Capítulo 1
Desligou.
Furiosa com a aquisição que tinha feito no início do ano, Berenice agora estava também triste por não conseguir ir morar no apartamento novo e bateu com força o telefone no gancho encerrando a conversa com o agente de vendas.
Tivera muitos problemas com o novo imóvel antes mesmo de obtê-lo e resolveu tomar um chá para acalmar os ânimos antes de dormir.
Levantou repentina da poltrona da sala e, soltando baforadas pelas ventas, dirigiu-se até a cozinha. Do outro canto da sala o marido levantou os olhos e perguntou se
estava tudo bem.
- Não! Respondeu
O homem ouvia o tilintar dos talheres e das xícaras na cozinha. A mulher estava realmente atormentada com a demora para a entrega do apartamento que havia financiado há anos. Desde o réveillon, Berenice teve a promessa de pegar as chaves e se mudar para a Rua Maranhão, onde o novo edifício estava sendo construído, mas as obras atrasaram e os preços foram remanejados.
-Burocracia dos infernos, dizia consigo mesma. Nesse país tudo é demorado.
O marido, que trabalha indiretamente com vendas imobiliárias foi tentar acalmá-la, dizendo que o processo é realmente demorado e que os prazos sempre são prorrogados por questões orçamentárias e de ordens maiores. Até a obra ser finalizada ainda demorariam meses e o prazo máximo de entrega ainda não tinha sido rompido.
Os planos de Berenice e o marido era de se mudar até o carnaval daquele ano. Porém, estavam já próximos do feriado de todos os santos e nada havia realmente se concretizado. O casal esperava ansioso para a mudança e a mulher havia feito planos meticulosos para o novo apartamento. Um condomínio que deveria ser entregue pronto para colocar mobílias e abrigar novas famílias.
Apesar da compra singela, o imóvel custou caro e uma entrada de sessenta mil havia sido paga à vista. As prestações seriam parceladas sem acréscimo durante os próximos oito anos e o casal pretendia levar uma vida menos agitada do que vinham levando nos últimos meses com as preocupações no trabalho e ainda mais, com a demora para a entrega do que seria 'um novo lar'.
O marido entendia as aflições da esposa, mas entendia também que preocupações além da conta iriam acabar com o início de um novo ciclo naquele apartamento que tinham comprado juntos. Berenice estava prestes a se aposentar e o marido ainda teria que trabalhar mais uns cinco anos para poder se beneficiar do dinheiro do governo. Enquanto isso, resolveram vender a casa onde moravam para comprar um novo espaço onde poderiam ter um pouco mais de privacidade e sossego quando os dias brandos da terceira idade acercassem os dois.
Aquela noite estava quente. Berenice não quis alongar muito o papo com o marido, pois sabia que no outro dia teria que enfrentar novamente o agente. Preferiu deitar e tentar esquecer o assunto do apartamento. O marido permaneceu na sala, assistindo a um filme policial que logo acabaria. Havia perdido um terço da história conversando com a mulher na cozinha, mas logo entreteu-se novamente com os carros explodindo na televisão. Quando acordou, uma mulher sensual na tv, tirava parte da roupa em um piscina de águas bem azuis. Os olhos pesados do homem rapidamente correram sobre a sala vazia e deveras silenciosa.
Levantou-se, calçou os chinelos de pêlo e desligando a tv ouviu a respiração forte da mulher no quarto. Berenice sempre roncava quando tinha dormido ansiosa. O terço de madeira jogado na cama tornou-se uma arma caso a mulher se debruçasse sobre ele.
Serenamente, o marido tirou o acessório das mãos da esposa e o colocou na cômoda ao lado. Beijou sua testa e ela abriu os olhos assustada.
-Acalme-se, disse ele. Você dormiu rezando novamente. Boa noite.
Com um sorriso pequeno, Berenice fechou os olhos e só acordou no outro dia, com o telefone tocando insistentemente na sala.
Correndo, pisou no chão frio e fechou os olhos com os raios de sol que invadiam o lugar.
-Alô?
-Senhora Berenice, tenho novidades.
Berenice ouvia atentamente a voz rouca do vendedor do outro lado da linha, este que cuidava do caso de seu apartamento e que tinha prometido que no início do ano, as chaves estariam nas mãos do casal.
