domingo, 26 de setembro de 2010

Fachadas

Quem dirá o que acontece na trinta e sete da esquina dois? Atrás da parede amarelada, pintada de azul e depois de verde, mora tanta gente que fica difícil distinguir quem é homem, mulher e criança. Na rua, são juntas, amontoadas, sobradinhos. Casas de pedra, tijolo e forro. Telhado de vime, vidro, madeira do teto ao chão.
São fachadas, onde moram mulheres, meninos e policiais. Onde existem pessoas de bem, de mal e gente de sal. Bem dá para ver a laje da casa dois e mal se nota a janela do banheiro da casa sete, que mais parece um depósito de ferro e guarnição desnecessária.
Há apenas uma casa com três andares, dois ocupados e um que ninguém mora nem limpa. Daria para viver duas pessoas que moram ali perto da viela, onde mal se alojam no cubículo sem número.
Tem um banco, banco simpático de praça no quintal do portão laranja. A mulher mora com o marido, o filho e a lembrança da filha no exterior. O cão late de longe e sabe quem passa na rua. Cão não gosta do homem da casa do lado que mora sozinho e trabalha de madrugada.
Na primeira casa da rua, ninguém tá, ninguém mora, nem mesmo o vento. Só folhas, fantasmas e folhetos. Na casa do lado, mora um sozinho, que sempre tem companhia. Em frente, mora uma velha mulher, rodeada de gente família, sozinha, sedenta em lascívia e enrugada pelo tempo.
São fachadas. São casas.
Pessoas que moram e que ninguém sabe o que acontece dentro de cada morada. Falam de um, falam de outros, imaginam, envergonham e pouco se sabe o que se passa do começo da rua para o fim dela, de cima da calçada para dentro da sala.
Quem dirá o que acontece na parte de dentro das fachadas? Num bairro pequeno, de gente modesta, que pinta a frente de casa para alegrar o dia-a-dia que passa e passa.

