quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Crônica de Natal

Lembro-me bem quando após um dia cansativo vi pendurado em frente às duas janelas de casa um desses “pisca-pisca” natalinos. Minha expressão de cansaço mudou quando vi a cena: todo torto, mal colocado e com algumas luzes queimadas. Percebi que fora meu irmão mais novo o autor. Sorri sorrateiramente.
Lembro-me bem quando andava com ele na rua e calados observávamos as casas com resquícios de Natal. Algumas iluminadas no sótão, outras na varanda, outras no quintal. Traziam o imaginário de um bairro notoriamente feliz, pela luz que se expandia. O pequeno ao meu lado vislumbrava-se com as luminárias pensas colocadas par em par no meio das flores de canteiros altos.
- Eu acho bonito as casas com luzinhas! E olhou para mim
Olhei para ele e percebi que esperava uma confirmação.
- Sim, são muito bonitas! Respondi
Tornou a olhar para as casas e suas telhas e andar silencioso ao meu lado.
Lembro-me bem quando meus pais, a ponto de se separarem, mudaram-se para o interior e me deixaram cuidando, daquele casarão descuidado repleto de memórias vivas. Tão vivas que tomavam espaço em meu quarto. Dos dias inteiros com luzes apagadas e quintal repleto de folhagem seca. O pequeno foi junto.
O natal chegara mais cedo este ano e minha família voltou com ele. Não suportaram as infindáveis tardes ensolaradas daquela cidade interiorana. Trouxeram doce de abóbora, coco e brigas na mala. Lembrei-me também das noitadas que meu pai passava na rua e ao voltar embriagado da lua, gritava no portão para que o deixassem entrar, embora estivesse com as chaves no bolso. Das discussões ouvidas do banheiro e das ofensas lançadas aos ventos.
Lembro-me bem do irmão do meio atrasar o relógio do despertador para perder aula e não ter condições de passar de ano. Tudo para chamar a atenção de alguém, talvez do pai. Preocupava a mãe com suas respostas imediatas e seu desempenho na escola. O que menos a preocupava, era o mais velho, esse que vos escreve, a não ser por sua ausência amorosa e complicada, segundo as leis da sociedade. Talvez fosse o que mais a preocupava.
Lembro-me bem, também, de não ouvir o som de vozes ou de qualquer outro ruído qualquer dentro da casa, embora não estivesse silenciosa.
Parado no portão, eu enxergava somente o brilho por trás daquele pisca torto e sem-vergonha. O brilho de uma família que volta a iluminar alguma vida nessa rua tão apagada e suja. De onde veio esse brilho, senão do mais inocente e necessariamente o mais passivo de toda essa relação difícil chamada família. Talvez a mais complicada das permanências, porém a mais gratificante das experiências.
Lembro-me bem quando uma lágrima caiu, ao vê-lo torto, pendurado e inferior ao das outras telhas, mas que ainda fazia algo que merecia atenção: brilhava.

domingo, 7 de novembro de 2010

Coletivo

Viu que faltavam dois para entrar. Não correu e ainda esperou um deles subir. Cansado, depois de um dia inteiro de trabalho, passou a catraca automaticamente, sem perceber e percebeu que não havia lugares para sentar. Apesar de não estar cheio, o coletivo estava com os assentos todos preenchidos e sua cabeça repousou no braço, que antes se pendurou no ferro.
Seus olhos fecharam, seu pensamento não foi muito longe e tudo o que queria era tomar um banho e dormir. Estava com fome, mas o ritmo do dia diminuía conforme o coletivo avançava sobre a cidade.
O carro, este que o deixou na mão, deveria ficar pronto só na semana seguinte e o ônibus grande seria seu meio casa-trabalho durante mais alguns dias. O celular vibrou e ao atender, a ligação caiu. Era a mãe, que deveria perguntar o que queria comer no jantar.
“Qualquer coisa” pensou sem balbuciar e tentou ligar novamente para casa. Desistiu.
Um homem, de baixa estatura, esbarrou em seu sapato. Sapato preto, social, chato. O homem desculpou-se sem encará-lo e ele sem querer percebeu que as unhas do baixinho eram adoentadas, uma bactéria, ou um vírus as tinham deixado pretas. Por um minuto, tentou lembrar a diferença entre bactéria e vírus, mas logo esqueceu a charada e deixou que o homem fosse para perto do cobrador. Era meio velho, tinha entrado pela porta de trás, mas não passava dos cinqüenta e poucos.
Não notou que perto do cobrador, um banco estava vazio e algumas pessoas entravam e logo alguém ocuparia aquele lugar. Quando viu, o coletivo avançou e ele deitou novamente a cabeça no braço.
De longe, semáforos, casas e gente nos bares. Agora, as pessoas já apertavam seu corpo sobre o banco a sua frente. Estava cheio e o calor aumentava.
Novamente o celular. Agora, um amigo. Também desistiu e mandou uma mensagem confirmando um churrasco no domingo. Um resto de alegria o fez sorrir pelo canto da boca. Resolveu ligar para o camarada e ao procurar o nome na lista de telefones, passou pelo nome da sua última namorada. Aline.
Por um minuto, já em outros números, lembrou que, da última vez que seu carro estava com as rodas travadas, voltara nesta mesma linha de coletivo com Aline.
Eram quase sete, horário de verão, ainda tinha sol. Um resto de.
Levantou a cabeça do braço vermelho e arrumou a gola da camisa. O banco perto do homem da unha estava agora ocupado. Uma moça, de traços similares ao de Aline, parecia dormir. Sua cabeça estava muito reclinada a ponto de bater o queixo no peito.
Seu pensamento agora voou e lembrou com doçura de sua ex-namorada. Lembrou de sua boca, de suas mãos quentes e que há um tempo, há pouco tempo, aliás, estavam juntos.
Olhou novamente para a moça sentada, mas apenas viu o cabelo cobrir seu rosto. Pensou novamente ser Aline, mas não. Agora, ela estava somente na agenda de seu celular.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Coletivo