O marido ainda deitado, ouvia as respostas monossilábicas da esposa vindas da sala. Quando ela 'conversava' usando aquelas expressões, era sinal de que não estava acreditando no que o seu locutor estava tentando convencer-lhe.
-Obrigada, vou pensar e te retorno. E desligou.
Foi até a cozinha e acendeu o fogo para esquentar água. Gostava de café preparado no coador. Ouviu a voz do marido desejando-lhe 'bom dia' encostado na porta e com um sorriso fraco, respondeu o cumprimento.
-Quem era?
- O Jorge! Veio com outras lorotas...
Enquanto colocava água quente no coador de papel, explicou que outros problemas iriam afetar ainda mais a entrega do apartamento e que Jorge, o vendedor, tinha apresentado uma nova opção para o casal que queria um vida 'confortável e tranquila'.
Ao invéns do apartamento, Jorge queria vender-lhes uma antiga casa num local afastado da cidade.
Parte II
Antes ainda de sair para trabalhar, Berenice ligou para a irmã para saber como estava a mãe. A demência fraca que a atacara há uns dois anos, fazia com que a velha ficasse quieta e singelamente sorridente enquanto assistia aos demais com seus afazeres de casa.
-Está na mesma Berê, hoje ainda até que comeu um pouco, disse a irmã pelo telefone.
-Pois bem, talvez eu ainda passe aí lá pelas oito. Vou ver uma casa que me foi oferecida em troca do apartamento.
Desde o início, Berenice e o marido entraram em comum acordo que, morar em uma casa era a decisão mais sã a se tomar tratando-se do descanso que gostariam de ter dali para frente. Escadas, elevadores, vizinhos próximos e barulhentos eram os percalços negativos que morar em um apartamento traria, caso decidissem por isso, mas os preços para se ter uma nova casa eram bem maiores comparados a um apartamento mediano que poderia aconchegar bem o velho casal. Agora, com essa notícia de uma possível
casa fora dos entornos da cidade, o desejo em obter um imóvel só para eles estava prestes a se realizar.
Os dois saíram juntos e a mulher foi dirigindo. Sempre, quando entravam no carro, Berenice questionava a passividade do marido. Em famílias tradicionais e socialmente corretas, é o marido que toma as decisões de grandes mudanças, escolhe a cor da casa e consequentemente dirige o automóvel num eventual festejo em família. Ali não. Ela sempre fora o alicerce da casa, tomando as decisões que, numa sociedade machista, eram designadas ao sexo masculino.
O homem é um bom marido. Trabalha com vendas imobiliárias, mas nunca chegou a ter uma carreira, com promoções e altos cargos. Tivera um ou dois empregos na vida e neste terceiro está até hoje, porém naquele dia, decidiu não ir ao trabalho para acompanhar a esposa na escolha daquela casa que talvez seria em breve seu novo lar.
-Como é a casa?
-Não sei. Jorge apenas adiantou que era grande e isso me preocupa um pouco.
As preocupações de Berenice eram muitas. Grandes casas, além do trabalho para limpar, manter a ordem e segurança seriam outros desafios. Sabia que para pequenos ajustes podia contar com o marido, mas como ambos trabalham fora, cogitou em pensamento ter uma empregada para lavar as roupas e preparar a comida. Casas em geral, chamam mais a atenção do que apartamentos. Embora houvesse na cidade um surto de arrastões em condomínios, o índice de invasores em residências era ainda maior. Percebeu que estava fazendo planos como se já tivesse aceito ficar com a nova oferta do vendedor.
Comentou com o marido, que não se lembrava de dizer à Jorge que seu real desejo era mesmo ter uma casa. Seu pensamento foi dando-lhe asas ao pensar que, essa casa poderia um dia ser alugada e eles poderiam viver em outro lugar, com o que ganhariam dali e de suas aposentadorias.
- Qual é a rua?
- Não é rua, é uma avenida. Respondeu o marido com o guia nas mãos. Avenida Anuás
Berenice dirigia por ruas com pequenos sobrados. A maioria deles com placas de venda ou prontas para alugar. Lembrou-se que Jorge falou bem da vizinhança e arredores, e realmente aquela rua era visivelmente bem cuidada, porém um tanto deserta.
-É para entrar por um beco, que dá de frente pra casa, disse Berenice enquanto passou por uma lombada.
-Ali, apontou o marido. Deve ser ali, com o indicador direito apontava para um beco murado por duas grandes casas.
