietas e dava para ouvir apenas o ruído do estrato da cama dos pais. Era como se alguém andasse sobre o colchão.
Parece que tudo parou, que todos foram embora e a deixaram sozinha no quarto.
Aquilo que entrou em Andréa poderia entrar nela também e imaginou ser um mal invisível, algo das trevas, ruim.
Levantou a cabeça e tentou ouvir algo. O ruído do estrato também parou, mas não ouvira quando. Aquela quietude a preocupava. Tudo parecia ter desaparecido.
Após alguns minutos ainda deitada, resolveu levantar e abrir a porta. Suas pernas cambaleavam quando sentiu o chão. Próxima à porta, olhou primeiro pela fechadura que dava de frente para o quarto onde estava Andréa e os pais. Olhando, viu que a porta do quarto ainda estava fechada. Lembrou-se que, da janela do seu quarto, dava para ver a churrasqueira, onde há pouco estavam os amigos da irmã. Lentamente, abriu a janela e viu a varanda vazia. Estava acesa, com carne na brasa e o chão com marcas de pés. Ninguém.
Estava aflita. Não sabia se chamava alguém, se abria a porta ou se ficava ali esperando alguém se lembrar dela no quarto.
Batidas na porta.
- Cá! Pode sair... disse a irmã
Após uns segundos de silêncio amedrontador, Camila perguntou:
- Tá tudo bem aí fora?
- Sim, só algumas pessoas que não sabem beber.
Camila abriu a porta e viu a irmã com o rosto inchado. Parecia ter chorado muito, mas tentou desconversar com um sorriso fraco no rosto.
- Vamos dormir na vó. Amanhã a gente limpa aqui.
Sem hesitar, Camila pegou suas roupas de cama e embrulhou num lençol que há pouco estava embaixo dela. Quando saiu do quarto, viu que o quarto dos pais estava aberto e vazio. A cama revirada e as janelas fechadas. Sentiu um leve arrepio no braço esquerdo enquanto descia a escada que dava na sala, onde seu avô a esperava.
A casa estava vazia, a não ser por ela, a irmã e agora o avô, que as levaria para dormir em sua casa. Não conseguia tirar dos pensamentos os gritos de Andréa e ainda mais como saíram do quarto dos pais sem que ela percebesse ou ouvisse passos ou vozes. Simplesmente, as vozes e as pessoas saíram da casa de maneira muito silenciosa ou desapareceram.
No outro dia, ao voltar com a avó e a irmã, Camila olhou para a casa e teve medo de entrar. Questionou-se realmente se aquele ataque que atingiu duas pessoas  um dia antes, fora mesmo resultado de bebedeira, dúvida que a fez dormir e acordar de meia em meia hora. Pelo pouco que conhecia Andréa, não imaginava que ela faria isso a ponto de terem de chamar os pais para acalmá-la.
A avó veio junto ajudar na limpeza, visto que os pais de Camila voltariam no dia seguinte.
A casa estava uma desordem, com garrafas, espetos de madeira e copos de plástico por todo lado. A vó pediu que Camila e a irmã fossem limpar a cozinha e que lá em cima, como pouca gente tinha subido, ela mesma limparia.
A irmã estava muda, com um tom sério e visivelmente abalada com o fato da noite anterior e então resolveu não perguntar nada. Ouviu os passos da vó no andar superior, mas tentou se concentrar em recolher copinhos sujos da varanda.
Uma porta bateu forte lá em cima e logo ouviu-se um grito rápido de susto.
Camila paralisou-se. A irmã recomeçando a chorar gritou e chamou pela vó.
A porta de cima foi logo aberta e a voz da velha soou lá pela escada:
- Tudo bem meninas, foi só o vento que fechou a porta e eu me assustei.
Nem assim as duas relaxaram. A irmã largou o que estava fazendo e sentou-se no sofá, chorando e dizendo que queria sair dali. Camila foi consolar a irmã na sala, quando viu a vó descendo com um saco de lixo em uma mão e o abajur dos pais na outra.
- Camila, pegue esse saco e coloque lá no fundo.
- O abajur quebrou?
- Vai fazer o que estou pedindo
Camila estava com medo de andar pela casa, simplesmente de cruzar a cozinha. Jogou rapidamente o saco nos fundos e voltou para a sala. Mais tarde ela descobriria que o abajur infravermelho que o pai tanto estimava não tinha quebrado e sim, explodido.