Sentou. Conseguiu sentar e regozijou-se por apertar o passo e dar uns empurrãozinhos enquanto entrava naquele coletivo. Empurrões pequenos, que podia subtender-se que outros a tivessem empurrado antes. Suspirou e soltou pesadamente o ar. Arrumou o cabelo -, mania de mulher, ajeitou a bolsa no colo e jogou os pés entrelaçados para baixo do banco.
Seu olhar descuidado mirou a mão de um homem, que tinha a unha do dedão deveras enferrujada, emputrecida, feia. Voltou o olhar para o chão e novamente apertou a bolsa. Sentiu a garrafa de água, vazia, fazer volume dentro da bolsa. Ficou assim durante alguns minutos e o pensamento voou ao trabalho, que precisa de novas rotinas, um pouso no curso que pensa em fazer, no Dom Casmurro que precisa terminar de ler. Ouvia os murmúrios de conversas desinteressadas, o balançar do ônibus e o reflexo dos ferros repletos de mãos cansadas. As mãos dizem muito de alguém.
Novamente, seu olhar sem cuidados, saiu do vão enternecido de efêmeras memórias e viu, sem querer, um semblante conhecido entre as tantas feições daquela tarde pós trabalho. Era seu amor, ou seu amor do passado, ou que deveria estar e ser do passado, ou que nada de amor, ou... Baixou a cabeça repentinamente enquanto sentiu um frio descer da nuca para a espinha.
O homem da unha enferrujada, emputrecida, feia, mirou seu susto. Ela viu, segurando num desses ferros de reflexos, um dos poucos que amou durante sua vida. O coração acelerou, ficou desajeitada no banco, enquanto sua mente trazia como numa roleta russa, ele beijando-a no parque, ela apenas de calcinha sobre o corpo dele, a cesta de doces, os chinelos nos pés arredondados dele, o curso que fazia na faculdade e que já tinha terminado. Sua boa memória a irritou um pouco.
Estava bonito, apesar do cansaço e da barba, estava bonito. Pelo pouco que conseguiu olhar sem que ele a percebesse ali. Sua nuca inclinou-se tanto a ponto do queixo encostar no peito. Percebeu isso quando o ônibus pulou e a cabeça deu um tranco para cima e depois para baixo. Sentiu dor, mas não sentiu.
A mente agora aterrissou e pousou num campo seco, num deserto onde não havia mais parque nem chinelos. Era como se, um mar de terra a engolisse e ela não pudesse saber onde está. Ao mesmo tempo, neste deserto, tinha flores e flores coloridas, mas com um cheiro insuportável. Os olhos eram agradados pela beleza e o olfato invadido pela sensação de envenenamento.
Estranhou. Ele nunca pegava ônibus, mas imaginou que mais uma vez estava sem carro, visto pela última vez, quando as rodas travaram e isso serviu de pretexto para que os dois viessem abraçados no banco de trás do coletivo. Coletivo este, que agora leva ambos, ele e ela e que assiste o destino sorrir ao ver os dois corações dentro de um mesmo espaço, com outras pessoas sem poderem se amar.
Deixou o cabelo cair sobre o ombro e cobrir parte de seu rosto, para que, este, fosse uma incógnita para aquele que um dia ela amou e sorriu para revelar toda sua beleza.