domingo, 22 de agosto de 2010

O frio de mim

"O que me levou a escrever este texto foram alguns choramingos que tive em meus ombros. Amigos, que choraram a perda de um amor ou outros que foram vítimas de um término repentino de relacionamento. Por serem meus amigos, também fiquei triste por vê-los lamentar enquanto sofriam a ausência de seus seres amados e sempre estive pronto para ouví-los e até chorar junto. A dor de um amor que não corresponde é única e nenhuma é igual a outra"

Seus olhos estavam fechados. Embora ainda vissem suas vísceras brancas e a coloração apática do seu olhar, eles estavam crus, como sua alma estava cru e sua pele e o seu caminhar. Ele não via nada. O inverno em seu fim, o sol já anunciava a renascença, ainda faltando alguns dias para a primavera. Ora ou outra, refletia sobre as coisas que já havia conquistado com seu pequeno planejamento, mas se esquecia de tudo quando a lembrança do motivo daquela tristeza retornava à sua mente.
Sim, o sol voltou para mostrar que o frio não era mais ali, mas ele não o via. Não sentia o sol, não via as pessoas e se infiltrava cada vez mais no íntimo frio que sem perceber cultivou durante tanto tempo, confundindo com uma esperança de felicidade alheia. Havia depositado em um outro alguém, grande parte de suas horas e de dentes amarelos. O cheiro do corpo ainda, o risco da face era nítido e tudo parou assim. Seu tempo estagnou-se e nem sabia explicar por que mesmo com tanta ausência, não conseguia chorar.
Não tinha família, nem mãe, nem pai nem raio algum, tinha o oposto e não queria tê-lo somente. Já o teve tempo suficiente para querer outro alguém. Queria ter consigo quem já não mais queria tê-lo com os mesmos afetos de anos passados. Desejou voltar, desejou morrer e ao mesmo tempo desejou viver para provar que ainda é possível.
Viu a dor passar em outros parâmetros, em outras formas e em outras pessoas, mas essa dor, exclusivamente essa dor era dele e intimamente ela doía e doía mais do que todas as outras, do que em todos os outros. Era sua, de uma forma gradativa. Havia quem imaginasse sua dor ao não possuir mais a pele branca e as camisetas verdes perto de si. Ouve também quem o via e sabia qual a intensidade desse sofrimento.
A casa nunca esteve tão grande, os amigos distantes e ninguém o entendia, mesmo explicando e chorando em minutos exatamente iguais. Os sorrisos alheios o irritavam e mesmo ao lembrar de momentos felizes pessoais, irritava-se com facilidade por não enxergar atrás das flores que um dia também sorriu e acreditou.
Haviam flores, mas ele também não as via. E entre as flores havia pássaros que mesmo sem notá-los era possível ouvir o seu canto e saber que eles estavam ali, cantando. Havia o canto, mas não ouvia, o canto de nenhum outro. Era uma imagem parada em sua vista, que nem mesmo ele sabia como fugir. Virava o nariz, o tronco e parte do seu corpo e o frio continuava congelando sua antecedente primavera.
Olhos alheios assistiam essa dor construída inocentemente e lembravam dos vários sentimentos que também, um dia, o desnortearam durante grandes primaveras e sabia que pouco podia fazer, pois os olhos brancos não enxergavam os alheios. Nem quem pudesse dar objetos para serem quebrados, nem quem pudesse tentar convencer o dono da imagem estática a se fixar nele novamente, nem quem pudesse pedir aos céus para que isso tudo tivesse um fim instantâneo, nem ninguém podia ausentar esse silêncio íngreme.
Era das músicas, das epígrafes e dos sonhos que o acordavam durante a noite e não era mais de si, estava entregue, solto e manipulado por um desconhecido rumo que perseguia e levava seu ser ao impetuoso e gélido inverno da alma. As feridas mais intensas eram abertas com pequenas palavras.