Berenice estranhou o acesso à uma avenida ser feito por um beco. Avenidas geralmente são repletas de comércios, pontos de ônibus e pessoas. Fez meia volta e apontou o carro em direção àquele caminho que mais parecia um túnel no meio da cidade. Logo que adentrou o veículo, avistou um enorme sobrado que parecia ter sido construído simetricamente no fim daquele extenso beco que dava acesso à Avenida Anuás.
-Será que é aquela casa?
Teve certeza quando viu Jorge acenar ao longe, pequeno e franzino que era, ao lado daquele enorme casarão.
Parte III
Era enorme. Até sótão tinha.
- Deviam usar para guardar coisas velhas, disse Jorge.
Berenice havia gostado, mas suas preocupações com tamanho agora tornaram-se concretas quando caminhou entre os dois andares da casa e até perdeu-se do marido entre o quarto de hóspedes e o dormitório principal no segundo andar.
A cozinha era mediana, no estilo antigo de construções não era tão grande. Embora não houvesse um fogão a lenha, havia uma estrutura no canto que pareceu ser reformada recentemente pela família que viveu ali.
A porta principal da casa revelava um corredor com dois espelhos do estilo penteadeira, um em frente ao outro. Só no fim estava a sala, com duas janelas que davam para a varanda dos fundos em um desenho oval. Era como se a casa tivesse sido construída após àquele corredor, que tinha o chão todo forrado por madeira maciça e as paredes com um papel de parede cor ocre. O acesso ao segundo andar dava-se por uma escada íngreme, com doze degraus. O corrimão também era de madeira e precisava de uma mão de tinta. Na parte superior, dois quartos, um banheiro em cada um deles. Uma área vazia, que ficava exatamente acima do corredor principal da casa, chamou a atenção do casal.
Jorge contou-lhes que a casa pertenceu a uma familia rica no início do século XX. Os Martin vieram de Sevilha, na Espanha e construíram o casarão para morar com os oito filhos. A casa não abrigou-os durante muito tempo e foi vendida após a morte do patrono Odilon Martin, quando sua família resolveu voltar à sua terra natal. Ficou abandonada quase trinta anos e depois fora novamente vendida para uma família do sul do Brasil.
- Eles nem chegaram a morar aqui, apenas compraram o imóvel e deixaram-o às moscas., explicou Jorge.
O marido de Berenice havia gostado do lugar, mas não palpitou muito sobre ficarem com a casa, pois achou estranho aquele grande descampado dar lugar apenas à uma estrutura daquele tamanho e, ao mesmo tempo, teve certo receio de morar em um lugar um tanto afastado da cidade.
Na verdade, o que separava o casarão da cidade, era o beco. A impressão era de que a casa fora construída exatamente no centro daquele círculo fechado com quadras de gramado. O chão era árido, sem cor. Não tinha grama verde e só depois de algumas quadras, dava para notar as primeiras residências.
Após a visita informal, o vendedor informou que o valor bruto daquela casa chegaria à cem mil reais. Que o tempo de abandono e o local afastado desfavoreciam o valor. Jorge ofereceu-lhes a casa em uma pechincha e disse que poderiam ficar muito bem ali, caso fosse sossego o que procuravam.
- Você é um charlatão Jorge, disse Berenice em tom de chacota. Conseguiu me convencer a morar novamente numa casa.
Todos riram e entenderam que a casa estava finalmente vendida.
O processo de mudança não fora tão fácil. As escrituras precisaram ser revistas com cautela antes que Berenice e o marido pudessem se mudar para o novo endereço. Ainda restavam oito anos para que o preço do apartamento fosse totalmente quitado e o acordo para a compra da nova casa foi mantido com o mesmo valor.
Há uma semana antes de se mudarem, a irmã de Berenice ligou dizendo que a mãe havia tido um surto durante a noite.
- Ela acordou e ficou chamando por você Berê.
- Será que foi o remédio?
- Pode ser, naquela noite disse que você estava novamente tramando das suas e custou a dormir de novo, disse a irmã. Levei um susto com ela sentada na cama na madrugada!
A mãe de Berenice sempre foi uma mulher muito sozinha. O pai faleceu logo que mudaram-se para a capital e ela teve que cuidar das duas filhas. Aos quarenta e seis anos teve um derrame e ficou com algumas sequelas. A velha consegue andar, mas com dificuldade e ora ou outra retira da mente alguma memória antiga e trata aquele pensamento como se estivesse acontecendo nos dias de hoje.
