Tia Nininha sorriu ao ouvir estas palavras, que soaram de maneira doce, desse menino que vira há algumas horas brincar lá fora, no pátio. A moça, recém-formada no magistério, lembrou das aulas de psicologia aplicada à educação e sem titubear lançou:
- e como aprendeu?
- A voar? perguntou, quase interrompendo Nininha
- Sim; a voar
- Não disse que sabia
Fingindo esquecer a colocação, desviou o olhar; com um sorriso mais simpático que verdadeiro, pegou na mão do menino e incentivou-o a entreter-se com sua atividade e com outros pensamentos.
- Vai, pinta!
Outro aluno pegou um lápis colorido e retomou sua obra. Antes, ouvia a conversa da professora com o menino.
Do desenho, o cheiro do álcool de mimeógrafo agradava a professora nova. Nininha sentiu os joelhos estalarem. Soltou um 'uff' ao esticar as pernas e levantar. Viu Sandra, linda, de pele parecida com cera, moldada cuidadosamente com a luz do fogo e mãos cautelosas. Segurava três lápis coloridos. Um verde, outro azul bem claro e um rosa. A mão esquerda coloria o sapato em forma de casa, de laranja. Apesar da cor forte, a menina sabia a força a ser aplicada no desenho, fazendo com que a pintura se tornasse suave.
- Lindo, Sandrinha
- É da cor da minha casa, fessorinha
Como as crianças são cheias de atenção, pensou Nininha. Refletia o quanto esses fatos, de trabalhar e perceber os pequenos, a impulsionaram em sua decisão. Talvez, possa ser de forma inconsciente, mas de alguma maneira, que o que já está feito, serve de modelo a ser seguido por quem chega mais tarde.
Ao mesmo tempo, ao pensar nessas protuberâncias, remeteu também toda sua reflexão ao curso de psico-aplicada e a ênfase na educação, que seria completa somente com essas trocas patéticas nas salas de aula. Engrandeceu-se rapidamente e pousou as mãos nos cabelos da Sandra, que retribuiu com um olhar branquinho.
Apesar de ser uma quinta-feira, de inverno, o dia estava quente.
- Terminei professora! Disse Sandra.
Indo até a menina, Nininha perguntou quem mais havia terminado. Ouviu uma negativa em coro. Não apressou-os.
- Quero todos bem bonitões
- O meu está lindo professora. Bonitão, disse a menina prodígio. E realmente estava. A pintura da menina estava demasiadamente enfeitada e com uma coloração em degrade. As cores eram o chamariz da casa, do desenho e nenhum retoque estava faltando.
- professora! Era o menino que sabia voar – terminei!
E entregou o papel com a casa-sapato, pintada em tons de cores ocres.
Segurando com o braço um calhamaço de papeis e abrindo a
porta do apartamento com outra mão, Nininha entrou em casa. Nina, por si. Usava o
diminutivo apenas com os alunos do primeiro grau e limitava-se a Nina com
amigos mais próximos ou com parentes menos conhecidos.
Morava com mais duas amigas, colegas diria. Repartiam o
aluguel e algumas angústias. Após despejar as folhas desenhadas sobre a mesa,
jogou a bolsa na mesinha de centro de sala e deitou parte do corpo no braço do
sofá, coisa que sua mãe odiaria se pudesse vê-la e dar represálias.
Eram tantos desenhos, tantas casas-sapato para olhar e elogiar um a um. Os pequenuchos gostavam de ver a caneta vermelha dando-lhes confiança de um bom trabalho e algumas florzinhas desenhadas junto às letras. Nininha gosta, Nininha quer ver bonito.
Eram tantos desenhos, tantas casas-sapato para olhar e elogiar um a um. Os pequenuchos gostavam de ver a caneta vermelha dando-lhes confiança de um bom trabalho e algumas florzinhas desenhadas junto às letras. Nininha gosta, Nininha quer ver bonito.
A noite estava quente. Olhou pela janela e viu ao longe a
torre da Paulista brilhar em cores vivas e cintilar uma a uma, para cima para
baixo. Desde que veio de Taubaté, sentia-se importante ao olhar para o centrão
e sentir-se parte dele. Embora trabalhasse em região metropolitana, afastada do
centro, fazia o mais importante dessa história de superação que era morar ali.
Ter uma casa no terceiro andar do Paraíso que permitisse ver a cidade acesa e
livre para ela.
Uma de suas conquistas interiores era ter um namorado, coisa
que até agora não conseguiu conquistar nesta grande metrópole de galinhas
urbanas. Era dessas que inconscientemente acreditava que o homem que a faria
feliz viria depois de uma catraca eletrônica e um dia cheio. Sentaria ao teu
lado no metrô, roçaria a perna peluda na sua, ambas escondidas em calças jeans.
Jamais considerou besteira essas particularidades amorosas que a faziam ensaiar
um encontro platônico que talvez nunca conseguisse concretizar.
Durou apenas alguns segundos, o olhar parado para fora; logo
Nina virou o dorso cansado e estalou os dedos das mãos inclinando-as para trás.
Estafada estava, mas ainda queria sentar e viajar no desenho dos alunos da
tarde.
As crianças! Ah, lembrou das crianças e rememorou a
inocência contida naqueles aluninhos tão cheios de problemas familiares banais.
Crianças da cidade, com tantos compromissos e aulas de inglês, mas que na sala
de aula deixavam transparecer um pouco do que realmente ainda são.
Pegou um desenho nas mãos, o primeiro do monte de sulfites.
A casa alegre era verde, com plantas pintadas até o céu. Galhos que se uniam
aos pássaros traçados com giz de cera preto, enormes, com duas asas. Os
pássaros eram asas; o desenho era a visão daquela criança; Henrique era o que
estava escrito no verso da folha.
Pegou outro. A casa era preta. Preta e borrada em traços
longos feitos com lápis esgarçados pela força do autor. Outra casa, rosa
agora, com bordas.
A quinta casa era marrom. O quintal cinza e as nuvens beges.
Era do menino. No canto da folha, um pássaro, dando outros horizontes para a
casa em forma de bota. O detalhe era que o pássaro estava morto, embora
estivesse em pé com um buraco enorme que abria seu peito. As asas,
escancaradas, pareciam estar diante de um predador faminto.
O pássaro estava morto, embora estivesse com as asas abertas e ereto em seu corpo de ave rapina.
O pássaro estava morto, embora estivesse com as asas abertas e ereto em seu corpo de ave rapina.