domingo, 8 de agosto de 2010

O menino e a rua

O menino corria pela rua. Seus olhos integravam-se ao azul do céu que cobria sua cuca quente. Seus pés mais pareciam cascos no áspero chão que pisava.
Passou pela banca de jornais, pelo poste de luz e pelo beco esburacado. O homem da banca seguiu-o com os olhos até cruzar a esquina. Um pouco antes, frente à loja de discos, o asfalto mudava seu ladrilho. O chão tinha duas cores e o piso amenizava a estranheza daquela rua cinzenta.
Ao cruzar a rua, a luz do sol lhe penetrou os olhos. O menino baixou a cabeça e novamente a levantou. A bermuda rasgada pelos bolsos e as costelas a mostra acima do umbigo raso. A sujeira era visível entre as cores bordadas no trapo da cintura. Levava em uma das mãos uma pequena gaiola de ferro que batia ora nas batatas magras ora no joelho.
Seus passos eram firmes e o olhar não desviava o horizonte. As pessoas viam aquele pequeno pássaro correndo descalço em busca de algo precioso. Sua imagem aparecia entre as pessoas que andavam pela avenida.
Passou pela rua principal, pelos carros parados e pelo senhor que conserta guarda-chuvas. Sua imagem logo ao aparecer, sumiu entre as grades da escola onde outros meninos brincavam no pátio. O farol fechou e os pés pisaram as faixas. Não teve tempo de parar. Não esbarrou em nenhum homem, em nenhuma mulher.
Na praça, desviou dos bancos e pulou um cercadinho. Seu olhar desviou-se rapidamente para as flores e logo voltou ao seu destino. Tinha sonhos e não sentia o frio, embora houvesse raios de sol entre as árvores, fazia frio entre os galhos e a blusa mais quente estava no cabide que não era seu.
Ouvia o canto dos pássaros que compartilhavam uma melodia triste de fim de tarde.
Passou em frente a varanda da velha que ainda não terminara seu chá. O cão apenas levantou a cabeça ao ouvir os passos do menino se aproximando, mas não ousou latir pois sabia que o menino não corria de ninguém, apenas seguia seu caminho.
A gaiola tilintava em um som baixo entre o ferro e os ossos do menino.
Ao longe, o jardineiro que trabalhava na grande casa pelos fins das quadras, viu a mazela imagem acompanhada por sua sombra. A sombra o seguia onde quer que fosse, mesmo que o menino não a visse, mesmo que não a percebesse, mesmo que não houvesse luz.
Naquele fim de tarde, ouvia-se o vento brando cantar ao pé do ouvido e o sol já avermelhado no céu que cobria seus passos. Passou pelas sacas de arroz e levantou uma singela poeira na calçada da venda. O dono levantou a pestana e apenas olhou para fora. Não viu o menino passar, apenas ouviu seus passos sumindo. Voltou a ler o jornal.
As casas com telhados quentes sentiam aos seus pés a correria. Houve quem esperasse a noite cair e as luzes acenderem-se. O som da música no rádio de pilha.
Os passos iam se cansando e o menino ia diminuindo, embora não estivesse determinado a parar. Chegou perto do beco estreito com o chão asfaltado por pedras desenhadas. No fim do beco estava uma pequena macieira velha e encurvada. Não havia bancos nem rosas no fim do beco, apenas a árvore.
Houve quem quisesse cortá-la dali e plantar outra. A macieira.
O menino entrou no beco e seus passos ficaram lentos e silenciosos. O céu coberto por um tom alaranjado forte e algumas sombras do beco confundiam-se com a rua. Os muros não eram altos e foi ali que o menino parou.
Sentou-se embaixo da árvore e colocou a gaiola ao seu lado.
Houve também quem não viu o menino passar. O menino parou para descansar. Encostou a cuca no tronco e esticou os cambitos. O joelho estalou.
Viu-se sozinho no fim do beco. Não ouvia barulho nas casas ao redor embora fossem poucas e insignificantes. Apenas olhava para frente com os olhos pensos. Em nada pensava, apenas sentia o vento em seu pescoço passar para as orelhas.
Olhou para a gaiola vazia e a aproximou dele. Passou o braço por ela como se fosse capaz de sentir algo por aquele objeto morto. Fechou os olhos e sentiu seu coração bater.
A noite já havia caído e o menino não tinha sono. Olhou para o céu e viu a lua. Sim, ela havia chegado.
Pegou na aba da gaiola e levantou-se. A árvore entristeceu-se.
O menino tomou novamente seu rumo. Algumas estrelas brilhavam no alto, o vento havia cessado e apenas passara pelas folhas da velha macieira. E o menino corria pela rua.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Privacidade

Essa crônica nasceu no terceiro ano de faculdade,em 2008, quando uma conhecida pediu que eu fizese um roteiro para um curta metragem. Eu o fiz. O tema era "Privacidade"
Aproveitando esse embalo do post passado (278, 4º andar) publico esse novo texto.