Em um dos surtos, a velha levantou à noite, arrumou-se e saiu de casa. Foi encontrada num terreno baldio, a quatro quarteirões de casa, sentada na porta de uma padaria fechada, às sete da manhã. Alegou ter ido trabalhar no campo, mas perdeu-se no caminho. Berenice foi buscá-la após um vizinho reconhecer e ligar para que alguém a ajudasse. Descobriram desde então, que a mãe estava com lapsos na memória e precisaria de cuidados especiais.
As irmãs revesam nos cuidados com a mãe. Berenice cuida no período de um ano e a irmã em outro. Recentemente a mãe estava com a irmã há quase quatro anos. Tinha se acostumado bem naquela casa térrea e até cuidava das samambaias da filha mais nova enquanto esta estava no trabalho. A mãe não ficava sozinha. Uma moça de nome Juliana, cuidava dela e ganhava por isso.
Num acordo amigável, as irmãs concordavam que a mãe só iria para casa de Berê quando quisesse. Caso contrário, ficaria com a caçula até quando pudesse.
Berenice como primogênita, ainda mantinha essa conduta de também cuidar da irmã, sempre comprando comida e roupas. Professora quase aposentada, mantinha em si uma postura maternal com a própria mãe e consequentemente com a irmã.
No dia da mudança, Berenice contratou uma empresa para cuidar dos móveis. O marido não pode acompanhar todo o processo naquele dia, pois estava prestes a fechar uma grande venda a um de seus clientes. A irmã foi acompanhar a mudança e até conseguiu se divertir no meio daquela bagunça com Berenice. As duas rememoraram juntas a primeira grande mudança que fizeram com os pais, em sessenta e três. Brincavam entre os móveis acumulados no canto da sala daquela casa que fora dos pais. A mãe, na época, brigava com as meninas por elas correrem entre os quadros e as mobílias ainda não posicionadas na nova casa. O pai, sempre muito sério, apenas dava ordem aos carregadores para que tomassem o máximo cuidado com as cômodas e espelhos.
- Fico feliz por você Berê
- Eu também. Estou me dando uma oportunidade de tentar uma vida mais calma.
Ainda faltava os móveis do quarto, que seriam entregues após uma semana. A cama era grande demais e foi preciso desmontá-la para que pudesse ser levada.
Ao levar uma cadeira para a sala de estar, a irmã de Berenice percebeu que o chão do corredor principal estava molhado nos cantos. Mostrou à irmã e perceberam que havia uma infiltração naquelas paredes escuras.
- Era só o que me faltava, disse Berenice. Vou ligar para o Jorge.
E quando pegou o telefone, percebeu que haviam quatro ligações perdidas da casa da irmã.
- Nossa, acho que Juliana quer falar com a gente.
Ao ligar novamente, a ajudante atendeu.
- Oi Berê, aqui é a Juliana, babá da sua mãe. Pode falar?
- Aconteceu alguma coisa?
- Não. Na verdade sim, mas nada demais. É sua mãe...
Tapando o bocal do telefone, Berenice gesticulou para a irmã que a mãe parecia estar dando trabalho. Instigou Juliana a contar o que houve e ficou confusa com a voz suave da moça do outro lado da linha:
- Sua mãe disse que quer ir morar com você agora.
Parte IV
- Pronto, pronto, disse Berenice empurrando a cadeira de
rodas da mãe. Agora está em nossa nova casa.
A velha olhou para os arredores do casarão e não articulou
sequer uma palavra. A sala mostrava-se aconchegante, com pequenos raios de sol invadindo
as janelas e o sofá velho que viera da casa velha, ocupando o centro.
Tinha marcado a mudança para sábado, pois poderia arrumar os
demais cômodos durante os outros dias, visto que tinha tirado uma semana de folga na
escola onde dava aulas. O marido chegaria depois das três da tarde e já sabia
que a sogra iria novamente ficar hospedada com ele e a esposa. Não concordou
prontamente quando Berenice resolveu trazer a velha logo nos primeiros dias na
nova casa, mas achou melhor que os ares de uma nova vida pudessem também ajudá-los
a recuperar qualquer lembrança boa em sua nova anfitriã. Mudanças de ares
sempre são positivas, quando o cotidiano demora para responder.