Parte IV

Eu estava atônito. Não sabia se, me assustava com a história ou se me sentia feliz por ser um desses médiuns sensitivos que têm a capacidade de conversar e/ou enxergar espíritos caminhando entre os vivos. Não consegui distinguir se aquela energia que sentira há pouco no quarto dos pais de Camila era boa ou ruim, mesmo sendo questionado por todas as pessoas quando narro esse fato.
O clima de alegria daquela noite de pizzas estava por ora estacionado. Todos na sala agora prestavam atenção em Camila que, sem tantas delongas, deixou todos com medo até de cruzar a escada para ir ao banheiro.
De outras histórias que ouvi, espíritos são energias de pessoas mortas que ficam em lugares que lhes foram muito familiar em vida. Porém, muitas vezes, eles aproveitam do medo das pessoas vivas para poderem se fortalecer até ter capacidade para mover algum móvel ou fazer-se sentir por um vento que passa, ou um ar frio que estaciona em determinado lugar. Aquela situação me parecia bem mais perigosa, pois o que se 'apossou' do rapaz e também de Andréa, parecia perturbar o corpo de tal maneira que, se não fossem tomadas providências imediatas, como uma oração ou um mini exorcismo, aquilo poderia ferir fisicamente alguém.
Uma das meninas do grupo estava extremamente incomodada com a história e quis ir embora.
- Não vim aqui para ficar com medo, ouvindo besteiras de fantasmas.
Logo, foi convencida a ficar com a condição de que pararíamos de tocar no assunto.
Fiquei mais curioso, com uma vontade imensa de subir novamente ao quarto, sentar na cama e ficar ali por um momento sentindo a vibração do lugar. Deram-me essa ideia, mas não tive coragem sequer de ir ao segundo andar após saber de sua fama.
Após uns vinte minutos, enquanto as meninas jogavam na sala, fui até a cozinha onde Camila lavava as louças. Estava sozinha e aproveitei para tentar tirar mais fatos dela.
- Estranho né meu!? Eu nunca tinha ouvido essa história e senti isso entrando lá. Fiquei encucado!
- Sim Dani, respondeu-me, mas nunca ouvi nada lá.
- E seus pais?
- Também não.
Segundo ela, na época, os vizinhos ouviram os gritos, porquê depois contaram aos pais. Embora soubessem da festa, não sabiam do acontecido e pelo que me parece, até hoje não sabem.
- O pai da Andrea te conta se você ir lá perguntar, mas não sei se é bom tocar nesse assunto, disse-me Camila enquanto ensaboava um prato.
Questionei novamente, como foi que resolveram o assunto. Pelo que consta, os pais entraram no quarto com Andréa ainda falando palavrões e tendo comportamentos estranhos, mas ninguém se lembra, além dos pais, como saíram de lá e qual era o estado de Andréa.
O fato aconteceu há mais de dez anos. Camila relembrava com facilidade daquela noite de setembro que ouviu uma loira bonita e alta dizer coisas horríveis intercalando com urros animalescos.
Fui embora da casa de Camila com barriga e cabeça cheia. Não consegui dormir direito pensando no quarto semi-vazio. A cama arrumada, o crucifixo, a cômoda e a imagem da santa. Não contei à ninguém da família sobre minha sensação naquele lugar. Já tinha sentido esse estranhamento em outros lugares, principalmente se eu soubesse previamente a história dali. Qualquer história que seja.
Um dia, senti esse estranho torpor numa casa velha que fora de uns tios meus, na vila que morei quando criança. Eles já tinham mudado de lá há um tempo e quando eu soube que a casa estava aberta, fui até lá para ver como esta seria vazia. Havia passado muitos momentos naquela casinha de três cômodos, cresci brincando ali, tomando chuva e dormindo naquele quarto. Quando entrei, vi as mesmas vidraças na janela, a mesma porta e a sala, tudo vazio. Foi aí que senti esse peso nos olhos e na cabeça, algo físico mesmo. Minhas pupilas reviram e na região da testa aparece uma pequena vertigem. Foi esse mesmo sentimento que me invadiu quando entrei no quarto que fora dos pais de Camila.