O lugar continuava quieto. Na calçada as folhas não haviam sido varridas. A rua vazia e o sol já indo embora. A vizinhança não conhecia o homem que morava no mil e dezessete, afinal acabou de mudar para o lugar.
Seu jeito era estranho, comentava consigo dona Cícera, mulher que morava há mais de quarenta anos no bairro, número noventa e dois. Achava que, por ser a mais velha, era dona do lugar e tinha regalias a mais. Só achava.
Ao mesmo tempo que reclamava, debruçada sobre a estátua do menino Jesus na faixada de sua morada, observava a jovem vizinha que aproximava-se. Moça nova morava com uma irmã e a mãe. O pai ainda não estava com elas, mas não iria demorar visto por suas noitadas regadas a álcool e libertinagens. Longas noitadas desde quando elas chegaram.
Ao ver a moça, Cícera deu um sorriso e acenou com a mão. Nenhuma palavra saiu de sua boca. Estava ansiosa para a chegada da vizinha Luíza, com quem trocou horas de vida alheia.
O homem surgiu. Cícera observava pronta para ser educada. Passava sobre os monumentos que estavam ali e voltou de onde havia saído.
Cícera levantou o pescoço e tentou enxergar o interior do lugar. O homem era estranho, nem olhou pros lados, só andou e entrou.
Ali poderia estar a explicação para o motivo de sua psicologia negativa. Aquele lugar há anos ficou vazio. Após o suicídio de Bira, um outro homem que não resistiu sua paranóica depressão, suicidou-se perto da entrada do lugar, com uma corda de amarrar talhas de madeira. Desde então, tudo era deserto.
Ali era um bairro. Onde morava.
Sua morada era grande, vistosa e toda feita pelos filhos em sua homenagem. Sentia-se orgulhosa com isso. Só estranhou a ala inferior a sua estar sendo habitada, sendo que ficou deserta durante quase dez anos. Ninguém aceitou morar ali, visto por histórias mal contadas.
A chuva estava por vir. O tempo fechou e o céu ficou nublado. O sol deu lugar às nuvens que se juntavam em formas diferentes.
Foi até o quintal para ver a rua. A moça nova apareceu andando. Não entendia onde estava, mas tinha no rosto uma certa serenidade.
Cícera olhava e estranhava aquela atitude, tal serenidade.
O quintal do homem era sujo e cheio de folhas secas.
Como era a mais velha, conhecia as histórias do lugar. Também sabia da índole daquela moça que não era das melhores. Imaginou que já estava de trambique com o homem. Ou de safadeza.
Na rua passavam, fora dos muros de seu bairro, algumas pessoas. Cícera cumprimentava e ninguém respondia. Já estava acostumada com tal reciprocidade.
Virou-se e viu alguns de seus conhecidos encostados em suas novas moradas. Alguns viviam ali durante anos, outros chegaram há pouco tempo. Ela era a mais velha e destacava bem isso. Viu muita gente chegando de várias maneiras, até que foram esquecendo aquele lugar que era chamado de bairro.
Contava-se no dedo quem ainda ficara ali.
Cícera não sabia ao certo para onde as pessoas iam quando dali sumiam. Sabia que um dia iria também, embora não fizesse planos para tal.
Viu novamente o homem passar ao longe. Não sabia onde estava, nem ao menos quem era. Haviam algumas meras lembranças em sua mente de quem foi quando ainda não estava ali. Agora já havia se esquecido.
Ela quis ajudar. Aproximou-se dele e olhava em seus olhos.
Ele não a via.
Continuava andando. Seus olhos e sua expressão eram de angústia. De sua boca não saia um ruído.
Ele não conhecia ninguém ali e não aceitava aquela situação. Cícera acostumada, sabia ali, quem ficaria por algum tempo e quem nem ao menos entraria no bairro.
Caminhou satisfeita por estar bem onde estava. A moça, tranqüila em sua expressão não estava mais no bairro. Embora havia acabado de chegar, partiu por aceitar sua condição e ter feito obras que lhe deixaram satisfeitas.
Cícera entendia a privacidade do homem e sabia que naquele ponto não podia mais ajudar. Ele teria que encontrar seu caminho, sozinho.
Sua morada era vazia e fria. A do homem também.
Após a morte, é cada um por si.