A irmã de Berê ajudou trazendo as poucas roupas da velha.
Grandes vestidos floridos, calções íntimos e bermudas largas. A mãe não gostava
de roupas que lhe apertassem o busto.
No almoço, as três reuniram-se em volta da mesa e convidaram
também Juliana, para conhecer o seu novo destino de trabalho. A moça magra, com
aparência cansada, sempre foi muito atenciosa com a idosa. O caminho para o
casarão não seria tão simples. A empregada teria que pegar duas conduções a
mais para chegar à nova casa e Berenice marcou o almoço para acertar com a moça
se ela continuaria ou não cuidando da mãe.
Juliana topou, mas por um período curto de experiência, afinal
a senhorinha já tinha se acostumado com a sua imagem e com o modo com que ela tratava suas roupas.
A noite foi caindo. Berenice se deu conta de que não haviam postes
de iluminação nos arredores de sua casa. Olhando pela janela da frente,
percebeu um feixe laranja de luz que revelava apenas o beco que dava para o
grande quintal da casa.
- Nem tinha percebido isso. Olha o breu que ficou isso aqui,
resmungou para o marido que arrumava alguns sapatos velhos embaixo da escada.
- Jorge deveria ter falado que não tinha iluminação pública
por aqui, retrucou o marido indo também à janela observar a escuridão ao redor
da casa. Nossa... que escuridão, reclamou.
Berenice tentou não pensar de maneira negativa no assunto.
Talvez, pelo tempo que a casa ficou desabitada, a prefeitura optou por não
iluminar seus arredores para não chamar tanto a atenção. Propositalmente, seria
esse o motivo para que nenhuma família desabrigada tomasse posse do lugar.
-A mocinha vai dormir aqui hoje? perguntou o marido.
- Vai
Sob uma luz fraca do abajur, Juliana arrumava a velha na cama.
O segundo andar ainda estava semivazio e ambas ficariam num quarto pequeno
próximo à cozinha no andar térreo, para que não precisassem subir ou descer
escadas. A família que morou na casa, usava o quarto para receber hóspedes, amigos ou parentes mais próximos. Depois, o quartinho ficou desabitado,
servindo como um quarto de costura ou para guardar mantimentos.
Antes de subir para dormir, Berenice passou no quarto onde estava a mãe
acompanhada de Juliana e desejou boas-noites. A moça acenou e viu a cabeça da
velha virar para olhar a filha, mas sem nada dizer. No dia seguinte, passariam o domingo em casa,
com a promessa de um belo almoço feito por Berenice e Juliana.
Já no quarto, o marido de Berenice lia um jornal antigo que
encontrou embaixo das escadas. A mulher, ainda ajeitando alguns pertences no
guarda-roupa, viu aquele papel velho nas mãos do marido e questionou o que era.
- Achei aqui em casa. É um jornal antigo.
- Deixa ver, disse a esposa colocando os óculos.
A manchete estampava conflitos acentuados com a questão do
café no Brasil. Setores agrícolas manifestavam-se contra o governo da época e a
imprensa sofria com a censura, sem poder denunciar mandantes e golpistas do
governo. A imagem de um homem segurando uma bandeira confundia-se com as letras
minúsculas da reportagem. Ambos agora estavam entretidos com aquele calhamaço
sujo e, ao que tudo indicava, era um jornal de esquerda. Berenice logo deu de
ombros e foi colocar outra roupa para dormir. Ao apagar a luz do corredor, teve
a sensação de ver alguém em pé no primeiro degrau da escada. Olhou fixamente para o cômodo abaixo
de seu quarto e seus olhos desenharam na escuridão o que poderia ser o ombro de
um homem em pé. Acendeu a luz que pouco clareou os degraus e lá embaixo, continuou
vendo aquele semblante encarando-a. Berenice apertou os olhos e chamou por
Juliana. A moça respondeu do quarto, perguntando se ela precisava de alguma
coisa.
- Não, só para desejar boa noite.
Percebeu que Juliana tinha acendido a luz e vinha até a
escada, onde parecia que alguém a observava há pouco.
- Precisa de alguma coisa Berenice? E seu rosto se iluminou
com a luz da sala.
- Não Juliana, não precisava ter levantado.
Juliana abaixou a cabeça e apagou novamente a luz da sala.
Agora Berenice não viu mais nada.
Foi se deitar ao lado do marido, que já dormia pesadamente.
Continua...