Na outra semana, na missa das oito, vi os pais de Andréa. Não sabia se perguntava sobre o que tinha acontecido naquele quarto e como puderam tirar a filha do transe. Conheço bem os pais dela, são personagens prontos para um boa história de horror: católicos, unidos em um casamento longo, humildes e sempre com um sorriso no rosto. O enredo? Uma filha possuída pelo mal.
Naquela noite de domingo, após terminar a celebração, ambos vieram me cumprimentar e perguntar como estava em minha nova moradia no centro da cidade. Ouviram dizer eu havia me mudado e vieram conversar. Eu disse estar bem, mas o fato do quarto não saía da minha cabeça e vendo-os novamente após saber da história, imaginava seus rostos simples, atordoados com a imagem retorcida da filha que não era sua filha naquela noite. Sorrateiramente, eu disse que tinha um assunto delicado para tratar com eles, mas não ali dentro da igreja. Ambos olharam-me com uma dúvida no rosto, mas visivelmente dispostos a responder qualquer coisa. Porém, jamais imaginavam que o assunto seria os gritos roucos que a filha dera há anos.
Fiquei com receio de não vê-los novamente tão cedo e resolvi perguntar ali mesmo, ante o sacramento e os anjos pintados na parede. Alguns amigos estavam comigo quando comecei a contar a história do cômodo.
A mãe ouvia-me com as mãos dentro da jaqueta de lã e o pai, com os braços cruzados. O sorriso singelo de ambos tinha desaparecido.
Resumindo os fatos, terminado a história, perguntei se tudo aquilo era verídico e me arrependi de toda minha curiosidade e audácia em tocar neste assunto, quando a mãe de Andrea começou repentinamente a chorar.

Parte 5 - Final

- Sim, foi isso que aconteceu. respondeu a mãe de Andréa, enxugando lágrimas dos olhos. Isso nos perturbou durante anos. Minha filha ouvia vozes pedindo para ela se matar. Não conseguia entrar em casa, cruzar os portões.
Ouvia abismado às constatações daquela senhora. Então era verdade, e de uma veracidade que tinha causado transtornos àquela família.
- Passamos por momentos muito difíceis, disse. Hoje graças à Deus, Andréa melhorou.
O pai calado, só confirmava com a cabeça as constatações da esposa. De braços cruzados, só repetia algumas palavras que ela dizia e tentava mostrar-se calmo com a conversa.
Era nítido que o fato realmente aconteceu e que algo de errado esteve naquele quarto na época da festa e de alguma maneira se manifestou em duas pessoas. Resta descobrir o que era.
Do lado de fora da igreja, enquanto nos despedíamos, não citei mais nada sobre a história do quarto substituindo o assunto por música sacra. O pai de Andréa é compositor e há anos canta na igreja ao lado da esposa e de seu violão. A igreja fôra trancada após a missa e conversávamos na calçada, com a rua iluminada apenas por uma luz fraca vinda do poste. A mãe já estava no carro aguardando o marido que animado, contava sobre suas composições musicais. 
Eram quase dez da noite. Enquanto ele falava, percebi uma bexiga em formato de coração cruzar o breu que se fazia na lateral da igreja, mas meu olhar logo voltou rosto animado do velho. O frio estava ficando denso e com uma leve finalização no papo, entrei no carro de uma amiga e nos distanciamos da igreja e dos pais de Andréa.
Dentro do carro comentei:
- Ela chorou, você viu?
- Vi, comentou a motorista. Estranho né! Deve ter algo naquele quarto. Credo.
Cada vez mais a história parecia uma incógnita para mim. O fato de eu ter entrado e sentido algo estranho no ar sem saber da história me parece de um assombro único. Algo está alojado no quarto, sobre a cama ou mesmo encostado no canto da parede.
Não consegui cruzar o quarto naquela noite de pizzas e desci com calafrios pelos cotovelos.
Na noite em que resolvi escrever este conto, sentei sobre minha mesa no quarto e iniciei as lembranças das noites de mistério. Escrevi até o quarto capítulo e quando estava escrevendo este último, resolvi deixá-lo para ser finalizado no outro dia.