domingo, 5 de setembro de 2010

Varanda

Sempre de pisos frescos, de cores claras, pintadinhos no máximo com uma violeta rosada emaranhada com um galho verde musgo. Assim são a maioria das varandas, erguidas dos anos oitenta para cá. As mais sofisticadas perderam a graça, vêm embutida com o quintal e ninguém pisa ali a não ser a moça que lava as roupas. Varanda boa é aquela escondida, atrás da casa, onde os moleques corriam entre as roupas penduradas, com ralinhos no meio do espaço, quase sempre destampado com aquele cheiro de rio, que ao mesmo tempo que fede, agrada.
Sem roupas penduradas não se é uma varanda, assim como também sem varal. O varal desempenha um papel importante, pois por ele se distingue varanda do quintal, porém uma varanda que se preze, sempre tem roupa no varal, secando, esturricando. Enquanto a água da calça pinga rápido, pinga também o sutiã e o tomara-que-caia, uma água limpa e pesada, em espaços mais densos de tempo.
O varal é içado de ponta a ponta, com ganchos de ferro polido e feito com pequenos fios de plástico, em cores verde, azul e amarelo, que sujam as roupas mais claras enquanto o vento seco leva o prendedor de madeira. O prendedor, deve, ser de madeira, daqueles que deixam marca e não sujam, diferente do varal, que borra. Prendedores de plástico, com firulas desnecessárias não servem para nada.
Das pontes que ligam a cidade de São Paulo, dos bairros escondidos por onde passei parte da minha infância, sempre me encantei com elas, as varandas. Quando se entra na varanda, considere-se da família, pois lá está contida a intimidade de quem ali vive, assim como o banheiro, outro espaço que tenho certo labor.
Observava sem entender, como as pessoas mudam enquanto as roupas trocam de lugar no varal. De casa, na infância, avistava uma varanda vizinha, alta, ao lado de um terreno descampado. O varal levantado por tubos maciços de madeira que quando chovia, dava para ver as roupas quase caírem na rua. Sempre torcia para tal.
De onde eu estava, não dava para ver o chão da varanda, mas era legítima. Estava no alto da casa, embaixo era só garagem e eu sempre quis subir e ver o chão, piso ou o rústico daquele espaço de roupas. Queria conferir se o ralo era no canto ou no centro. Assim, dava para escoar a água que caía das calças, moletons, bermudas de pai e claro, da chuva.
Em casa a varanda não era tão interessante, pois sempre aos finais de semana revezavam com os ganchos do varal as pregas da rede de balanço, que mesmo me rendendo boas balangadas me tirava o imaginário de uma varanda com roupas e ralo e cheiro de piso.
As roupas da legitima vizinha eram quase sempre dispostas no mesmo lugar. Do canto, perto do terreno, eram colocados os jeans, sempre duas calças largas com o traseiro mais esbranquiçado que os joelhos, sempre com as costas da calça viradas para minha casa. Logo depois, vinha um moletom grosso, que pingava incessantemente, como se ninguém o tivesse torcido antes de pendurar. Um dia ouvi dizer que é preciso torcer bem antes de ir secar no varal. Depois do moletom quase sempre vinha uma toalha rosada com detalhes bordados perto das pontas. Depois, uma blusa amarela de mulher, e outra peça, também feminina, que até hoje eu não me lembro para poder distinguir. Eu via essas peças, pois elas eram sempre dispostas juntas no varal que era o mais visto da varanda de casa. Os demais ficavam atrás deste e eu pouco pude ver para disseminar o que estava lá pendurado, mas no balançar das roupas, via que tinha coisas dispostas atrás.
A dona da casa quase sempre, sorridente, cumprimentava a vizinhança e antes de anunciar uma trovoada, ela limpava o varal. Algumas peças, antes de irem para o armário de roupas, iam para uma espécie de mini varanda coberta, projetada antes da cozinha. Talvez fosse ali que ela lavasse todas aquelas peças, algumas desbotadas na bunda. Para mim, a única varanda sempre foi aquela que a chuva conseguia molhar.
Certa ocasião, ao voltar ensopado da escola, enquanto ainda chovia muito, vi jorrar água do cano dessa casa. Água que vinha pela calha com força, de lá de cima. Minha curiosidade aumentou em saber onde o ralo era disposto para poder escoar toda aquela água.
As vizinhas comentavam entre si, das roupas na varanda. Percebiam silenciosamente como a dona da casa era cuidadosa ao dispor daquela maneira todas as roupas. Comentavam até quando as calças eram trocadas e colocadas no lugar das que apresentavam algum cansaço. Ouvi pelos cotovelos de outra, que as calças eram as que o marido usava no trabalho e em certo momento até taxavam a dona da casa como relaxada por permitir que o marido fosse ao trabalho com calças quase que rasgadas. Eu não tinha a mesma opinião, pois as minhas eram piores, mas as calças não passavam mais de dois meses no varal e logo depois outras novas e mais resistentes tomavam os mesmos lugares, apesar de terem as mesmas cores e tamanhos.
A varanda dessas vizinhas era pobre, sem interesse, pois nada tinham a não ser uma camisa ou calcinhas dispostas de maneira esculachada. Nunca me interessou. Talvez nem à elas mesmo.
Bem cedo, antes de saírem ao trabalho, as roupas estavam lá, dispostas nos mesmos lugares, com cores e balanços até decorados pelos vizinhos mais próximos. Comentavam das calças, mesmo estando impecavelmente limpas, das toalhas e da peça feminina que eu não sei distinguir. Outras dúvidas imperavam nas mentes mais futriqueiras, como por exemplo, a que horas a mulher lavava as roupas para logo cedo estarem exatamente dispostas no varal e conseguinte na varanda, ou também se eram roupas pouco usadas, pois sempre eram as mesmas, nos mesmos espaços do varal e nos mesmos dias da semana.
Quando chovia fora de hora, as roupas encharcavam e eram deixadas ali por mais tempo. Conheciam pouco o marido, que era do tipo grandalhão com uma barriga enorme, saía cedo e voltava no começo da noite. Sempre com calças jeans, desbotadas na bunda e de barra feita. Pude reparar na barras só no corpo do homem, pois na casa, no varal, na varanda, a barra ficava perto do chão, que eu também queria descobrir.
Um dia, ouvi comentários mais acalorados e não entendi o motivo da euforia. Os olhares das vizinhas de varanda nua lançavam-se para aquela varanda alta e decifravam, como quem decifra cruzadinhas, as novas roupas colocadas no varal.
Não tinham mais calças e nem sequer a toalha rosadinha. No lugar, duas peças femininas mais coloridas e com decotes bem consideráveis. Invés da toalha comprida, um vestido longo com as costas a mostra.
Demorei para perceber que o marido dessa vizinha, há um bom tempo não aparecia na rua e só constatei isso quando no lugar das calças, havia corpetes, saias e calcinhas de renda. Diferentemente de antes, essas roupas jamais ficavam tempo o suficiente para a água da chuva encharcar. Não havia mais roupas de homem e a cada dia as roupas ficavam mais ousadas e coloridas. Balançavam levemente com a brisa e batiam umas nas outras.
Aos poucos, a vizinhança parou de notar a varanda e começou a notar a mulher. Estava mais sorridente, com fisionomia renovada e até deveras com um corpo mais atraente.
Eu, continuava a observar a varanda de longe e também a água que jorrava do cano em dias de chuva. Água que caía no piso, vinha pelo cano e morria na rua, na calçada da rua. Água que vinha de lá de cima, da varanda.