Quando acordei, senti uma dor cortante no pescoço. Ao olhar no espelho, vi marcas como se fossem feitas por um gato com unhas bem afiadas na parte da frente e no lado esquerdo do pescoço, que estava todo arranhado, consequência de uma coceira abrupta que me deu durante a madrugada. Ao passar os dedos nas marcas, lembrei da sensação de uma unha quebrada percorrer meu pescoço suavizando a coceira, mas ao mesmo tempo abrindo um longo ferimento até próximo do peito. Na minha lembrança, as unhas eram minhas e tamanha era a coceira. Conferi meus dedos e as unahs não eram afiadas e só com uma força enorme eu faria aquelas marcas em meu próprio pescoço. Lembrei-me de alguns flashs que tive ao abrir rapidamente os olhos na madrugada, enquanto coçava bem abaixo do meu queixo. No sonho, estava deitado numa cama de casal com uma parede enorme atrás de mim. Era uma parede branca, com rachaduras pequenas e sem janela..
As marcas eram feitas de baixo para cima, começavam no fim do peito e acabavam no queixo.
Contando isso para alguns amigos do trabalho e mostrando as marcas, disseram que eu havia ficado impressionado com a história de fantasma e feito os arranhões no pescoço. Fora os mais engraçados que me perguntavam se eu não tinha dormido com um terceiro personagem da história.
De tardezinha, logo no começo da noite, vi que Camila tinha me ligado várias vezes no celular, mas não consegui atender. Em uma mensagem de texto, me disse que queria fazer mais uma noite de pizzas em sua casa e se eu estava afim de participar. No fim da mensagem, tentando me aliviar sobre quaisquer pensamentos ruins sobre o quarto, escreveu:
- Para te provar que não há nada lá, fiz uma limpeza no quarto e tirei o crucifixo da parede. E hoje mesmo vou passar a dormir lá.
O quarto passaria a ser seu, desde então.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Saudade de hoje e amanhã

Crescemos! Essa é a resposta. E a tristeza.
Dia desses, conversando com um conhecido do trabalho, tentávamos encontrar pistas para descobrir os motivos de nossas friezas atuais. Quando digo 'nossas', digo de grande parte das pessoas que cercam a grande cidade. Temos dificuldades de fortalecer amizades, de abraçar, beijar e ligar depois de um tempo. Em alguns segundos, no meio do papo, tentamos lembrar de amigos. Aqueles que temos vergonha de brigar. Que amamos e não conseguimos dizer. São poucos, são muitos. Não dá para classificar amigo do colega, conhecido do de vista. Tentei encontrar alguns motivos que nos afastam das pessoas, que nos impede de se achegar e ficar junto num momento.
Interesse move algumas proximidades, estreita os caminhos e passa a ser chave para uma possível aliança. Minimidades como um trocadilho. Lágrimas são raras. Nesse caso o sorriso passa a ser o de menor importância. Tem todo dia. Vivemos buscando emprego, beleza e outro parcial que nos aguente, mas esquecemos de classificar os amados amigos nessa relutância. Temos habilidades na fala, na escrita, nas relações sociais e perdemos o gosto das amizades cultivadas, de ter amigo por ter. Andamos por aí, viajando por países belos, mas sempre sozinhos. Imagens na rede, milhares de contatos e fontes para ergonomia, trabalho no campo e sauditas, mas não temos essência simples, de amor autruísta e beleza consciente. Somos tristes, tão tristes. Presos em commodities de prazer. Lençóis de melancolia.
Faz tempo que não vemos o mar, viajamos com nossos pais ou visitamos uma criança que nasceu. Não queremos filhos, não suportamos pessoas demais no apartamento. Queremos o quintal limpo, sem árvore. Quando a gente vê um amigo de bons momentos passados, logo se lembra, ri e deseja ser mais feliz. Faz nostalgia. Ficamos mendigando banhos quentes. Temos dor no ombro, na sola dos pés e estamos calvos, tudo resultado da distância bem próxima que cultivamos com nossos trabalhos paralelos.
Vemos que é importante depois que foi embora, que acabou e queremos de novo, mas não cultivamos o hoje. Parece que tudo que foi, tem gosto puritano. Hoje, sofremos, ontem sorrimos. E não.
Há sol hoje. Tem amor lá fora. Tem dor também, mas tem remédio.
Tempo para as letras, para o canto, passarinhos. Engordamos tanto que nosso corpo está feio. Emagrecemos na base de remédios e também ficamos feios. Passamos por cima, subimos nas costas e gozamos rápido. Eu que valho, o outro nem tanto.
Crescemos tanto e nos entristecemos sem motivo. Temos saudade e pouco apreço por um tempo que podemos fazer melhor e tão bonito.